Ano VII

Prazer narrativo (Dossiê Rivette)

segunda-feira mar 28, 2016

celinejulie

Prazer narrativo: dois filmes de Jacques Rivette

por Robin Wood

Apesar do devotado empenho de alguns poucos críticos (excepcionalmente, Jonathan Rosenbaum), os filmes de Jacques Rivette ainda estão por se estabelecer como uma presença maior no cinema moderno e no desenvolvimento da cultura cinematográfica[i]. Assim, passei a crer com uma firme e crescente convicção que eles merecem tal posição, e que todo esforço deve ser feito para assegurar-lhes uma distribuição mais adequada e um público maior. Que a maioria dos filmes permaneçam amplamente inacessíveis (seja não disponíveis ou raramente exibidos) é uma grande judiação pelo mais simples e básico motivo: que abordados com as expectativas corretas (ou, pelo menos não com as incorretas) os filmes tem uma enorme capacidade de proporcionar um deleite. O entusiasmo (tanto intelectual quanto emocional) com o qual meus alunos responderam a Amor Louco e Céline e Julie vão de barco foi inconfundível: o tipo de resposta direta que nada tem a ver com a tentativa de agradar um professor. Os filmes lhes falaram imediatamente e os engajaram totalmente; houve a sensação, na discussão que se seguiu, de que várias novas potencialidades foram abertas.

Essas potencialidades estão, por certo, intimamente ligadas à liberdade narrativa e às inovações formais dos filmes, mas elas também transcendem o nível da experimentação formalista. E vendo os filmes novamente, devo confessar uma certa insatisfação com a ênfase dada por Jonathan Rosenbaum e outros defensores de Rivette (esperando que isso não soe de forma ingrata: sem essa defesa, pode ser que minha atenção nunca tivesse sido direcionada aos filmes). O efeito dessas ênfases tem sido de criar uma certa impressão abstrata dos filmes, repetidamente reforçando a importância de seus jogos com a narrativa, mas deixando o leitor com a sensação de que não importa muito sobre o que as narrativas tratam: qualquer narrativa desgastada serviria, contanto que a dominação ilusionista do espectador seja minada e sua lógica clássico-relista rompida. Em alguns momentos, Rosenbaum insiste na força política dos procedimentos de Rivette. Por exemplo, em sua introdução no indispensável livreto do British Film Institute (Rivette: Texts and Interviews) nos deparamos com provocações claras como “…há muito mais implicações políticas a serem encontradas nesses filmes – se dirigindo diretamente à maneira como espetáculo e espectador conspiram para produzir ou negar significados – do que na obra reunida de cineastas puramente ilusionistas e não reflexivos como Fassbinder, Herzog, Pakula ou Rosi.” Assim (deixando de lado todas as diversas perguntas tentadoras que isso levanta, como sobre a felicidade dessa lista um tanto quanto estranha ou a validade do rótulo indiscriminadamente colocado nos seus quatro integrantes), o efeito geral do ensaio é reforçar a noção de Rivette como um experimentador formalista periférico. Uma entrevista da Film Comment (por Rosenbaum, Lauren Sedofsky e Gilbert Adair, setembro-outubro 1974) consegue discutir Céline e Julie extensivamente sem em momento algum abordá-lo como central e predominantemente um filme sobre mulheres e uma das mais radicais e positivas declarações feministas que o cinema já alcançou (Adair nos informa que o filme é “aberto a tantas interpretações quanto há espectadores”, uma não inusual forma de abdicação crítica, especialmente em relação ao mito do “texto aberto”; nesse caso, patentemente sem sentido). O objetivo desse artigo, então, não é apenas manter viva a batalha pela maior acessibilidade aos filmes de Rivette, mas também tentar restaurar-lhes o significado e a força sócio-política cuja defesa de Rosenbaum tende a obscurecer.

De forma preliminar, tem de se confrontar brevemente a mais óbvia excentricidade e heresia comercial dos filmes: sua duração (Amor Louco tem 4h15, Céline e Julie 3h15; e Out One: Spectre realizado entre eles é – mesmo ignorando a existência de uma versão de quase 13 horas – mais longo que ambos). Por que os filmes tem de ser tão imprudentemente longos? A mais simples – e provavelmente mais importante – resposta é que não há razão socialmente aceitável: nenhum dos usuais pretextos usados para justificar a duração de, por exemplo, E o vento levou, 1900 ou O franco atirador funcionam aqui. Claramente, a duração de nossos programas de cinema está intimamente ligada com as mais óbvias condições da presente fase do capitalismo de consumo: trabalho alienado, semana de cinco dias, jornada das 9h às 17h, o núcleo famíliar; norma comum para todas as classes – de empregado a executivo – que necessitam que a “folga” (excluindo-se os finais-de-semana) seja encaixada num período de 2-3 horas entre o momento em que as crianças são postas para dormir e a ida cedo para a cama exigida pela jornada do dia seguinte. Em outras palavras, de acordo com qualquer uma dessas frases feias e brutas – mas completamente assumidas como verdade – que caracterizam nossa cultura, “tempo é dinheiro”; e se formos entregar quatro horas de nosso “dinheiro” para assistir a um espetáculo, temos de ser repetidamente lembrados de que tal espetáculo que estamos comprando foi extremamente caro, de que estamos comprando um bem visivelmente valioso. Os filmes de Rivete são, pelo contrário, perceptivelmente baratos: apesar de sua duração, eles são claramente “baixo orçamento” (Céline e Julie foi até mesmo filmado em 16mm). Tampouco a duração dos filmes é justificada pela complexidade do enredo, vasta quantidade de personagens, acontecimentos “épicos”. Qual é o enredo de Amor Louco? Sebastien tenta produzir Andrômaca, Claire enlouquece. Rivette poderia facilmente nos ter contado isso em quinze minutos e nos poupado das outras supérfluas quatro horas.

