Ano VII

5º OLHAR DE CINEMA

quinta-feira jun 23, 2016

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5º OLHAR DE CINEMA – Um balanço

Por Sérgio Alpendre

Um misto de clássicos com apostas contemporâneas: estranho cobrir críticamente um festival desses. É precisamente o mesmo dilema que tenho passado na Mostra SP. Penso que é o tipo de festival que só faz sentido para o espectador (ou faz bem mais sentido para o espectador), e por isso acho mais válido viajar como espectador, e nem tanto para cobrir, produzir textos e tudo mais (a não ser que eu fosse crítico jornalista, que faz entrevistas, o que não sou, ou raramente sou). Por que estranho? Porque o melhor nesses eventos é a revisão dos filmes antigos, quase todos em DCP. E o que falar sobre esses filmes? Faz sentido, hoje, um texto escrito na correria inerente a uma cobertura de festival sobre um filme que eu poderia rever com mais tranquilidade para escrever algo mais detido, burilado? Segundo ponto: é sempre bom rever Mouchette, O Manuscrito de Saragoça, Ninotchka e outras pérolas em tela grande. Mas DCP, me desculpem, não me empolga como película. Por exibições em 35mm até valeria a pena viajar. Por exibições em DCP, não. Já que estou aqui, pensei, verei tudo que der. E aí? Como escrever, hoje, sobre Amarcord, ou Como Era Verde Meu Vale? São filmes disponíveis em DVD. Eu poderia analisá-los com calma em casa. Para quê escrever sobre eles num texto de resposta a um festival? Nada disso, obviamente, é culpa do Olhar. Mas é fato que a exibição desses filmes, na comparação, só atesta a deficiência do cinema contemporâneo, comprovada até pelo mais entusiasta dos espectadores ou propagandistas do cinema que se faz hoje. Mesmo considerando um gesto duvidoso, arrisco aqui algumas palavras, geralmente sobre coisas periféricas (já que as centrais já foram muito melhor ditas por críticos do passado) percebidas nas revisões ou mesmo pela memória que tenho dos clássicos programados pelo olhar.

Começando pela homenagem ao Luís Sérgio Person. Se São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves são ótimos exemplos do que o diretor podia fazer com o tipo de cinema em voga nos anos 60, falando de outras épocas (milagre econômico da era JK, Estado Novo de Vargas) para falar melhor de sua própria época (ditadura militar), seus filmes seguintes, incluindo aí o episódio para Trilogia do Terror, escancara a crise. Panca de Valente até tem sua graça, mas é infantil, primário, justificando seu fracasso comercial. Cassy Jones – Magnífico Sedutor é um pouco melhor. Chega até a ser subestimado, e tem uma atuação assombrosa de Paulo José. É ainda a obra de um diretor que parece ter perdido seu caminho no cinema. Mas aqui ele tenta reencontrá-lo com garra. Seus projetos não filmados e sua morte prematura nos dizem que é um daqueles casos, como Murnau, de uma carreira sabotada pelo destino. Deve ser, pois o talento demonstrado em 65-67 é inegável.

Anna, de Alberto Grifi e Massimo Sarechielli, é apresentado como uma grande atração. O filme é de 1975 e foi restaurado recentemente pela Cinemateca de Bologna. Não revi por ter chegado tarde demais (de todo modo, a cópia restaurada está disponível na internet). Mas visto em casa se percebe a força do filme, ainda que haja certo exagero em louvá-lo como um dos maiores documentários já feitos. Aliás, se há uma coisa que não faz jus ao filme é limitá-lo a documentário. Sua força está na transcendência desse tipo de definição. Uma transcendência que se dá pelo inusitado da situação: o acolhimento de uma jovem grávida chamada Anna e, principalmente, a relação aberta e permissiva que se dá entre ela e o homem que a adotou, algo entre o paternal e o sexual, mas não de uma forma em que um atrai o outro, mas de acompanhamento mesmo dos hormônios femininos durante a gravidez, de cumplicidade, de verdadeiro companheirismo. Formalmente, um filme sujo, de repetições (replays), de truques (narrativos? documentais?), daqueles que costumam entortar cabeças de frequentadores de festivais. Pode ter sido uma sessão impactante a que eu perdi. Não se pode ver tudo.

