Ano VII

Digerindo o cinema ilusório de Muylaert

segunda-feira ago 15, 2016

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Digerindo o cinema ilusório de Muylaert, ou, Como vejo Mãe Só Há Uma

Por Joana Lorenzetti

Há duas semanas assisti, durante o 11º Festival de Cinema Latino Americano, à pré-estreia de Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert. Sinto a necessidade de mostrar a minha visão sobre esse filme que parece ter agradado muita gente, mas que me incomodou muito em diversos aspectos. Talvez a experiência toda de ter visto o filme com uma audiência jovem (que constituía a maior parte dos que ali estavam, na pré-estreia do filme prestigiando a diretora), e o filme em si, além do discurso de apresentação da diretora, que se iniciou com um belo ‘Primeiramente, Fora Temer’ (e foi aplaudida de pé, claro), tenham engatilhado em mim a vontade de expor uma insatisfação com o cinema brasileiro atual que vem me acompanhando pelo menos desde Que Horas Ela Volta?.

O filme narra a história de Pierre, um adolescente de 17 anos (inspirada em um caso real ocorrido em 1989, mais conhecido como ‘caso Pedrinho’) que descobre ter sido vítima de sequestro quando ainda na maternidade, ao mesmo tempo que discute (ou tenta discutir) a confusão do garoto em relação a sua sexualidade. Quanto à construção do filme, já esperava algo mais ou menos similar a Que Horas Ela Volta?, talvez o maior sucesso de Muylaert: a discussão de assuntos atualmente bastante presentes na nossa sociedade, com uma forma de fazer cinema bastante engessada e sem muito aprofundamento em nada que se discute, além das frases bastante ouvidas hoje em dia entre jovens ativistas de sofá.

Se a proposta de Muylaert é fazer o espectador refletir, com diálogos e planos tão bidimensionais e literais, esse objetivo pode não ser alcançado uma vez que o espectador sente que não precisa refletir sobre nada que está sendo discutido porque o que está sendo mostrado é, na realidade, a conclusão para onde a discussão deverá chegar (a cena de Pierre experimentando um vestido, além de ser autoexplicativa, na medida de que quase não há maneira mais fácil de discutir a questão LGBT e de confusão de um adolescente do que mostrar ele provando um vestido ao invés da camisa polo sugerida pelos pais, serve como um trunfo: discutir, como antes dito, a confusão do garoto ao mesmo tempo que mostra o desejo do filho de provocar os novos pais). Nesse sentido, o filme, além de ultrapassar o didatismo, também se mostra preguiçoso quando se trata de unir o caso no qual se inspira (o caso Pedrinho, 1989) e as questões sociais atuais.

O gosto de Pierre por usar roupas femininas é evidente desde o inicio da película, sim – já na primeira sequência, na qual, da maneira mais óbvia, explora-se a personalidade confusa do garoto ao ter relações sexuais com uma garota enquanto usa uma cinta liga (acessório este classicamente associado à sensualidade feminina). Mas a questão da sexualidade do protagonista se torna ainda mais confusa (não só para Pierre, mas também para o espectador) a partir do momento em que este se desentende com os pais biológicos, não ficando claro se a sexualidade dele está atrelada a essa relação; ou se é parte de sua identidade enquanto indivíduo.

Ainda pensando na construção do filme e no público a quem se dirige, é inevitável pensar (ainda mais depois de ter assistido a Que Horas Ela Volta?, e tendo em mente o mesmo tipo de abordagem didática sobre temas polêmicos na sociedade), na questão LGBT abordada, que peca em parecer forçada na narrativa somente para atrair o publico, formado por jovens, principalmente. O filme parece ter sido feito para agradar esse público, mais do que para fomentar a discussão em pauta. Muito menos parece ter sido pensado para ser cinematograficamente interessante.

Quando digo que os personagens são rasos, por exemplo, quero dizer que eles são a representação mais pura dos estereótipos, não só de classe, mas também de gênero, do mundo em que vivem, de modo a contribuir mais ainda com a essência superficial da película.

Tendo em mente que não sou crítica de cinema, e que por isso o que se lê aqui mais vale como crônica do que como crítica, não irei me aprofundar numa analise complexa, técnica, cinematograficamente falando, mas tenho como parâmetro os filmes a que assisto, enquanto amante do cinema.

Compactuo com o que Anna Muylaert quer transmitir, mas o que me incomoda – e talvez o ponto fraco do cinema dela seja esse – é como ela o faz. A moral aparece em seus filmes sempre de maneira tão literal, tão exposta. Cada diálogo parece ter sido escrito esperando uma reação programada, robótica por parte do espectador (erro este muito decorrente no cinema brasileiro atual: proselitismo escancarado em detrimento da elaboração); a estética do filme é convencional, não existem planos artisticamente interessantes. É o cinema como ferramenta utilitária para a propaganda rasa de ideais progressistas. E como amante do cinema, acredito que um bom plano pode transmitir muito mais que um diálogo, mas não desprezo a importância da linguagem. Às vezes a preocupação excessiva em transmitir tais mensagens em detrimento da preocupação estética torna o filme mais uma aula e menos uma obra a ser refletida, a ser pensada ou até mesmo apreciada do ponto de vista cinematográfico.

O cinema de hoje se preocupa tanto em levantar essas bandeiras (assuntos em pauta na sociedade e que merecem, sim, sem dúvidas, serem discutidos) que se esquece de pensar cinema enquanto arte e não somente meio de propagação dessas questões, e isso acaba por muitas vezes sendo um desserviço às causas, uma vez que o cinema bem pensado do ponto de vista artístico pode ser muito mais eficiente do que a simples propagação dessas ideias. Mãe Só Há Uma  acaba sendo mais do mesmo do que se vê hoje em dia no cinema brasileiro: produções que buscam transmitir uma moral da qual já estamos cansados de ler, ouvir e ver todos os dias. Insisto em dizer que problema não é discutir tais questões no cinema, mas discuti-las desconsiderando as qualidades específicas do cinema, e o poder que essa arte tem de pensar esteticamente tais questões. Afinal, não seria este um dos diferenciais entre um filme político e uma coluna do Gregório Duvivier?

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