Ano VII

Rollerball, de John McTiernan

domingo mar 27, 2016

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Faíscas do artifício: sobre Rollerball

A projeção não é só nomenclatura para descrever um processo técnico da cadeia cinematográfica. No cinema valioso, no cinema vibrante, é mais do que uma luz a vir de trás, do passado ou do fundo da sala, a viajar pelo espaço-tempo até se dar a ver. É um vislumbre do futuro. Por outro lado, não é raro que o mau cinema, aquele que, criança obediente, tenta prontamente responder as “questões do seu tempo”, entregue-se à viagem de bilhões de anos luz, e quando chega à tela, não passe do espectro do planeta que um dia existiu. O cinema do presente, estrela morta, está sempre defasado – mesmo, ou, sobretudo, no documentário. Ainda que o cinema, evidentemente, sempre transcorra no presente durante a projeção, não importando o tempo diegético, é notório que os grandes filmes deixam frestas por onde entram a luz do amanhecer. Cinematografias inteiras, aliás, são janelas abertas: Brian De Palma antecipou em décadas uma sociedade dividida em muitas telas, Godard transformou a palavra em imagem muitos anos antes dos memes. Não é que suas projeções se concretizaram, elas sempre estiveram lá, germinando em algum lugar. Toda estrela morre, até as mais brilhantes, então que o brilho das projeções dos grandes vire passado, um dia, é esperado. Se perdemos a luz, ganhamos outras coisas: uma casa não é só feita de janelas. Há porões.

Se a crítica tem algum papel de importância, ou mesmo que tenha nenhuma, que seja o de viver a maior parte do tempo a céu aberto, no escuro. É assim que se identifica com mais precisão a origem da luz: se da estrela decadente ou do farol no alto da pedra. Rollerball, de John McTiernan é um desses filmes cujo poder de precognição é capaz de surpreender, não só pelo viés temático, pois isso seria banal, e sim pela incrível capacidade sensível na tradução em luz, movimento, ação, geometria e ruído, dos medos e perigos não de 2002, ano de lançamento da obra, mas de 2016 e além. Uma nova maneira de experimentar o mundo através do olhar é demonstrada – sim, é exatamente isso: McTiernan apresenta, no início do século XXI, o que veremos na realidade e de que modo o faremos, duas décadas depois.

Que porra é essa?

Quando, em maio de 2003, Olivier Joyard perguntava na Cahiers du Cinéma “que plano é esse?”, não estava se referindo em absoluto a qualquer aspecto visual de Rollerball. Esta afirmação, bastante óbvia, não serve para enaltecer o caráter artisticamente marginal do longa-metragem estrelado por Chris Klein, o garotão jogador de lacrosse em American Pie. Serve apenas para situar que tipo de imagem era extraída do mundo, naquele começo de século XXI, em que a grande maioria das redes sociais inexistiam e quando a ideia de se assistir um programa de televisão e, simultaneamente, acompanhar pessoas compartilhando imagens manipuladas, fotografadas (com o celular) diretamente da tela, que instantaneamente re-significam o conteúdo original, estava fora de vista. Uma maneira de olhar o mundo se impunha nos festivais (o artigo de Joyard faz um apanhado sobre a edição do Festival de Cannes daquele ano): plácido, paciente, um barco de papel a boiar ao sabor do vento em um aquário sem bordas, era esse o plano que respondia à pergunta do crítico francês. Uma forma encontrada por um grupo de cineastas – retirando suas ideias do consciente coletivo e não de um manifesto – para responder às questões do momento, à configuração do mundo no início daquela década, foi pela volta. Pelo retorno ao pré-modernismo, retorno ao plano-tableu, retorno ao pré-cinema. Volta-se tanto que a imagem final só pode ser a do retorno ao útero, no conforto do dispositivo pré-estabelecido, em um círculo cheio de vida, mas ainda sim um círculo.

O fluxo daquele cinema, talvez, seja menos o fluxo de um rio e mais o líquido proteico circundado pela blástula, na fase inicial do processo de desenvolvimento embrionário – a obsessão de Lucrecia Martel por piscinas e o carro que corre em círculos no embrião tardio e deformado que é Um Lugar Qualquer, são alguns exemplos que contribuem para o emprego da analogia celular. Ver alguns desses filmes, como Elefante, Últimos Dias e Brown Bunnie (deixemos agora apenas os norte-americanos, para sermos justos com Rollerball), é como olhar através de um microscópio ao invés do buraco da fechadura. E, evidentemente, sabemos que o segundo buraco tem mais vida do que o primeiro. Experimentar estas obras, anos depois, é sentir a pressão do dispositivo – cuja palavra pode ser substituída por armadilha – apertando o tornozelo e nos amarrando a um mundo muito pequeno e limitado: que sensação musical o longa-metragem baseado nas horas finais de Kurt Cobain proporciona, afinal? O dispositivo se deixa contaminar pelo universo da música produzida por aquele ser, ou mesmo qualquer outro universo musical, ou o mecanismo do dispositivo é tão hermético e perfeito que lima toda e qualquer influência externa? Um cinema que se desejou tão gasoso talvez tenha, realmente, evaporado.

