Ano VII

Mostra de Tiradentes 2016

segunda-feira fev 22, 2016
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Garoto, de Júlio Bressane

Balanço da 19ª Mostra de Tiradentes

Por Sérgio Alpendre

Primeiramente, devo dizer que não venho a Tiradentes à procura de filmes bons. Não é bem essa a proposta do festival e eu respeito isso. Os filmes geralmente se equilibram entre maus e bons momentos, num conjunto que revela a incerteza de uma juventude de educação visual inflacionada por tudo quanto é tipo de video e desorganizada na construção de um olhar. Os filmes bons podem até surgir, e esta certamente foi uma das melhores edições nesse sentido, mas dificilmente deveriam ter o mesmo grau de aprovação de obras importantes do cinema. O que quero dizer é que são filmes incompletos, e por isso dificilmente deveriam receber posicionamentos unânimes, nem de total aprovação, nem de reprovação.  Analisá-los como grandes filmes, como alguns andam fazendo irresponsavelmente, é prejudicial a eles, aos diretores e ao cinema brasileiro. Dizer que são todos bombas, também.

Venho a Tiradentes para entender melhor quais são os caminhos, os mais profícuos, mas também aqueles que considero perigosos, entre os explorados pela nova geração de realizadores brasileiros. E é o festival certo para isso, já que tem um trabalho de curadoria arriscado e inteligente, mesmo que seja imposível (porque sempre é) concordar com todas as escolhas. Dito isso, se em 2014 a seleção me pareceu apontar muito mais caminhos perigosos ou infrutíferos, para não dizer completamente equivocados, em 2016 o panorama é bem mais diverso e animador. (em 2015 não acompanhei o evento)

Mas a Mostra de Tiradentes é um evento muito longo, com muitas sessões e, convenhamos, filmes demais. Por isso costumo focar minha cobertura mais nos inéditos, ou seja, na Mostra Aurora (de longas) e na Mostra Foco (de curtas), não me obrigando a comentar filmes que estiverem fora dessas mostras, embora escreva também sobre muitos deles, a grande maioria até (alguns deles com maior espaço do que para os primeiros filmes exibidos na Aurora, por motivos alheios à minha vontade). Depois da Chuva, por exemplo, que considero um belo filme, passou em 2014 numa mostra paralela (Tendências, creio), pois não era mais inédito (passou no Festival de Brasília de 2013 e na Mostra SP do mesmo ano, pelo menos). Considero que esses filmes, apesar de serem também escolhidos, não representam exatamente apostas de Tiradentes, no sentido de que são ecos de outros festivais, e não riscos da curadoria.

Presenciei um debate inteiro, o da homenagem a Tonacci, e de três outros, mas só em pedaços. Ao contrário do primeiro debate, livre e solto como seus participantes (além de Tonacci, o crítico Inácio Araujo, a montadora Cristina Amaral e o músico Ruy Weber), os outros vão bem enquanto os envolvidos com o filme falam no palco. É o momento deles, afinal, e assim deve ser. Quando abre para a plateia (algo que não aconteceu no debate Tonacci, por falta de tempo) perde força. Seja porque algum crítico na plateia começa a fazer uma análise disfarçada de pergunta; seja porque a discussão descamba para fatores extra-cinematográficos (como, dizem, aconteceu no debate sobre o filme Jonas). São duas coisas que me incomodam bastante, além, claro, de uma toada meio chapa branca da maior parte dos críticos convidados, que evitam problematizações mais intensas (que podem ser feitas a qualquer filme já feito) e posicionamentos mais contundentes.

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O cinema do diretor homenageado, Andrea Tonacci, é grande demais para figurar nesta cobertura. Ainda mais porque já publicamos recentemente uma longa entrevista com o diretor de Serras da Desordem. Mas é necessário dizer, para encerrar esta introdução, que o longa Taego Ãwa, de Marcela e Henrique Borela, reflete algumas preocupações do cinema de Tonacci, e não digo isso somente porque o filme fala de uma questão indígena. Digo principalmente porque ele não hierarquiza os diferentes registros com que trabalha. O filme parece encontrar seus diretores, tonaccianamente, e os obriga a fazer daquele jeito. Ao menos foi o que senti, e é preciso sensibilidade (dos diretores) para respeitar esse clamor do material que tinham em mãos.