A “injustificada” duração dos filmes representa, então, um ato de transgressão cultural. A pergunta “Por que dessa duração?” deveria imediatamente provocar uma outra, recíproca: Por que a duração padrão? Por que devemos esperar, automaticamente, que nossos filmes durem entre 90 minutos e duas horas, e nos sentir trapaceados se eles durarem menos, ou exigir justificativas especiais se eles durarem mais? Rivette não apenas demanda nosso tempo, mas também nossa paciência. Temos de encarar longos trechos de filme em que não parece acontecer muita coisa (em termos de expectativas da narrativa tradicional para a qual o cinema mainstream nos condicionou, nos conduzindo de forma lógica, ponto a ponto, através do processo tradicional de perturbação da ordem-restauração/reposicionamento) ou mais do mesmo parece continuar acontecendo ou volta a acontecer. Mesmo assim, poucas pessoas que encararam os filmes de Rivette do começo ao fim, parecem querê-los mais curtos (alguns os rejeitam em conjunto, mas mesmo esses não parecem questionar que a duração é, de alguma forma, parte do ponto, um componente essencial das “práticas de significação” do filme, sua função junto à cultura). É o fato mesmo de que a duração é desnecessária que a torna tão indispensável. As passagens aparentemente arrastadas (os filmes parecem mais curtos a cada vez que os revemos) são os meios mais efetivos de nos forçar a questionar a experiência que o cinema mainstream nos oferece, a posição que ele nos coloca. Assim como com a pergunta “Por que dessa duração?”, a pergunta “Por que nos está sendo pedido para assistir a isso?” levanta uma recíproca: Por que, “normalmente”, nos é pedido para assistir aos padrões específicos “aqui” transgredidos? Outras perguntas imediatamente se seguem: O que torna uma narrativa “interessante”? Estamos condicionados a aplicar apenas critérios muito limitados de “interesse”? Podemos aprender a nos interessar por outros procedimentos narrativos? As questões são tão radicais e políticas quanto assim as quisermos.

Não estou cumprindo, porém, até então minha promessa. Disse apenas um pouco mais do que Jonathan Rosenbaum havia dito muitas vezes: que os filmes de Rivette constituem uma intervenção radical e disruptiva, a nível formal, no cinema mainstream. A fim de ir além e explorar questões acerca do que os filmes realmente tratam sobre e como isso se relaciona com (exige) suas inovações formais, eu quero apresentar algumas noções fundamentais sobre a nossa cultura e a função da arte nela – noções que assim que postuladas parecem auto-evidentes, mesmo que, assim como diversas coisas que são auto-evidentes, raramente são confrontadas diretamente (é apenas pela recusa em confrontar o que é auto-evidente que nossa cultura previne uma revolução total e imediata). Nossa cultura ocidental é – e sempre foi, desde o princípio da história escrita – patriarcal: o que quer dizer não apenas dominada por homens, mas dominada pela figura do Pai, que deve ser compreendida tanto literalmente quanto simbolicamente. O pai é a cabeça da família, o Papa é pai da igreja, Deus Pai preside sobre tudo. Nossas instituições – que tanto representam quanto criam a ordem social – são dominadas por figuras paternas (presidente, juiz, delegado, presidente do conselho, presidente da companhia) e incorpora (mesmo que elas sejam, ocasionalmente, mulheres) o princípio da autoridade patriarcal. O ordenamento social é, então, a execução da Lei do Pai, e consiste em submeter todos os grupos subordinados (mulheres, crianças, gays…) aos seus lugares “corretos”. Obviamente, as especificidades de nossa situação cultural corrente adiciona a isso considerações de raça, propriedade e classe: o “pai” privilegiado de nossa sociedade é o homem adulto, branco, burguês e heterossexual.

De uma forma geral, através dos tempos a arte tem sido a ilustração, reduplicação e reafirmação dessa ordem no nível da ideologia; ela também tem precariamente contido (devido às suas infindáveis ambiguidades) as diversas rebeliões contrárias, com essa contenção envolvendo um perigoso reconhecimento de tais existências. Nossa herança artística e literária representa (tomada no geral, como método de contenção) uma esmagadora reduplicação das estruturas patriarcais. As noções tradicionais de arte como representação e de arte como ordenamento não podem mais ser tomadas como naturalmente dadas: temos de nos perguntar o que precisamente está sendo representado (não a “realidade”, simplesmente, mas uma realidade culturalmente definida, de uma perspectiva particular e analisável) e que ordem está sendo imposta ou reproduzida (não a ordem da natureza, mas a ordem da cultura). Isso revela todo um novo conjunto de pais: o artista, o autor, o diretor do filme – e suas respectivas auto-apontadas funções de “representar” e de “ordenar”. Não é de se menosprezar as conquistas das mulheres nas artes (especialmente das grandes escritoras – Austen, Brönte, Eliot), dito isso, no nível simbólico, a figura familiar do autor onisciente é masculina. O autor homem sabe de tudo, desde o princípio, e guia o leitor (espectador) por etapas “lógicas” à posição privilegiada da qual ele/ela pode compartilhar tal conhecimento: o conhecimento operando tanto no nível da narrativa/hermenêutica/suspense do “o que aconteceu?” (tradicionalmente, quem se casou e quem morreu) e no nível de valores estruturais (quem foi recompensando, quem foi punido e como devemos enxergar tais acontecimentos).

