Ano VII

A arte de Fellini

segunda-feira mar 28, 2016

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A Arte de Fellini

Por Sérgio Alpendre

É perceptível que o cinema de Federico Fellini sempre enfrentou resistência de cinéfilos e críticos de minha geração. Talvez esse seja o grande ponto negativo da influência que Inácio Araujo e Carlos Reichenbach exerceram nos críticos da chamada geração Contracampo, ou seja, de críticos de várias idades que se reuniram na prestigiada revista cujo maior alcance se deu entre 2000 e 2012. Os dois, que me ensinaram muito (e ensinaram quase todos que se formaram nas páginas daquela revista), detestavam Fellini, sem que eu entendesse por quê, por mais que eles explicassem. Mas essa birra vem de longe. Na minha turma de faculdade (1989-1993) eu era dos poucos que gostava do diretor de Oito e Meio, e talvez o único que o considerava em altíssima conta.  As razões para a resistência, ontem e ainda mais hoje, variam do vago “chato” ao excesso de auto-indulgência de suas obras, mas também, penso, com uma inconfessa má vontade com cineastas que cinéfilos de primeira viagem logo querem conhecer. Acontece de modo semelhante no rock. Já conheci gente que detesta Led Zeppelin, porque bom mesmo é o obscuro Sir Lord Baltimore. Assim como já ouvi certa vez que Gentle Giant não estava com nada. Bom mesmo era Yezda Urfa, banda americana que copiava o Gentle Giant. Enfim, a birra faz com que se admire cineastas com clara influência de Fellini, mas não o próprio Fellini, a não ser aquele que é absolvido pela inteligentsia crítica: o de Os Boas Vidas, A Trapaça, A Doce Vida e Roma, talvez Ensaio de Orquestra, talvez Noites de Cabíria. Com algumas pequenas variações, esses são os filmes que os críticos com birra de Fellini se permitem gostar, ao passo que os mais fellinianos de seus filmes, por exemplo, Satyricon e Casanova, tendem a ser menosprezados (não entendo por que Roma é tão amado, pois para mim é também essencialmente felliniano, uma obra-prima que tem tudo que normalmente se rejeita no mestre, incluindo seu nome estampado no título: Roma de Fellini, como Satyricon de Fellini, ou Casanova de Fellini).

Este lançamento da Versátil, com três longas do amado e odiado diretor, deve bastar para que se faça justiça. Primeiro, à obra-prima que é Satyricon, um retrato da decadência do Império Romano sob o comando de Nero que traduz a inquietação de Petrônio, autor do texto original, sob as tintas fellinianas do grotesco e do onírico. Segundo, ao seu filme testamento, A Voz da Lua, que se está longe dos melhores momentos do diretor, revisto, hoje, revela-se muito acima da média do que parecia no longínquo 1990, provavelmente porque de lá para cá o nível cinematográfico dos filmes caiu muito (não vejo uma verdadeira razão para a rejeição de A Voz da Lua, como a que eu tive na época; é apenas um filme em tom menor, sem grandes sequências, mas nada desprezível).

Satyricon é de outra ordem. É, como escrevi no primeiro parágrafo, a quintessência de Fellini. Como se todo o cinema dele desembocasse nessa obra em que o grotesco encontra o onírico em uma parceria dos céus: entre Fellini e o fotógrafo Giuseppe Rotunno (que estreia em Satyricon e depois se repetiria em Roma, Amarcord, Casanova, Ensaio de Orquestra, Cidade das Mulheres e E La Nave Va). Há quem não entenda a genialidade de Rotunno, pintor cinematográfico que traduz perfeitamente a mente do diretor concebendo imagens plasticamente irretocáveis, visões do inferno em sintonia com Francisco Goya, James Ensor e Francis Bacon. É como se Fellini fosse a mente diante da tela, e Rotunno fosse o pincel, a mão que o segura e a palheta de cores. “Ficção científica do passado”, dizia Fellini sobre esse filme, citado na crítica de Tulio Kezich da época. Como Rossellini, Fellini não estava mais interessado em ser fiel à história ou ao texto de Petronio do que em entregar a sua visão daquele período, uma visão, ele reconhece, em tudo influenciada pela contracultura (lembremos que o filme foi lançado em setembro de 1969). Encolpio, o protagonista, se perde entre sonhos psicodélicos e realidades ainda mais irreais, e o espectador fica sem saber o que é delírio e o que está realmente acontecendo, numa experiência que prolonga e radicaliza aquela iniciada em Oito e Meio e já catalizada em Julieta dos Espíritos. Ao fim, toda a fragmentação se justifica pelos afrescos colocados à beira-mar, nos quais vemos os personagens todos representados – é como se os afrescos encontrados nas escavações do metrô, em Roma, representassem os personagens que vemos durante o filme. Em Roma, o teor é mais documental. Em Satyricon, entre o surreal e o grotesco, em que pese a fragilidade destas definições.

Os dois filmes repetem um padrão de apresentação, desenvolvimento e conclusões das sequências fragmentadas. Já nos créditos temos uma equipe que se repete: Bernardino Zapponi no roteiro, Danilo Donati na direção de arte, Giuseppe Rotunno na fotografia. De modo que não entendo que se possa gostar de um e não do outro, do mesmo jeito que não entendo como gostar de Kurosawa e não de Fellini, e vice-versa. Entendo, contudo, que Roma é mais facilmente sedutor, não tendo a carga incomodativa (provavelmente derivada do grotesco) de Satyricon. Roma é Satyricon atenuado pela experiência de Os Palhaços, o filme do meio, feito para a TV. É também um resultado da falência da contracultura, uma vez que aos hippies não está mais o monopólio da revolta contra as injustiças do mundo. A eles resta apenas ficar de papo para o ar nas praças romanas, fumando e se amando alienadamente. A polícia desce o sarrafo, e quem protesta: o jornalista, os burgueses que tomavam café na praça, alheios anteriormente à presença dos hippies (“eles não estavam fazendo nada”). Em Satyricon, o ócio tem a cara do pecado. Em Roma, da paz e do amor. Satyricon é um afresco crítico-satírico, Roma é um afresco crítico-documental. Ambos são afetados pelo espírito de seu tempo, e com eles percebemos o tanto que mudou de 1969 para 1972.

Talvez sejam os dois melhores filmes de Fellini, os mais livres, os mais arriscados, os que mais crescem em revisões (coloco aqui A Doce Vida, num terceiro lugar, para completar o pódium).

Como bônus a coleção oferece um saboroso documentário: Ciao, Federico!, de Gideon Bachmann, sobre as filmagens de Satyricon. Nele vemos o Fellini mais fanfarrão, sedutor, brincalhão, mas também preocupado, raivoso. Vemos a visita de Roman Polanski com sua então namorada Sharon Tate. Vemos também que apesar da tensão que por vezes dominava o set, o clima podia ser leve, agradável, todos filmando com prazer e tesão.

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