Vi, por outro lado, e pela terceira vez, O Manuscrito de Saragoça, adorado por Buñuel, um show de câmera de Wojcech Has. Uma história dentro de outra que está dentro de uma outra, que comporta um sonho, e o sonho comporta uma história, e por aí vai. Narrativa em espiral durante um bom tempo, mas que se torna circular perto do fim. Não importa tanto as histórias contadas pelos personagens, importa mais as histórias que a câmera conta. Raramente se viu mise en scène tão arriscada e precisa. A câmera se movimenta muito e quando para o enquadramento é sempre revelador (Purgatório Eroica, de Kiju Yoshida, chega perto nesse sentido). É uma verdadeira aula de planos longos com movimentos de câmera, algo digno de Max Ophuls e do que Fassbinder iria fazer (inspirado por Ophuls). Realmente, uma obra-prima desconcertante. Escrevi sobre esse filme para o UOL, alguns anos atrás (http://cinema.uol.com.br/resenha/1965/o-manuscrito-de-saragoca.jhtm).

A Cor da Romã é o filme que fez Sergei Paradjanov ficar catorze anos sem filmar, passando boa parte desse tempo numa prisão. Seu retrato do poeta armênio Sayat Nova, cheio de tableaux vivants incrivelmente compostos (em contraposição à câmera sempre móvel do filme anterior, Sombras dos Antepassados Esquecidos), desagradou as autoridades soviéticas, completamente míopes a obras de arte que não tinham compromisso com os preceitos do regime socialista.

Mouchette é um filme da fase intermediária de Robert Bresson, a mesma da obra-prima A Grande Testemunha, após a consolidação de seu estilo sóbrio e antes da radicalização dos filmes terminais, sobretudo Lancelot du Lac e O Dinheiro. Visto logo após o almoço, em uma projeção muito boa (a do Espaço Itaú do Shopping Cristal), revelou-se menos bressoniano do que eu lembrava, ainda que seja, obviamente, muito característico de sua ideia de cinema. Talvez o protagonismo adolescente tenha suavizado um tanto o rigor da representação do diretor. O final, contudo, mantém intacta sua visão de mundo. Nunca tinha reparado que o plano da água no final ficava no vai e volta. Seria uma homenagem à cena de suicídio de O Intendente Sansho de Mizoguchi?

Compasso de Espera é o único longa do diretor teatral Antunes Filho, e traz como ator principal Zózimo Bulbul, personalidade que, por ser negro em um país racista como o Brasil, não alcançou o que seu talento e beleza poderiam lhe proporcionar: ser um símbolo sexual da estatura de um Marlon Brando. Antunes Filho dizia que cinema era melhor que teatro, e que teatro para ser bom tinha de ser muito bom. Talvez. Seu único longa encantou diversos espectadores do Olhar. Quando o vi, em uma mostra de diretores com filmes únicos realizada pelo Cinesesc há alguns anos, não achei grande coisa. Hora de rever, mas não foi possível em Curitiba.

E o espectador curitibano teve a rara oportunidade de conhecer um talento indiano tão grande quanto Satyajit Ray: Ritwik Ghatak. Meghe Dhaka Tara é seu filme mais reconhecido internacionalmente, e talvez a melhor porta de entrada possível para seu cinema sensível e inventivo. Queria ter revisto em tela grande. Cheguei depois. Amigos me falaram do impacto da descoberta. Já era hora. Essa talvez tenha sido a grande contribuição do Olhar: exibir filmes (como o de Ghatak ou o de Has) ainda a serem descobertos pela cinefilia.

E o que dizer de Amarcord, do hoje subestimado Fellini? Não é, certamente, um de seus melhores filmes. Prefiro, sem pestanejar, Os Boas Vidas, A Estrada, A Trapaça, Noites de Cabíria, A Doce Vida, Oito e Meia, Satyricon, Roma, Casanova, E la Nave Va e Entrevista (ou seja, Amarcord não entraria num TOP 10 do diretor). Mas é um de seus mais famosos, e Fellini é sempre Fellini, ou seja, um diretor com talento visual raro. Para mim, tudo que acusam em Oito e Meio eu vejo menos bem resolvido em Amarcord, ainda que o gênio esteja ali, evidente, em diversos momentos desse caleidoscópio irregular de lembranças. Fellini sempre foi episódico. Mas nunca antes de maneira tão irregular (seria de novo, depois, em Cidade das Mulheres e A Voz da Lua).

Não tenho muito o que dizer de Como Era Verde Meu Vale e Ninotchka a esta altura do campeonato. São obras-primas já devidamente reconhecidas de diretores então no auge de suas carreiras, principalmente Lubitsch, que começou a brilhar antes, ainda no final dos anos 1910, em sua Alemanha natal, mas também John Ford, que passou os anos 30 se agigantando como o diretor dos diretores em filmes magníficos e ainda hoje pouco estudados (seus três filmes de 1939 são célebres, mas jóias como Arrowsmith, Pilgrimage, Juíz Priest e Mary Stuart: Rainha da Escócia precisam ser mais conhecidos).