Se é o homem quem representa, é a mulher (claro que não exclusivamente) quem é representada: a relação artista/modelo é um arquétipo da relação homem/mulher. Seria tolo argumentar que toda a função tradicional da arte tem sido a de circunscrever as mulheres em seus devidos lugares dentro do patriarcado, mas essa é claramente uma de suas funções tradicionais, e uma das principais. Com ela vem, claro, toda uma estrutura de premissas acerca da sexualidade e das relações sexuais.

Os procedimentos narrativos de diretores progressistas anteriores à “Nova Onda”, como Renoir e Ophuls (ambos muito admirados por Rivette), podem ser vistos como passos preliminares nesse hesitante, desigual e vagaroso processo em direção à libertação, o qual a civilização tem de empreender caso queira sobreviver. Eu quero argumentar que Amor Louco representa um passo mais decisivo, fundindo tais procedimentos, e que Céline e Julie é a celebração triunfal de um ponto de chegada: mesmo que seja uma chegada que pareça muito avançada para as estradas que ainda tem de ser percorridas.

A derrocada (ou abdicação voluntária) do autor/diretor homem é, ao mesmo tempo, o assunto da narrativa de Amor Louco e incorporada nas suas estratégias formais. Crucial para isso é a sua sistemática colocação em primeiro plano do processo de representação. Sua estrutura se assemelha a de uma caixa chinesa, ou a de uma das bonecas russas que Claire adquire e desmonta em uma crescente fascinação desesperada; ao mesmo tempo, o negócio da representação não é mais prerrogativa de uma única e onipotente figura patriarcal, mas dividido entre um certo número de representantes operando em diferentes meios e em diferentes níveis. Rivette persuadiu Jean-Pierre Kalfon a conceber e ensaiar uma montagem de Andrômaca, de Racine; ele então persuadiu André S. Labarthe (um dos críticos mais importantes dos Cahiers, à época) a fazer um documentário televisivo (em 16mm) sobre os ensaios, entrevistando os atores acerca de seus papéis e experiências. Tanto a Kalfon quanto a Labarthe foi permitida completa autonomia na produção e direção, enquanto que suas empreitadas permaneceram nas fronteiras da ficção: isso para dizer que nunca houve sérias questões sobre a montagem da peça ser realmente encenada ou do documentário ser realmente exibido na televisão. Temos então Rivette fazendo um filme sobre Labarthe filmando um documentário de Kalfon montando uma peça de Racine, que reinterpreta um mito grego. É verdade que o nível superior da representação – o filme em 35mm de Rivette – não é questionado, ou seja, seus mecanismos não são explicitados a maneira godardiana (mostrando-se as câmeras, claquetes, etc…o reconhecimento dos atores enquanto atores) sendo os outros níveis (nos quais os mecanismos são explicitados) contidos numa ficção “realista”. Mas o filme promove consistentemente tamanha percepção do aparato de representação que a percepção do filme mesmo como uma construção se torna inescapável, simplesmente a culminação lógica da estrutura da caixa chinesa. O problema da representação (como se monta Racine? Como se dirige os atores? Como se filma um ensaio?) é um componente importante da temática do filme. No nível formal, os frequentes cortes entre o 35mm e o 16mm não permitem que o espectador ignore por muito tempo a percepção dos meios fílmicos.

É central para o filme a analogia sugerida entre Sébastien (Kalfon) como produtor e Rivette como diretor. A crise de confiança em si mesmo de Sébastien – sua crescente incerteza acerca do que está fazendo e seu direito em fazê-lo – é precipitada pela recusa de Claire em ser dirigida e sua desistência da peça: cada etapa nessa abdicação progressiva como controlador da performance é contraposta com a deterioração de seu relacionamento e pela entrega de Claire à insanidade. Ao longo do filme, Sébastien vacila entre um desejo de se render ao autoritarismo (sobre a montagem, sobre o texto, sobre Claire) e um medo de abdicar do mesmo: pode-se citar sua atitude ambivalente em relação ao “João Bobo”, com o qual ele e Claire brincam na cama, e onde ele ao mesmo tempo se ressente do fato de que o brinquedo não emerge e também contempla (de forma positiva) a possibilidade de um “João Bobo” mulher! Sua própria descida à loucura (ou a um estado que remete muito a isso) é abordada de forma ambígua em suas motivações: por um lado ele voluntariamente adentra a insanidade para se juntar a Claire, como único meio de manter contato e ajudá-la; por outro, sua descida surge como uma consequência lógica de sua abdicação, uma necessidade pessoal, uma auto-punição (expressada de forma mais clara na cena em que rasga suas roupas e se corta com uma lâmina de barbear). Não conheço nenhum outro filme que comunica de forma tão poderosa o terror de alguém ao se deslocar de sua posição e identidade ideologicamente construídas, socialmente condicionadas e ratificadas – portanto, seguras – em direção à… que? Esse é precisamente o questionamento com a qual o filme nos deixa: um questionamento político, se em algum momento houve algum.

Por um momento, parece que ambas as histórias – a de Claire e a de Sébastien – serão resolvidas. Na medida em que o compartilhamento, por parte dele, da loucura dela, é um ato de terapia, se torna algo bem sucedido, apenas de uma forma irônica e imprevisível: quando ela retorna de sua loucura é a fim de se dar conta de que deve deixá-lo. No instante em que ele liga para seu assistente e marca um ensaio. Somos lembrados que enquanto ele abdicou de uma posição claramente definida como organizador patriarcal, ela não tinha muito do que abdicar. Mas assim como a jornada de Claire no trem (com a qual o filme começa e termina) não tem um objetivo específico, também a primeira apresentação nunca acontece. Sébastien (ator e também produtor, portanto, indispensável para a montagem) se encontra jogado no chão do apartamento, ouvindo fragmentos da gravação da desintegração, no gravador de fitas de Claire, enquanto a platéia do teatro aguarda.