Seguem, então, comentários de diversos tamanhos e tons sobre os filmes vistos na 19ª Mostra de Tiradentes.

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NOTA: Considero a tarefa de escrever sobre filmes vistos em festivais um exercício de generosidade. Claro que, para alguns, poder viajar às custas de terceiros é sempre uma benção, mas esse não é o meu caso. Vou a festivais, ainda, por curiosidade (saber o que está sendo feito, afinal) e generosidade (procurar escrever sobre os filmes vistos), sempre tendo de lidar depois com o trabalho acumulado em São Paulo, onde resido. Como sei que muitos diretores aqui representados com seus filmes estão em início de carreira, e que é importante para eles ler o que escrevem sobre seus filmes, faço questão de dizer o que não precisaria ser dito: que nenhuma crítica é pessoal, que cinema é algo muito importante para que eu o deixe atrás de picuinhas. Alguém que já falou mal de mim em público pode ter seu filme elogiado enquanto algum amigo pode ter seu filme duramente atacado por aqui (as duas coisas já aconteceram bastante em minha vida como crítico, e certamente voltarão a acontecer). No mais, um elogio de quem já te criticou vale muito mais. Não procuro aqui encerrar filme algum. Todos estão sujeitos a reavaliações em futuras revisões. Ah, sim: não vou fugir de adjetivações ou generalizações. Não escrevo aqui como acadêmico. A meu ver, os problemas da crítica são outros, e às vezes são muito mais difíceis de serem identificados e sanados. Obviamente, também sou afetado por eles. Mas esse assunto será estudado em outra ocasião.

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Taego Awa, de Marcela e Henrique Borela

 

Mostra Aurora

Esta talvez tenha sido a seleção mais interessante entre todas que vi da Aurora. Apenas um filme me desagradou de fato, e os outros seis têm coisas que me interessam em alguma medida, com diferentes intensidades. Os dois primeiros filmes exibidos ficaram prejudicados, pois até segunda-feira tive problemas de hospedagem (uma cama improvisada me impediu de dormir bem) e conexão (a internet só ficou bala, mesmo, na terça-feira), o que de certa forma tornou o começo da cobertura um tanto caótico, e a inspiração para anotar ideias, idem.

Índios Zoró: Ontem, Hoje e Agora?, de Luiz Paulino dos Santos

Terceiro longa de Paulino, que agora tem 83 anos e convive, na Aurora, com um monte de jovens. Ele aparece bastante entre os índios Zoró, o que faz dele um dos protagonistas deste longa incomum. O filme alterna uma ingenuidade tosca com momentos de beleza, alcançada, paradoxalmente, por essa ingenuidade. No conjunto é sempre agradável de se ver, com um tipo de coragem que só pode vir de alguém experiente, consciente de seu caminho.

Aracati, de Júlia De Simone e Aline Portugal

Existem duas facetas em Aracati. Uma delas é a da contemplação. Imagens do Vale do Jaguaribe, no Ceará, transbordam na tela, convidando-nos para conhecer melhor aquele lugar. A outra faceta é menos convidativa: elege-se um personagem carismático para o seguir enquanto ele representa coisas de seu cotidiano. Por ser já muito vista no cinema brasileiro, essa faceta dá uma grande sensação de já visto, uma impressão de que o longa foi parcialmente feito segundo a cartilha de filmes para Tiradentes (por sorte, este ano mostrou que essa cartilha precisa ser rasgada). A outra faceta, contudo, e alguns momentos em que uma se junta a outra, garantem o interesse.

Taego Awa, de Henrique e Marcela Borela

A mistura de imagens de arquivo com imagens registradas pelos diretores é o ponto mais marcante deste filme que é um dos mais fortes da programação deste ano, e o melhor da Aurora. Vi curtas desses diretores no último FICA, o festival do Meio Ambiente da Cidade de Goiás. É incrível e alentador o progresso que fizeram.