Sobram, então, os filmes contemporâneos. Vamos a eles:

Foco Matias Piñeiro

Os filmes de Matias Piñeiro são simpáticos, no máximo, e por isso não vejo como uma master class com esse diretor possa ser um ganho para a cinefilia curitibana, ou para o viajante. Por outro lado, é sempre bom ouvir alguém com uma carreira já minimamente estabelecida, e Piñeiro, mesmo que não seja um grande diretor, tem quatro longas no currículo, sendo que o pior não é menos que razoável.

A inspiração mumblecore é onipresente em sua carreira, mas é mais sensível nos dois primeiros longas, El Hombre Robado (2007) e Todos Mienten (2009). Pode-se ver alguns achados visuais, sobretudo no segundo. Mas não o suficiente para tamanho destaque a esse diretor.

Viola (2012) começa sugerindo uma abertura. Com o começo desse filme, Piñeiro até pode, num surto de ousadia, reivindicar uma inspiração cassaveteana (não sei se ele a reivindica, provavelmente não, ou infelizmente não, pois se ele tivesse essa inspiração seria um cineasta mais sólido). Mumblecore é a diluição de Cassavetes, e quem se aparenta ao mumblecore deveria ser automaticamente impedido de falar em Cassavetes. Nesse sentido, a parte inicial de Viola é uma clara progressão, ainda que Cassavetes continue parecendo inalcançavel. Ou a maturidade, já que a abertura não é tão grande assim e no fundo é aquilo que ele já fez, melhor feito agora: a câmera continua se movendo entre atores e atrizes, com preferência para elas; a movimentação em cena continua sendo num sentido de vai e vem, em que há uma espécie de rodízio entre quem fica mais próxima da

A Princesa da França (2014)

A Princesa da França (2014)

câmera, sendo que esse rodízio se dá naturalmente, enquanto a câmera flagra os movimentos, evitando muitos cortes, fluindo ao ritmo dos diálogos. Logo, porém, Piñeiro volta a seu habitual, com suas atrizes habituais, suas pequenas intrigas, e perde o encanto, embora a mise en scène, no fundo, não mude. Viola, noves fora, é mais do mesmo.

Não conhecia seu quarto longa, A Princesa da França, que continua os jogos de Viola em apenas 66 minutos, e que me pareceu uma progressão mais sensível no sentido de que seus habituais jogos amorosos/artísticos são um pouco melhor estruturados. Temos atores e atrizes em Buenos Aires às voltas com um texto de Shakespeare. Ou seja: é mais um capítulo da obra desse diretor interessante, mas que cresce a passos demasiadamente lentos. Sendo complacente, um diretor de personalidade, a ser seguido. Sendo rigoroso, um falso autor inventado por entusiastas do cinema contemporâneo.

A Cidade do Futuro, de Claudio Marques e Marília Hughes

Apresentado por Claudio Marques como um filme assumidamente imperfeito, cheio de lacunas para o espectador completar, A Cidade do Futuro talvez exagere nessa imperfeição, provavelmente pela enganosa ideia de que a imperfeição assumida será perdoada.

Devo dizer que esperava bem mais desse longa, tanto porque Marques e Hughes fizeram um dos curtas mais estranhos e belos feitos ultimamente no Brasil, Nego Fugido, quanto pelo belíssimo longa de estreia Depois da Chuva, que defendi, inclusive na Folha, como o maior filme brasileiro realizado por diretores da nova geração (o que ele ainda é).

A Cidade do Futuro (2016)

A Cidade do Futuro (2016)