Rollerball supostamente não poderia ser comparado com o cinema de fluxo (ou, o cinema de blástula) a não ser pelo choque. Empreitada hollywoodiana, de diretor repleto de sucessos comerciais, teoricamente não precisaria de qualquer defesa, pois não se trata de obra obscura, que não pôde chegar ao público por conta das predadoras regras da distribuição cinematográfica. O que não significa dizer que a espada da injustiça não tenha lhe sido apontada, fazendo do longa-metragem um objeto maldito, cuja reputação, até hoje, é muito baixa. Esse ambicioso pequeno blockbuster, idealmente, cairia como um raio no campo plácido do plano contemplativo, e faria Joyard, de olhos arregalados, perguntar: que porra é essa?

Futuro extremo: 2016

A trama de Rollerball, refilmagem de longa-metragem homônimo de 1975, dirigido por Norman Jewison (a quem John Millius, em entrevista para edição da Film Comment do ano seguinte chama de mercenário), é bastante simples: em um futuro próximo (2005!), Jonathan Cross, um ex-campeão de rodeio, é convencido a disputar um novo esporte, de origem russa, que tem sido sucesso no leste europeu e em diversas partes da Ásia ocidental. Depois de descobrir que é o mundo corporativo quem dita as regras do jogo, Cross lidera uma pequena revolução e aniquila os responsáveis pelo circo travestido de competição que é o esporte.

A atualidade do tema, embora não seja o principal ponto de interesse do filme, é inegável. Escândalos de corrupção na FIFA, jogadores do top 10 da ATP entregando jogos e enchendo os bolsos de mafiosos ligados a casas de apostas, a Fórmula 1 inventando regras, ano após ano, unicamente voltadas para o benefício do espetáculo, não da competição (o novo formato de classificação, estipulado para o campeonato de 2016 é praticamente a emulação do sistema de check points dos jogos de corridas de arcades dos anos 90), os super bowls que gradativamente se tornam bombásticas apresentações musicais com jogos de futebol americano acontecendo no intervalo. A lista de similaridades é grande e não seria improvável que na semana que vem ou no mês seguinte aumentasse ainda mais.

Dentre os esportes citados acima, um deles sintetiza o caráter visionário de Rollerball como nenhum outro: a Fórmula 1.  O longa de McTiernan não só previu acuradamente os movimentos econômicos deste esporte, que a cada nova temporada afasta-se de maneira mais definitiva da Europa – lugar em que nasceu – para se embrenhar em países cuja tradição automobilística é nula, com a intenção exclusiva de gerar maior lucro para o grupo de investidores dona de boa parte da categoria. Bahrein, Cingapura, Abu Dhabi, Malásia, Turquia, China (cuja pista fica enterrada na poluição) e, neste ano, Azerbaijão – que só geograficamente fica na Europa; a influência cultural do país é bem pouco europeia.

Em Rollerball, a viagem para a Ásia possibilita a McTiernan lidar com um inventário de imagens que cognitivamente ligamos à ideia de estranho, de estrangeiro, de oposição. De mal, em última instância (existe representação mais imediata do mal do que um MIG 28 preto, com estrela vermelha na cauda, pilotado por algum sujeito de viseira negra e máscara de oxigênio cobrindo o rosto, falando língua incompreensível?). McTiernan povoa a tela com mulheres de burca, caracteres do alfabeto cirílico formando sabe-se lá que frases, gráficos na tela do que seria a transmissão das partidas mostrando dados de jogadores do leste europeu com sobrenomes impronunciáveis, jogadores dos times usando máscaras grotescas, tudo isso envolto pela noite, em uma escuridão constante que só é amenizada pela luz artificial do espetáculo.