Imagens de Libero Luxardo, entre outras, irrompem na tela, pontuando o registro atual de uma tribo que luta pelo reconhecimento de suas terras. Esse registro é, por sua vez, também inspirado, e pontuado por imagens impressionantes pensadas pelos irmãos Borela: os cachorros dormindo na calmaria, os corpos sendo pintados com tinta negra em um ritual e, sobretudo, os índios com uma placa onde se lê TAEGO ÃWA (plano que parece, e talvez devesse, encerrar o filme).

Nos registros prévios, a sensibilidade na duração dos trechos escolhidos, o que fica claro na longa cena em que um índio, quase ao natural, com seu arco e grandes flechas, persegue um veado, com calma, sabendo que o animal viria a ser sua presa. A cena, pelo que lembro, foi captada por um cinegrafista francês, em um video de 1989. Lembra coisas de Jean Rouch. O uso que dela fizeram faz com que o filme ultrapasse o mero registro etnográfico.

Discordo da ideia que saiu no release inicial de Tiradentes de que Serras da Desordem seria um filme farol para o cinema brasileiro dos anos que o seguiram. Pode ter sido um filme muito amado o de Tonacci, e deveria ter sido um filme farol. Ou, sob outra ótica, foi um filme farol, mas ninguém percebeu. Porque desconheço um filme sequer que reflita a estrutura desse farol. Pois bem, o filme dos Borela tem um quê de Tonacci, não apenas por tratar de problemas de índios subjugados e perseguidos por brancos, mas principalmente pela maneira como procura entender a causa dos Ãwa, a tribo que perdeu suas terras, e pelo modo como mesclam as cenas de violência brutal contra eles e as cenas que procuram entender o modo como vivem, que procuram ouvi-los, com interesse genuíno (e não, aparentemente, para entrar no bonde da inclusão que trafega por diversos caminhos do cinema brasileiro).

Não quero colocar esse peso nos diretores, e certamente eles precisam caminhar muito ainda para chegar no nível alcançado por Tonacci. Mas de certo modo, e pela primeira vez, senti que Serras da Desordem encontrou um eco, e esse eco foi promovido por estreantes em longa, que souberam ver o que o material que tinham em mãos pedia que fizessem. Isso é muito animador.

Banco Imobiliário, de Miguel Antunes Ramos

A apresentação lembra alguns filmes de Marcelo Pedroso. Quando entram os depoimentos de corretores, entra também um problema ético semelhante, embora não tão grave, ao dos filmes Um Lugar ao Sol e Domésticas, ambos de Gabriel Mascaro: os depoimentos são jogados contra seus donos, numa atitude um tanto questionável, mesmo que, no balanço, haja espaço para uma bem-vinda ambiguidade (a casa do corretor que parecia mais antipático antes, seu cachorro, sua vida comum, a procura por humanizá-lo).

Filme de Aborto, de Lincoln Péricles

Num caldeirão em que se misturam filmes setentistas de Godard, Chantal Akerman e Marguerite Duras e um tanto do cinema marginal brasileiro, alguns ingredientes entornam bem o caldo (o longo plano da cozinha, à Jeanne Dielman, por exemplo). Outros, infelizmente, revelam ideias adolescentes (um tapa na câmera, boa parte dos diálogos, o modo como a dissociação entre som e imagem é usada, o trecho de um filme de Chaplin). São coisas que me pareceram arbitrárias, jogadas demais para impulsionar um filme na corda bamba. Este longa, contudo, é bem superior ao curta de Lincoln Péricles que passou em uma das mostras Panorama (sessões vespertinas com a tenda quente como uma sauna), e teima a ficar mais interessante na memória.