Numa cena que pede para ser lida como uma confissão, tanto pela parte de Rivette como também pela de Sébastien, esse último fala sobre a intenção e o estágio da montagem de Andrômaca. Ele chegou à conclusão de que Racine deve ser recitado como uma “conversa”, e isso emerge no contexto não apenas como uma percepção sobre o texto de Racine mas uma percepção sobre os atores: que cada um deve falar como ele/ela mesmo, ao invés de ter uma abordagem uniformizada de entregar o texto imposta pelo produtor. No caso, a montagem que finalmente prossegue torna-se um equivalente impressionante para o método geral do filme, seu idiossincrático balanço/tensão entre naturalismo e formalismo: as “conversas” dos atores, sem abandonar sua naturalidade, se ritualizam pelo uso de uma série de instrumentos de percussão que pontuam as frases.

A segunda conclusão de Sébastien – conectada à primeira – é de que o propósito da montagem deve ser a satisfação dos participantes, ao invés da da platéia. Isso é claramente crucial para o cinema de Rivette e soa como um afronta direta à diversas ideias “democráticas” tradicionais acerca da arte e do entretenimento: que a função principal da arte é a comunicação, que o artista deve “respeitar” seu público, que a primeira coisa a se considerar é dar ao público o que ele quer. Mas Rivette rejeitaria, penso eu, apenas a últimas dessas (que marca, em todo o caso, o ponto a partir do qual “princípios democráticos” se fundem à exploração capitalista). De fato, seu respeito por seu público é mostrado precisamente no modo como o mesmo é deixado livre para aceitar ou rejeitar o que lhe é comunicado.

Esse último ponto requer esclarecimento. Existe um certo sentido no qual todo espectador é sempre livre: nada previne que ele/ela levante e deixe o teatro, a inteligência individual pode dizer “Não” para qualquer efeito, para qualquer estratégia, a qualquer momento. Ainda que a maioria dos filmes não sejam feitos para as livres escolhas das inteligências individuais. Num leque amplo de gradações (digamos, de Renoir e Hawks numa ponta do espectro, a Hitchcock e Kubrick na outra) eles pressupõem uma posição na qual o espectador também constrói, de momento em momento, de corte em corte. É muito difícil imaginar o que uma arte totalmente não-manipuladora poderia ser: supondo que o artista tenha algo (não necessariamente uma “mensagem” ou mesmo uma visão de mundo definida) o qual ele queira comunicar (ou por quê então ser um artista?), ele/ela sempre procura meios para estabelecer pontos, para guiar percepções, para determinar julgamentos. Assim, o espectro de níveis possíveis é muito amplo: a posição que o filme define para o espectador não precisa ser (como muitos na crítica cinematográfica recente tendem a sugerir) a de total e indefesa passividade, o diretor não precisa conceber sua função primordial como o determinante e limitador da resposta do espectador.

Amor Louco me atinge como um dos filmes menos manipuladores que já vi. Sua duração e seus tempos mortos são apenas um aspecto disso. Um princípio central da arte tradicional tem sido a economia: a presunção de que o “significado” da obra é dado sob certo clima ou momento composto de uma certa riqueza e complexidade, do qual o resto se move a favor ou contra, mas para o qual tudo na obra parece ser relevante e necessário (o momento em O franco atirador no qual o “tiro único” da caça e da carismática maestria de Robert de Niro se converte na bala que Chritopher Walken dispara contra seu próprio cérebro, pode ser o exemplo supremo). Esse princípio não está ausente de Amor Louco (pode-se claramente apontar certas cenas, certos acontecimentos, certas fases da narrativa que possuem uma óbvia significação estrutural/temática, nas quais “as coisas tomam corpo”), ainda que sua dominação seja significativamente desafiada. Os “momentos” estruturantes não são assinalados da forma como estamos acostumados, e podem haver desentendimentos para além do comum acerca de quais precisamente são esses momentos. Nos é permitido um inusual grau de liberdade em termos de onde encontramos significado, qual peso damos às diversas ações, discursos, gestos, como distinguimos entre o importante e o trivial (a grande exceção a isso, a caminhada de Sébastien pelas ruas, já perto do final do filme, marcada por planos subjetivos e uma música extenuante, culminando com a sua auto-confrontação numa janela-espelho, sempre me perturbou – sua ruptura com o tom geral e o método do filme soando arbitrária e improdutiva).

Amor Louco permanece para além do fato de que é dado mais ou menos o mesmo tempo de tela a Sébastien e Claire – essencialmente centrado na figura masculina. Ao longo do filme, é o homem quem age, sendo a mulher tanto passiva quanto indefesa ou agindo de forma ineficaz e fútil (como por exemplo, a tentativa de roubar um basset). A desigualdade é refletida nos procedimentos formais do filme: as sequências envolvendo Claire são majoritariamente em 35mm e dirigidas por Rivette (apesar de ter sido dado a Bulle Ogier muita liberdade de interpretação), sem equivalente na exposição da representação nas cenas de ensaio. O padrão ação masculina/passividade feminina é quebrado apenas pelas duas decisões negativas de Claire: de deixar a peça, no começo do filme; e de deixar Sébastien, ao final (as decisões podem ser encaradas como positivas, na medida em que são passos em direção à libertação de Claire, mas ambas tomam a forma de rejeição ao invés de afirmação).

Amor Louco é estruturado na oposição Sébastien/Claire: os dois personagens principais se opõem ao longo de todo filme, o conflito central é entre eles. Céline e Julie vão de barco é estruturado sob um conjunto muito diferente de oposições que unem as duas personagens centrais e as opõem ao peso do passado, ao peso da ideologia. Não é coincidência que as personagens centrais de Amor Louco sejam um homem e uma mulher enquanto que as de Céline e Julie sejam ambas as duas mulheres. O filme pode ser visto como um complemento, ao mesmo tempo em que uma ultrapassagem, do que podemos deduzir que Ophuls teria feito com La Femme de Paul: aqui, as mulheres se tornam plenamente autônomas, e são elas que decidem e determinam as ações e seus resultados, tanto quanto personagens como quanto atrizes.