A Cidade do Futuro parece um apanhado de planos à procura de uma estrutura, por menor que seja. Mesmo que vários desses planos demonstrem como o casal está milhas acima da média do cinema brasileiro contemporâneo na questão do olhar, do saber o que fazer com uma câmera, senti falta de uma construção, algo que permita conhecermos melhor a vida e a rotina dessa família formada por afinidades. Em um momento, Gilmar e Igor fazem juras de amor, no momento seguinte, estão separados. Depois se unem novamente. Alain Resnais fez um filme inteiro omitindo acontecimentos importantes na vida de uma mulher de trinta anos: Muriel, ou o Tempo de um Retorno (1963). Mas percebe-se claramente uma estrutura, uma construção dramática por trás da desdramatização e mesmo da ocultação dos acontecimentos. É justamente essa construção que permite a Resnais eliminar o que normalmente não se eliminaria, e deixar o espectador imaginar. Nem é o caso do filme de Marques e Hughes, porque testemunhamos muitos momentos importantes vividos entre os três: os confrontos de Milla e Igor com os familiares, os sinais de preconceito na região onde moram e o ultrassom para ver como está o bebê de Milla (como bem apontou um amigo, não precisava reforçar tanto a questão do médico cubano, pois o recado já estava dado). O problema maior, penso, é que faltaram alguns tijolos que pudessem deixar as lacunas menores, e por isso mais convidativas para que o espectador as completasse. É algo que uma revisão pode comprovar ou não, mas foi o que senti numa primeira visão.

Mesmo quando há acertos, e há alguns, eles aparecem acompanhados por algum deslize. Como acontece no plano final em que as mãos se encontram selando a nova família. Um plano que deveria durar mais, muito mais, pois a tela negra que surge em seguida o interrompe tão abruptamente que parece até que não é um momento importante, que houve algum medo de soar piegas. Da mesma forma, o paralelismo dos casais homossexuais namorando no começo se enfraquece porque a ruiva que estava com Milla, num diálogo tocante, desaparece no restante do filme. Eis uma lacuna que, a meu ver, não deveria existir.

Marques e Hughes filmam bem. Existem alguns planos bem felizes. Até o momento de coreografia, modinha recente em filmes brasileiros (tributo a Apichatpong, penso), surge como um sopro de qualidade. A sequência na piscina é bem interessante, com a câmera escorregando como no escorregador que vemos em primeiro plano até os jovens que tomam banho de sol; a do ultrassom tem seu charme, as de carinho na barriga de Milla, algo muito real, sensível. Faltou mesmo uma maior preocupação com o nível de imperfeição. A impressão final é a de que o filme ainda não está pronto.

O Estranho Caso de Ezequiel, de Guto Parente

Guto Parente é o talentoso diretor da Alumbramento que há quatro anos nos arrebatou com Doce Amianto (co-direção Uirá dos Reis) e no ano passado voltou a empolgar com um terror mais direto chamado A Misteriosa Morte de Pérola (co-direção de Ticiana Augusto Lima). Entre o experimentalismo alucinado do primeiro e o exercício mais regrado pelos códigos do filme de horror do segundo, Parente, desta vez sozinho, ficou no experimentalismo vazio, em que fantasmas e extraterrestres dividem camas e exploram espaços em tempos diferentes. Pode-se dizer que ele tentou juntar as duas experiências anteriores num único filme, e apesar de alguns planos que isoladamente transmitem beleza, o conjunto é demasiado insatisfatório.

Talvez Deserto Talvez Universo, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes

Uma indisposição física incontornável no momento me impediu de ficar até o fim do filme, mas, infelizmente, não posso dizer que a parte vista me impelia a isso. Vi, contudo, mais da metade, e sobre o que vi posso dizer algumas poucas palavras, sempre com a ressalva de que o filme pudesse crescer depois de eu ter saído, embora relatos passados por quem o viu inteiro me deixem pensando que essa hipótese seria bem improvável. Rodado em preto e branco (sem que tenha ficado claro um porquê) num hospital português, o filme acompanha alguns internos, mais ou menos como forma de entrevista, mas também com olhar observacional. O que me impressionou é a posição da câmera, que em quase todos os momentos parece estar no lugar errado, talvez para provocar um efeito de estranhamento que não funcionou até onde vi.

A Última Terra, de Pablo Lamar

De certo modo, este longa é tudo que Lisandro Alonso perseguiu sem sucesso no começo de sua carreira. Sua única limitação, por sinal, é a mesma de tantos outros filmes contemporâneos: lembra demais outras coisas. Além de Alonso, entram no caldeirão de Lamar: Carlos Reygadas (via Japón), Hamaca Paraguaia, algo de Pedro Costa e algo de Alexander Sokurov (via Mãe e Filho), entre outras referências pensadas na hora e agora, no momento da escrita, já esquecidas. Dito isso, o filme tem, sim, certa personalidade. Na ausência de diálogos existe a procura por captar a aflição de um homem que perde gradualmente sua esposa moribunda. Os cuidados com ela, tentando ajudá-la a respirar pela última vez, limpando depois seu corpo falecido, o fogo, a mata escura, a cabana rústica. Poesia pura, minimalista e aflitiva, em apenas 70 minutos.