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Em contraste com a aparente abundância do circo e dos holofotes – durante as partidas, sempre enquadrados frontalmente, provocando flares azulados e abundantes, em um equivalente artificial do processo que alguns artistas aplicavam às películas, riscando-as e machucando-as – estão os espaços desertificados das cidades em que são disputados os jogos. Não demorou para que no mundo real, na Fórmula 1, ficasse paulatinamente recorrente esse tipo de imagem ultra brilhante e colorida, que coloca entre o objeto de interesse e o olhar do espectador uma cortina do artifício, nublando a percepção pura que o olho do público deveria ter em relação aquilo que é essencial deste esporte: a luta do homem contra a besta (o carro). Autódromos incrustados no meio do deserto, cercados por palmeiras iluminadas, corridas de rua em que a grande vedete do circuito é o esplendor das luzes de um hotel à beira da pista: mesmo tendo historicamente se dedicado a enaltecer o extra-corrida (Mônaco é um grande estacionamento de iates e a corrida lá serviu, por muito tempo, como divulgação do estilo de vida dos pilotos; se o desafio físico diminuiu muito desde o fim dos câmbios manuais, ainda assim não se pode dizer que não exista o desafio psicológico), e deslizado no lado político com mais recorrência do que deveria (aconteceram corridas em Kyalami, na África do Sul, durante o apartheid), a Fórmula 1 sempre havia conseguido se manter como um esporte solar, um esporte paradoxalmente de campo, cuja paisagem dos circuitos parecia estar do lado do homem na luta contra a besta. Toda a natureza, o sol, o verde, as pessoas na arquibancada lotada, organicamente se misturavam às máquinas, belas e simples, mas barulhentas, ariscas, perigosas. Assim como é harmonioso o convívio entre o homem, o cavalo e o espaço amplo, eram também as imagens dessa Fórmula 1 antiga, em que, vez ou outra, o herói precisava dar vasão à violência, sentimento normal em competidores, para ficar em paz consigo mesmo e, em seguida, com o adversário. A violência limpa recompõe a harmonia, quando esta é aviltada por aqueles de pouca habilidade ou dotados de cretinice.

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O multi-culturalismo desenfreado de Rollerball antecipa a noção estética de desarmonia reinante em 2016, que tem na F1 apenas um dos representantes. A ideia de desarmonia não provém exclusivamente dos elementos que compõe o plano. A montagem é também uma grande responsável por proporcionar experiência análoga ao olhar estilhaçado e multifacetado que dirigimos ao mundo. Falsos racords e racords no próprio eixo, imagem dentro da imagem, redundância (os dois frames logo acima ilustram exatamente a ordem de dois planos em dado momento de Rollerball: vemos o herói Cross e imediatamente vemos a imagem da imagem do herói, projetada no telão; se esse é um dos mais experimentais filmes de McTiernan, é, também, um dos mais conscientes e inteligentes). O futuro distópico de McTiernan e o presente concreto de 2016 é um vômito imagético, seguido de tremedeira e palpitação: imagens para todo lado, vídeo novo no celular, timeline do Twitter cheia de novas micro-informações, Snapchat proporcionando 40 segundos de pornografia amadora, meme do programa de tv, cursor movendo-se loucamente no Netflix adicionando mais um filme que ficará esquecido na lista dos favoritos etc;  ao lado de Rollerball, o steady cam de Gus Van Sant parece uma Maria Fumaça a viajar pelos trilhos de um filme de época, construído em cima da terra do nunca. Na contemporaneidade do olhar impaciente, o esporte passa a ser unicamente um detalhe e a sua sobrevivência só se dá por meio de aparelhos, já que a harmonia, princípio básico de qualquer competição esportiva que se preze, é mutilada  - harmonia é escolha; a estética da multi-tela, que exclui a necessidade de se dirigir o olhar a algo específico durante certa duração de tempo, talvez tenha ajudado a gerar, ou no mínimo, apresenta algum grau de parentesco, com a sexualidade fluida, ou com o ser humano não-binário; esse é o verdadeiro X da questão.

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Se não existe harmonia, e o diretor, ao fazer um filme para o futuro, só poderia mesmo abdica-la, outras forças devem ocupar seu lugar. Brilhantemente, McTiernan escolheu a agressividade, a imperfeição e o fogo – não só nas muitas faíscas presentes em diversos momentos do jogo, como também nos flares azulados, que, muitas vezes, lembram a chama produzida por um maçarico. A forma de Rollerball é premonitória, mas antes disso é combativa – tanto em relação aos movimentos da trama, já que Cross se rebela contra a corporação, quanto na absorção de um estado de coisas que começava a iniciar no mundo.  Em 2002 acompanhávamos as primeiras fases da invasão americana ao Afeganistão e, embora o filme não se dedique a tal questão – não custa a redundância: Rollerball mira o futuro -, não se fecha totalmente ao acontecimento, incorporando algumas de suas características estéticas. O que são as imagens da guerra do Afeganistão? São luzes brilhando no deserto esverdeado visto através da câmera de visão noturna. McTiernan, então, cria uma sequência de ação, no meio do deserto, inteiramente filmada com câmera de visão noturna. Muito se falou sobre o caráter midiático desta guerra, cuja origem remota a 1991, na Guerra do Golfo, o conflito bélico transmitido ao vivo pela CNN. Não só o esporte rollerball é tratado por McTiernan como um simulacro de guerra contemporânea, com todo seu componente grotesco, violento e farsesco de imagens feitas para serem transmitidas, como todo o filme em si. A associação entre a sequência esverdeada da visão noturna com alguma reportagem de Marcos Uchôa no Jornal Nacional à época era e é imediata. Os recorrentes flares, eles também, não deixam de lembrar os riscos luminosos provocados pelos misseis de longa distância lançados pelo exército americano.