Os créditos atribuem o roteiro a Juliet Berto (Céline), Dominique Labourier (Julie), Bulle Ogier, Marie France Pisier e, finalmente, Rivette, com di Gregorio creditado como escritor de diálogos: as mulheres trabalharam seus próprios papéis e decidiram, entre elas, toda a progressão do filme, providenciando Rivette apenas o ponto de partida sugerido. A distinção entre atriz e personagem é constantemente borrada – temos frequentemente a sensação de que Céline e Julie estão construindo o filme a partir de suas respectivas imaginações. No lugar do tradicional processo de leitura, através do qual deciframos um trabalho previamente construído, a fim de alcançar e compartilhar a privilegiada posição de sabedoria do autor; compartilhamos aqui – num nível pouco usual – no processo de construção, a divisão entre esse e o processo de leitura se tornando mais estreita do que em qualquer outro filme de ficção anterior que eu consiga me lembrar. Ao mesmo tempo, o processo tradicional de leitura é explicitado nas tentativas de Céline e Julie em decifrar a história junto da “casa de ficção”: elas se tornam leitoras de um romance, espectadoras numa peça, o público num cinema (debatendo, num certo ponto, se deveria ou não haver um intervalo, e decidindo contra o mesmo) – um público ao qual milagrosamente foi dado o poder de intervir na ação e determinar seu desenlace predeterminado.

O filme é estruturado numa série sistemática de oposições entre a história de Céline/Julie e a história junto da casa. Simplesmente traçar tais oposições é tornar explícito o sentido do filme.

1. “Realidade” vs. Ficção. O filme cria uma “realidade” que é mais fantástica do que os eventos na “casa da ficção”: o paradoxo é central para o seu significado. Sua “realidade” acomoda tranquilamente o sobrenatural, o fantástico, o sem sentido; sua ficção é governada, apesar de apresentada em fragmentos, por leis da narrativa realista clássica (plausibilidade, consistência das personagens, etc…) e não oferece espaço para o ilógico ou para a magia (exceto pelo fato das personagens na casa serem fantasmas de um passado distante). A fragmentação (nós primeiramente obtemos, junto de Céline e Julie, apenas flashes da história e temos de juntá-los como em um quebra-cabeça) destrói efetivamente o poder ilusionista da ficção realista, enquanto que a natureza mágica da “realidade” do filme mina as normas ideológicas baseadas em presunções e no “senso comum”. Os eventos dentro da casa não são meramente ficcionais mas “literalmente” adaptados de obras de um ilustre autor homem, Henry James, um romancista reconhecido pela perfeição formal, deliberada e consciente maestria e pela sistemática supressão de um evidente ponto de vista do autor; Céline e Julie (Berto e Labourier) inventam sua própria ficção/realidade, evidenciando o processo de construção.

2. Presente vs. Passado. As personagens da casa são – com exceção da garota Madlyn – os “mortos-vivos” (os paralelos com os zumbis de Romero podem não ser imediatamente óbvios, mas uma vez notados, são extremamente sugestivos). Eles representam o passado que perdura sobre o presente (sua estrutura de valores, como registrado em sua literatura):  legado da ideologia. Céline e Julie criam seu presente contra esse passado, no processo de destruição de seu poder. As personagens da casa (todos os quais desejam a morte da criança e são assassinos em potencial) são inteiramente governados pelos pressupostos assumidos do patriarcado. Céline e Julie (cujo incessante esforço é a fim de salvar a criança) rejeitam tais pressupostos e miram um futuro de seres libertos, autônomos – necessariamente muito menos claramente definidos.

3. Espontâneo vs. Encenado. Rivette deixou claro que no momento em que as filmagens começaram, o filme já estava todo roteirizado. Não obstante, se estabelece uma clara distinção entre o comportamento livre, impulsivo e espontâneo de Céline e Julie (das quais as cenas são consistentemente feitas de modo a dar a impressão de improvisação) e o comportamento “encenado”, extremamente estilizado (diálogos literários, movimentos e entradas teatrais) das pessoas na casa. Céline e Julie são marcadas como “livres”, aptas a inventar suas próprias vidas; as personagens da “casa” estão aprisionadas à uma performance predeterminada, suas falas lhes são dadas por um autor, suas ações e atitudes determinadas pelos pressupostos da ideologia dominante. Isso é sublinhado pela repetição das falas, gestos, cenas: eles são atores presos numa peça repetida perpetuamente, fantasmas eternamente condenados a reiterar seus erros em vida, fantoches da ideologia.

4. Liberdade vs. Aprisionamento. Céline e Julie tem livre trânsito: elas vão e vêm como bem entenderem, o apartamento é somente um lugar para comer, dormir e ficarem juntas. Por outro lado, Sophie, Camille e Olivier nunca saem de dentro da casa: suas vidas estão circunscritas pelas paredes. A casa – na qual todos os seus habitantes tramam uns contra os outros, competem entre si e essencialmente se odeiam – remete a Entre quatro paredes, de Sartre: pode ser vista como também ela mesma um símbolo da ideologia dominante (“a casa em que vivemos” – ou desejamos nos mudar e vê-la demolida).