Gulistán: Terra de Rosas, de Zaynê Akyol

Basicamente um documentário que mostra soldadas na preparação para a luta contra o ISIS, no Curdistão, Gulistán não deixa de ser um interessante retrato da espera, com suas aflições e preocupações diversas, mas também com momentos de relaxamento, com conversas sobre a vida e o mundo testemunhadas pela câmera atenta da cineasta (turca, de origem curda). É também, e essa é sua maior força, um retrato da leveza e sensibilidade femininas, um filme sobre a presença e a força da mulher em um mundo ainda controlado e dominado pela brutalidade masculina (o filme começa, aliás, com uma delas falando diretamente para a câmera). O scope reforça o contato dessas mulheres e dos homens (que a horas tantas as ajudam) com a paisagem local, as montanhas, a vegetação, o deserto, e as impressionantes vistas noturnas da cidade à noite, vistas das montanhas, as luzes se impondo no escuro. Um belo filme, com um belo olhar de Zaynê Akyol, diretora em início de carreira, a ser seguida com atenção.

Um Outro Ano, de Shengze Zhu

Um Outro Ano (2016)

Um Outro Ano (2016)

Filme chinês com três horas de duração que dá um sentido raro a um novo tipo de cinema-instalação, bem ao gosto do espectador pós-moderno. A ideia é que o espectador atual raramente vê um filme parado, numa relação autista (e necessária, penso eu) com a tela de cinema. Ele vê um filme enquanto escreve no facebook, responde mensagens de whatsapp ou vê o que o amigo acabou de postar no Instagram. Tudo ao mesmo tempo. Nesse sentido, o espectador é como um transeunte dentro de um museu de arte contemporânea. Ele se depara com um video-instalação, acha interessante, vai para outra sala, volta e vê a mesma instalação em outro ponto, de um outro modo.

Não é o tipo de cinema que me interessa, e na verdade tenho até dúvida se é mesmo cinema. Mas é verdade que Um Outro Ano é muito bem resolvido dentro dessa ideia. Vemos treze meses, de janeiro de um ano a janeiro do outro, dentro de uma casa de família numerosa e pobre, quase sempre no horário das refeições. Cada mês é representado por um plano único, com a câmera fixa durante 10, 15 minutos, às vezes menos, ou até mais (o benefício e o perigo do digital). Os meses (planos) são divididos por uns dez segundos de tela escura, sem som, e muitas vezes o corte interrompe bruscamente uma ação. Ou seja, funciona mesmo como instalação, o que é salientado pelo crédito principal, que surge quase no final do filme, mas perfeitamente justificável. É evidente, porém, sua construção, que faz com que o espectador tenha um painel completo se o vir inteiro, do início ao fim, mesmo que a incompletude seja a força que move o filme (o que a composição imperfeita de alguns planos demonstra).

O plano de janeiro nos mostra a casa cheia de coisas, as crianças, os adolescentes e os adultos de várias idades. O plano de fevereiro é o contraponto, com a câmera colocada no lado oposto da sala. No plano de março, um dos mais belos, a câmera está mais ou menos no lugar onde estava a televisão, conforme vista nos planos anteriores, enquanto pai e filha estão jantando numa pequena mesa. Em abril, começa a ficar inusitado: vemos apenas uma foto da família colocada em cima de um enfeite de parede, e sobre a foto uma moldura de vidro que permite vermos o reflexo de um filme que passa na TV, enquanto tudo mais acontece no extracampo. Segue adiante apresentando novos recortes dessa casa, dessas vidas, desse microcosmo que simboliza a nova China.

Nos Últimos Dias da Cidade, de Tamer El Said

Filme egípcio iniciado em 2008 e completado apenas em 2016, com cacoetes do contemporâneo, mas algo a acrescentar ao cenário em média desolador. A câmera na mão, frequentemente fora de foco, move-se sem muito pensar, com um ou outro zoom nada a ver e certa tremedeira de butique (é a câmera preguiçosamente documental usada preguiçosamente numa ficção). Ela segue esse cineasta, e ele analisa o material de seu próximo filme enquanto as notícias internacionais permeiam a narrativa, mostrando a tensão de nossos tempos.