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Nas imagens produzidas pelo mundo real – na Fórmula 1, por exemplo – a harmonia não foi trocada pela guerra, mas pelo artifício puro e simples. E quando a harmonia deixa de ser a estética reinante, as regras do jogo precisam ser mudadas para acompanhar aquilo que a substitui: nos oásis que são os circuitos no meio do deserto, que compõe o calendário atual da categoria, as luzes brilhantes são as das faíscas provocadas pelo atrito das placas de titânio no asfalto. Placas estas que não exercem qualquer função aerodinâmica, tampouco trazem qualquer benefício de performance. Estão ali unicamente para provocar um efeito visual. Em Rollerball, as faíscas aparecem com abundância, em especial quando algum dos times marca ponto. São, é claro, fogos de artifício.   Quando se perdem os princípios e quando a essência é abandonada, a única maneira de recuperar os dias de glória – as faíscas, nos anos 80 até a metade dos 90, provocadas genuinamente, eram elementos fundamentais da experiência ardida que era uma corrida de Fórmula 1 – é pelo simulacro. Nele a paixão é inteiramente anulada e a consequência direta disso é o desaparecimento pleno da figura do herói.

A vitória da ficção de McTiernan sobre a realidade é que toda essa imagética de feiura, todo esse conjunto de signos com vocação para o bestial, é usado para a criação de um universo marcadamente corrupto e decadente, que precisa ser combatido e derrotado. É que faz Cross, ao se rebelar contra aquele sistema e inflamar a revolução. No mundo real, deu-se o oposto e o sumiço total do herói tem como consequência campeonatos recentes de Fórmula 1 vencidos por pilotos que não despertam qualquer tipo de inspiração, disputados em autódromos com instalações de ponta, mas sem nenhuma ponta de encanto.

Uma nota de rodapé: O Regresso

Paixões precisam ser estimuladas de algum modo e, se não o são por meio do prazer ou da correção, sobra espaço para manifestações menos nobres, como o sadismo. O novo filme de Alejandro González Iñárritu é uma grande farsa primitivista, em que o fetiche pelo efeito de dor ofusca a inteligência. A careta de DiCaprio captada em grande angular, com os lábios borrados de maquiagem simulando rachaduras provocadas pelo frio, é equivalente à faísca falsa da F1, ou às fantasias utilizadas pelos jogadores em Rollerball. Aliás, aqui há especificamente um elemento que substitui o papel da faísca: o sol. Emmanuel Lubezki transforma o que seria naturalmente belo em algo artificialmente banal. Em quase todo plano possível, o diretor de fotografia utiliza um eixo que caprichosamente deixe enquadrado o sol. Não importa a selvageria dentro dos limites do quadro, Lubezki realizará sutis correções para manter o sol exatamente entre a copa de uma árvore e o nariz (maquiado) de DiCaprio. Iñárritu e seu fotógrafo não projetam a luz para o futuro; o que fazem é mergulhar em um fosso abissal da era pré-Rivetteniana.

O cineasta mexicano, aliás, atingiu o tão desejado fundo do poço: seus filmes sempre almejaram, no tecido temático, o retorno a um estado de pré-formação do intelecto, a um estado pré-civilizado; agora, finalmente, o diretor estende tal desejo de maneira plena à forma. Iñárritu filma antes da existência de Rivette, antes da existência de Caspar David Friedrich, ao confundir a fusão entre rocha e ruína, céu, solo, neve e estado de espírito, típicas do pintor alemão, com o infame realismo fantástico latino que fabrica a poesia mais ingênua e óbvia possível; antes mesmo da existência do Lacoonte, ao desconhecer por completo como a arte helenística manejou a dor em forma de corpos que se contorcem de maneira chocante, bela e moralista, confiando no artifício da máscara e da submissão ao flagelo em frequência comicamente constante para mostrar o quanto o homem (não-indígena) é vil. Tanta distorção só poderia mesmo culminar no deplorável final, que aflora toda a perversão da moralidade de Iñárritu, em que o rio e o índio – a própria natureza, portanto – lavariam e redimiriam as ações de um herói covarde, incapaz de assumir a violência, em um filme que é todo ele violência.

Wellington Sari

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