5. Autonomia vs. Casamento. Céline e Julie rejeitam o casamento, e com ela as assunções pelas quais as mulheres são definidas, encontrando seu sentido através de sua relação com um homem. Num certo sentido, Céline toma o lugar de Julie quando o namoradinho de infância dessa, Guilou, retorna a fim de retomar seu relacionamento. Guilou quer tudo aquilo que um homem supostamente deve exigir de uma mulher: uma esposa/mulher (ambos estão vestidos em um branco virginal) e uma vagabunda (o diálogo obsceno). Céline (como Julie) o deixa, literalmente, com calças na mão. Na casa, por outro lado, o casamento é o objetivo supremo: toda a trama da “casa de ficção” é centrada nos esforços das duas mulheres em capturar Olivier como marido, seu único meio de assegurarem uma identidade para si próprias.

6. Foco no feminino vs. Foco no masculino. Céline e Julie controlam suas próprias vidas, expulsando todas as manifestações de dominação masculina. A cena na qual Céline assume o lugar de Julie a fim de aniquilar Guilou é balanceada/correspondida pela cena na qual Julie assume o lugar de Céline no clube noturno e denuncia (num momento claramente derivado de A vida é uma dança, mas levado mais adiante) o gerente e os clientes que querem objetificar a mulher como imagem sexual para os olhares masculinos. Na casa, mesmo que as ações sejam majoritariamente iniciadas pelas mulheres, é o homem “passivo” quem as determina e quem lhes concede seu objetivo. Olivier domina tudo, não pela força de sua personalidade, mas sim pela posição enquanto patriarca, residindo a motivação das mulheres apenas em se tornarem sua próxima esposa. Camille e Sophie frequentemente constroem a si mesmas como objetos para o olhar dele, em seus modos de vestir-se e maquiar-se, suas poses calculadas, suas expressões faciais. Suas atitudes são reprimidas e pervertidas em intriga e manipulação. A relação de Céline e Julie representa, pelo contrário, uma celebração das atitudes femininas, de uma energia não reprimida, aberta e dirigida. Muito diferente da de Camille e Sophie, sua beleza é mostrada como algo natural: a beleza de mulheres sendo elas mesmas, para elas mesmas.

7. Comunicação Telepática vs. Suspeita e Desconfiança. Se Celine assume o lugar de Julie para destruir as chances dessa de se casar, e Julie o de Céline, a fim de que essa perca a chance de conseguir um trabalho, não devemos ler tais ações como trapaça ou traição. Ao invés disso, somos levados a crer que cada uma está simplesmente executando o verdadeiro desejo da outra, porque sabem realmente quais são esses desejos e como satisfazê-los: cada uma livra a outra de um possível aprisionamento pela ordem patriarcal dominante. No filme, é confirmada repetidas vezes a existência de uma comunicação telepática, mágica. Podemos questionar se Céline e Julie representam dois lados da mesma personalidade, ou simplesmente a junção e entendimento indistintamente mútuo das necessidades de mulheres revolucionárias cansadas da tirania masculina.

Por outro lado, na casa (o mundo imaginário “real” da ideologia burguesa) não há uma comunicação direta sequer, apenas subterfúgios, decepções, manipulação, paranóia. Todos tramam contra todos, toda comunicação interpessoal (o que requer, como princípio, o desejo de comunicar) é bloqueada. Justapondo a ação na casa à relação de Céline e Julie, Rivette percebe o potencial da ficção de James em ser lida como uma crítica devastadora às relações heterossexuais sob o patriarcado capitalista.

8. Amizade vs. Inimizade. Céline e Julie estabelecem – não sem hesitação e dificuldade – uma parceria tão próxima quanto compatível com a preservação da autonomia individual. Na casa, as mulheres não podem nunca ser amigas: elas estão para sempre apartadas em sua competição pela posse do homem, seu único acesso ao poder. É a dominação ideológica do homem que as divide, torna a amizade impossível – como se buscou fazer com as mulheres através dos séculos, um ponto repetidamente confirmado ao longo de todo o cinema clássico.

9. Infantilidade vs. “Maturidade”. Esse é, provavelmente, o aspecto mais problemático do filme. Em seu decorrer, Céline e Julie se comportam como crianças: como nós, adultos, as aceitamos como corporificação de um novo (mesmo que provisório) ideal?  A casa apresenta, porém, a alternativa: “maturidade” é um conceito ideológico, fundado sob as normas do patriarcado. De acordo com o ideal, tais normas são feitas para serem incorporadas, o homem “maduro” se apossa da mulher, tornando-se por sua vez o pai; a mulher “madura” se conforma à estrutura patriarcal, tornando-se a mãe sábia e gentil. O conceito mesmo de “maturidade” é, por assim dizer, um aspecto da opressão da mulher (e dos gays) em nossa cultura: “maturidade” é, como a conhecemos, definida pelo homem heterossexual. Olivier, o patriarca, compassivamente passivo no centro das coisas é maduro; Camille e Sophie competindo desesperadamente pela sua atenção, prontas para matar uma criança a fim de alcançar seu glorioso final, odiando-se (e na verdade, a si mesmas) enquanto fingem afeição são maduras. Por outro lado, Céline e Julie desimpedidas, não necessitando de homem para a sua auto-definição, amando e aceitando, as salvadoras de uma criança a qual as pessoas maduras querem matar, são elas mesmas crianças. Ambos os grupos de personagens jogam jogos, com sentidos diferentes: Céline e Julie jogam por diversão e intercomunicação, para um prazer em conjunto; os jogos” de Camille e Sophie são subreptícios (estigmatizados pelo tradicional jogo dos “Passos da Vovó” na festa).

As implicações de tudo isso são enormes e profundos distúrbios. Como devemos (se aceitarmos os princípios da libertação da mulher, ou apenas da “libertação”, para a qual a libertação da mulher é crucial) nos relacionar com o passado e suas obras, que são os produtos do patriarcado e necessariamente estruturados por seus valores? O uso de Henry James no filme sugere um caminho, pelo menos, no qual as obras do passado ainda podem ser usadas (não como curiosidades “acadêmicas” ou documentos históricos que reafirmam padrões desacreditados): pela exposição das tensões impossíveis, a impossível deformação nas relações humanas que a ordem patriarcal acarreta.