O que tem a acrescentar? O encontro com cineastas de outros países, por exemplo, começa parecendo ideia do Raya

Nos Últimos Dias da Cidade (2016)

Nos Últimos Dias da Cidade (2016)

Martin, mas depois engrena, com uma reflexão sobre a região e sobre o viver em território que está sempre em conflito. O olhar do cineasta (tanto o de dentro do filme quanto o do filme) compõe um material interessante de como é viver na capital do Egito, Cairo, e como é filmar em suas ruas, filmar seu povo. Tudo isso, repito, é em parte soterrado pelos cacoetes do cinema contemporâneo.

Agora, a pergunta: durante os oito anos de filmagem, será que Tamer El Said, aqui em um ambicioso filme de estreia, progrediu como cineasta, no sentido de pensar a câmera? Porque os registros mudam, e o filme alterna altos discretos e baixos desanimadores nesse sentido. Por vezes sinto que os planos devessem ser acompanhados pelas datas de quando foram feitos. Seria didático de como progrediu a concepção do filme. No mais, há uma força inegável: Nos Últimos Dias da Cidade conta a história recente do Egito.

Irmãos da Noite, de Patric Chiha

Documentário que mostra jovens do leste europeu se prostituindo pelas noites de Viena. Começa com imagens de um barco no rio Danúbio, enquanto o Adágio da 10ª Sinfonia de Mahler me fez lembrar do Adagietto do mesmo compositor abrindo Morte em Veneza. Seria uma homenagem de Chiha a Visconti? Fassbinder havia homenageado o mesmo filme, com o Adagietto, em sua obra-prima, Num Ano Com Treze Luas, com o qual Irmãos da Noite tem breve relação, antes de se assumir como um Larry Clark mais comportado. As cores do filme parecem uma mistura de Querelle com as imagens de TV Led que vemos em loja, aquele azul feio de programa de auditório, aquele rosa berrante de algodão doce. Esse tratamento infeliz, que não dura o filme inteiro e nem poderia (seria insuportável), ajuda a fazer de Irmãos da Noite uma obra lamentavelmente desinteressante.

O Vento Sabe Que Eu Volto à Casa, de José Luis Torres Leiva

Sabemos que premiações não valem nada, mas o júri desta edição do Olhar, tendo três ótimas opções na mostra competitiva (A Última Terra, Um Outro Ano e Gulistan), resolve premiar este documentário chileno que se não chega a ser ruim está longe de ser premiável num mundo perfeito (em nosso mundo no século 21, filmes premiáveis raramente ganham alguma coisa). Os jurados podem ter se impressionado com as pessoas, principalmente crianças e adolescentes, que brilham na tela de vez em quando. Ou com a estrutura de filme a ser feito dentro do filme. Coisas para impressionar os impressionáveis (copyright: Inácio Araujo).

Algumas imagens de cartão postal de Chiloé, ilha chilena, e pouco mais é o que temos nesta espécie de Making Off de um futuro filme (do cineasta Ignacio Aguero, que existe de fato) que procurará dar conta de uma tragédia local acontecida há mais de trinta anos. O protagonista cineasta anda de carro à procura de locações, ouve as pessoas do local procurando entender seus costumes, faz testes de elenco. Mas em momento algum sentimos que essa estrutura é a mais ideal para conhecermos Chiloé ou as pesquisas de Aguero. Se o filme for realmente feito, este documentário de Torres Leiva será um extra de DVD um tanto longo e enfadonho, indicado apenas para os fãs de Aguero.

Homo Sapiens (2016)

Homo Sapiens (2016)

Homo Sapiens, de Nikolaus Geyrhalter

É muito triste ver coisas por onde outrora circularam muitas pessoas agora totalmente abandonadas. Pois é justamente isso que Nikolaus Geyrhalter nos mostra, em 90 minutos de planos fixos e sons dos ambientes, sem qualquer narração ou diálogo. Um convite à imersão no abandono, chamada ironicamente de Homo Sapiens, ou seja, o homem, justamente o que está ausente nas imagens.

Por vezes aflitivo, o retrato das coisas que já foram e não são mais oferece um bom estudo em composição visual, uma vez que o diretor pensa muito bem o local onde coloca a câmera e as distâncias, como fica claro já no começo, quando sucessivos planos revelam, do detalhe ao plano aberto, uma arena em ruínas. São cidades fantasmas. E no final, tudo é tomado pela nevasca. Bonito.

Geyrhalter é muito bem considerado pela crítica internacional como um dos grandes documentaristas contemporâneos. Dele só conhecia Abendland (2011). Mas seus filmes costumam chegar à Mostra SP (como o anterior a este, Ao Longo dos Anos). Uma pena que a regra do ineditismo impeça que este Homo Sapiens chegue em São Paulo por essa mesma via.

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