E uma tradicional figura de longa data é, por fim, recuperada pelo filme e parcialmente repensada: a figura romântica da criança como símbolo do futuro, da esperança, da vida nova, da transformação possível (figura cuja história literária é devidamente documentada por Peter Coveney em seu Image of Childhood). Madlyn adquire conotações complexas no decorrer do filme. Ela deve ser vista, primeiramente e antes de tudo, como uma criança real, tratada por seus “amáveis” parentes como um peão descartável em seus jogos de poder; tratada por Céline e Julie como uma pessoa, sem condescendência ou sentimentalismo. Mas ela também está ligada à infância de ambas as mulheres. Em termos de aparência física, ela lembra de forma assombrosa Céline, e poderia, tranquilamente, se passar por sua filha; a conversa de Julie com sua antiga enfermeira revela que a criança da casa ao lado, que ficou doente e se foi (Madlyn no passado) era da mesma idade de Julie. Madlyn é, então, a criança dentro das duas mulheres: a parte saudável e crescente dentro delas mesmas, a qual elas resgatam do aprisionamento por parte da ideologia patriarcal.

Eu quero considerar, finalmente, as limitações do filme e a natureza de suas conquistas. Não sei ao certo se nesse estágio de evolução da sociedade (e do feminismo), deva se falar em “limitações” ou simplesmente em condições que tornam o filme possível. Uma das objeções com a qual me deparei (curiosamente, por parte de homens), a de que a caracterização de Céline e Julie descamba completamente nos mitos tradicionais do “feminino” (a associação de mulheres, explícita ou implicitamente, com gatos, bruxas e crianças), pode jogar a favor do filme. O argumento do feminismo não é de que não há algo como características “femininas”, mas sim que a) sob o patriarcado, elas foram descaracterizadas e subestimadas e b) elas não devem ser enxergadas como prerrogativas exclusivas das mulheres, mas sim como potencialmente comuns – talvez a ambos os sexos. O objetivo não seria, então, simplesmente rejeitar os mitos, mas sim limpá-los de toda conotação pejorativa e questionar o uso aos quais eles têm sido submetidos – a construção da mulher como “o outro”. Os homens, por exemplo, tradicionalmente têm clamado a “razão” para si próprios, estabelecendo-a como a qualidade superior, e compensado as mulheres (de forma condescendente) ao atribuir a elas a “intuição”. Pode-se certamente argumentar que os homens perdem tanto quanto as mulheres na insistência de tal dicotomia. A resposta, então, não seria negar a existência da “intuição” de uma só vez, mas sim reavalia-la. No filme, Céline e Julie frequentemente usam a inteligência, mas nunca às custas da magia. O momento supremo do filme endossa de forma triunfal a preponderância da “magia” sob a “lógica imbecil” das leis da narrativa, ao finalmente quebrar as fronteiras entre “realidade” e “fantasia”: o momento no qual, após o último “sonho” de resgatar Madlyn da casa, Céline e Julie acordam e descobrem que de fato a criança está com elas no apartamento. É um dos grandes momentos libertadores do cinema: o momento que permite a Céline e Julie “irem de barco” e passar pelos fantasmas, agora enrijecidos numa paralisia total, descendo rio abaixo (de volta ao passado), enquanto que as mulheres levam a menina rio acima, em direção ao futuro.

Pode-se ficar preocupado, de forma legítima, pelo tratamento dado pelo filme aos homens e pela possibilidade dos relacionamentos heterossexuais; ainda que, mais uma vez, seja considerar apenas um momento particular da evolução social. As mulheres sempre foram oprimidas, mas agora (mesmo que as opressões continuem, com algumas mínimas modificações “liberais”) elas sabem que são oprimidas. As dificuldades da relação heterossexual dentro da estrutura ideológica/econômica existente (estrutura que depende da subordinação das mulheres) se tornou (como a maioria das minhas amigas mulheres frequentemente atestam) quase insuperável: até mesmo homens que intelectualmente conseguem compreender e aceitar a noção de autonomia feminina, gradualmente revelam enormes problemas emocionais para com ela. Nossa cultura talvez tenha que passar por uma fase (quando o período atual de reação geral, porém nada fácil e nada convincente, terminar e uma nova onda do feminismo ganhar força) na qual os laços mais próximos sejam entre pessoas do mesmo sexo, até que novos modos de relacionamento homem-mulher sejam forjados. Ainda que isso não explique ou justifique de forma satisfatória a total ausência de simpatia do filme no trato com as figuras masculinas: nele é permitido aos homens existirem apenas no nível da paródia, negando-lhes até mesmo um momento de graça, de perdão ou de compreensão (curiosamente, esse traço se reflete em certos filmes pop-feministas recentes, como A recruta Benjamin e Como eliminar seu chefe).

Por outro lado, o tratamento do filme ao lesbianismo é curiosamente equivocado. Com seus amigos (homens e mulheres), no bar, Céline explicitamente rejeita a insinuação de que ela e Julie se relacionam sexualmente (“Ela não é sapata”); ainda que esteja inegavelmente implícito que as duas mulheres dividem a mesma cama. Pode-se escolher interpretar os posicionamentos de Céline apenas como o jeito dela lidar com conhecidos casuais que “não entenderiam”; ou de enxergar a relação das duas mulheres como pré-sexual, as carícias e brincadeiras afetuosas de garotas na escola (não que isso não tenha, claro, nenhuma conotação sexual – a questão é até que ponto estas são influenciadas). Tendo ousado tanto, o filme poderia ter ousado mais ainda: ter-nos dado umas das primeiras imagens positivas do lesbianismo na história do cinema narrativo – uma opção que ele deixa para Bruce Beresford e seu notável The Getting of Wisdom.

Apesar disso, o filme constitui um acontecimento extraordinário, que olha para frente. Antes de sua exibição em meu curso de cinema, os estudantes estavam debatendo se o feminismo radical (em oposição ao liberal) era compatível com o “entretenimento”, e a tendência geral foi a de concluir que não: os códigos que governam o entretenimento, os hábitos de longa data do patriarcado, com os seu “modos de ver” tradicionalmente definidos e a sua dependência de imagens culturalmente construídas de masculinidade e de feminilidade, entrariam em conflito direto com tudo aquilo que uma cineasta feminista gostaria de alcançar. Esse diagnóstico parecia se confirmar no seminal artigo de Laura Mulvey para a Screen, “Forma narrativa e prazer visual”, e também – de uma forma um tanto quanto deprimente – pela prática de Mulvey/Wollen em Riddles of the Sphinx. Riddles é desafiador e em especial sua peça de sustentação central, “A história de Louise contada em trinta planos” – e teoricamente interessante, mas as nossas noções de prazer teriam de ser redefinidas para além do reconhecível, antes que o filme pudesse ser reivindicado como “entretenimento”. A impressão que se teve da intervenção de Mulvey/Wollen foi a de uma escolha entre a rendição desmiolada aos prazeres viciantes e repreensíveis do cinema mainstream por um lado, e pelo outro, o trabalho cerebral duro e puro. Céline e Julie – no contexto da tradição narrativa progressista que descrevi – pelo menos sugere caminhos para se romper tal impasse. Isso não é afirmar que o filme é acessível junto à cultura de massas. Ainda que não apelando para hábitos arraigados, ainda que sistematicamente desconstruindo e expondo os códigos narrativos, as caracterizações e as apresentações dominantes, Céline e Julie engaja seus espectadores num jogo narrativo que permite identificação, suspense e envolvimento emocional. Ele permite, inclusive incentiva, o prazer. Pode-se descrevê-lo como algo que entretém intensamente, sem romper ou exigir uma passagem do ponto no emprego do sentido usual da palavra.

Para concluir – e consolidar essa nota de esperança para o futuro da narrativa – eu quero retornar à comparação com O despertar dos mortos, que lancei brevemente lá atrás. O filme de Romero é formalmente mais conservador e mais tradicional que o de Rivette, apesar de extremamente audacioso dentro do contexto do cinema comercial contemporâneo (ele foi, é claro, produzido de forma independente). O corolário lógico é de que ele também não pode proceder tão longe em seu desenvolvimento temático, em termos de rompimento revolucionário com o passado. Não obstante, apesar das desgastadas “requentadas” atuais das atitudes e dos procedimentos narrativos do passado de Hollywood, ele permanece como um lembrete do nível até o qual a narrativa tradicional pode ser dobrada e alargada em formas progressistas.[ii]

Os paralelos entre os dois filmes são arrebatadores. Tal como os ocupantes da “casa da ficção” – mesmo que de uma forma menos complexa e elaborada – os zumbis de Romero – irrefletidamente gravitando em direção ao shopping – representam os hábitos do passado, com os quais os personagens vivos tem de se defrontar para se libertarem (a maquiagem dos fantasmas, na última parte do filme de Rivette, na medida em que perdem sua potência, é quase igual). O filme jamais alcança qualquer coisa comparável à imagem positiva das mulheres em Céline e Julie, mas ele segue os passos de Fran na medida em que ela progressivamente desativa todas as armadilhas do patriarcado: noções da mulher como inferior, indefesa, irracional, passiva; a aceitação de si mesma como uma imagem do olhar masculino; crucialmente, a ideia de casamento. Ao final do filme, os emblemas do poder masculino ou foram transferidos para a mulher ou foram rendidos (Fran pilota o helicóptero, o sobrevivente homem abandona o rifle aos zumbis). O filme oferece até mesmo um equivalente ao resgate de Madlyn, no filho não nascido de Fran, trazido das garras do passado em direção a um precário e incerto futuro. Há também, ao longo do filme, um elemento forte de jogo na violência estilizada dos quadrinhos, na consciência de si mesmo como um filme de gênero, como fantasia: o público é convidado a participar de um macabro e sangrento jogo que tenta se manter – pelos méritos da estilização – ao mesmo tempo sério e bem-humorado.

É claro que os filmes mais audaciosos e radicais vão continuar sendo feitos fora do comercial mainstream. Ainda assim, a presença mútua no cinema dos anos setenta de Céline e Julie e de O despertar dos mortos sugere a possibilidade de desenvolvimentos paralelos significativos em diferentes esferas do cinema independente. Nosso deleite em contar e ouvir histórias, ainda que precise ser esmiuçado, não precisa ser abandonado.

 

(Film Quarterly vol. 35 nº1, outono 1981, pp. 2-12. Traduzido do inglês por Guilherme Savioli)

 

 

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[i]     Desde que esse artigo foi publicado, apareceu uma longa e interessante discussão sobre Céline e Julie vão de barco, por Julia Lesage, na Jump Cut. Parece-me justo dizer que o artigo de Lesage complementa o meu próprio sem ser redundante: apesar de haver muita concordância, existem diferenças significativas de abordagem e ênfase [N.A].

[ii]    Além do mais, eu não estaria preparado para afirmar que Céline e Julie é o maior dos filmes, um engôdo que poderia disparar qualquer tentação de má interpretação que alguém possa ter em estabelecer inovação formal como um critério absoluto de excelência [N.A].

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