Animal Político, de Tião

Por algum motivo estapafúrdio, Tião foi vendido como um gênio por boa parte dos frequentadores da Mostra com quem conversei (ironia do destino: seu filme passou no mesmo dia em que um gênio de verdade faleceu: Jacques Rivette). Talvez por ter vindo de Pernambuco, terra sagrada. Ou por assinar sem um alusivo e quatrocentão sobrenome. Seja como for, a vitória de Animal Político era antevista por alguns cinéfilos que acompanhavam o evento, muito antes de o filme ser sequer exibido.

Depois da exibição, percebi manifestos entusiasmados de boa parte dos que o viram, mas sei de pessoas que não gostaram, e não são poucas. Sei até que alguns odiaram. Por que não se manifestam? Ou se manifestaram com muito verniz, para não ficar muito evidente o desagrado? Isso me lembra uma coisa desagradável. Não entendo porque sempre que falo mal de um filme brasileiro as pessoas me parabenizam pela coragem, muitas vezes em mensagem privada. Coragem por quê? Algum produtor pode me boicotar? Ou a crítica, hoje, é mesmo confundida com a publicidade? E por que muitos me parabenizam em particular? Na melhor das hipóteses, as pessoas já se desacostumaram a ler críticas.  Porque é difícil quem critique de maneira direta, sem malabarismos intelectuais (que, por vezes, eu também uso, mas por ter sentimentos contraditórios, nunca por cautela política).

Pois bem, deixarei claro aqui: detestei Animal Político. Penso, aliás, que o filme é o contrário de O Som ao Redor, no sentido de não comportar julgamentos matizados. Ou se odeia, ou se adora Animal Político, enquanto me parece impossível (embora muita gente o faça) odiar ou adorar o filme de Kleber Mendonça Filho, que é cheio de bons e maus momentos.

Animal Político começa mostrando o ponto de vista de uma vaca, cuja voz interna é masculina (curiosa semelhança com Filme de Aborto, que também promove a confusão dos gêneros ao mostrar as agruras de homens que engravidaram). Quando Bresson realizou um longa inteiro sob o ponto de vista de um asno, a obra-prima A Grande Testemunha, não imaginou que um dia seu filme teria similaridade com um monstrengo desses. Mas esse papo de ponto de vista também é meio bobo. O ponto de vista de A Grande Testemunha é o de Bresson, assim como o de Animal Político é de Tião. E se de asno para vaca não há muito como se hierarquizar, do filme de Bresson ao de Tião há todo um mundo: de um lado o cinema, do outro a pose; a ascese contra a provocação adolescente; a pureza de princípios que não é de modo algum pureza de resultados contra o escárnio.

Mas Animal Político tem uma virada curiosa: em determinado momento, a vaca segue um fio, e passamos repentinamente para um curta dentro do longa. Esse curta é “A Pequena Caucasiana”, de inspiração reichenbachiana (ou pasoliniana), em que uma ruiva que anda nua mas com botas vive de comer náufragos que visitam acidentalmente sua ilha deserta. É adolescente, é pueril, mas ao menos a textura de grindhouse, o aspecto antropófago e a direção mais livre dá um certo frescor pelo que tem de salto no abismo. A piada com o livro da ABNT, razoavelmente interessante (ABNT é o pesadelo dos acadêmicos), passa para o outro plano do filme, o da vaca. A piada com o monolito de 2001, por outro lado, é apenas tola. As regras da ABNT fazem com que a vaca se torne bípede. Homem-vaca vai se exercitar na academia, paquera garotas no bar, lê jornal, anda de trem e observa quietamente as ações das pessoas. A série de propagandas alemãs do queijo Panda, com a qual Animal Político às vezes se parece, é mais engraçada.

Como é praxe no cinema pernambucano, Animal Político vem cheio de gracinhas, planos insólitos para agradar os facilmente impressionáveis: dois homens sem cabeça se encontrando numa região rochosa, o iglu feito de páginas de livros, o robozinho que se transforma em objetos de consumo para delírio da vaca, a família que monta uma sala de estar no meio do nada (e a mãe passando aspirador nesse nada – na verdade, uma colina rochosa ou algo que o valha), a pessoa vestida de vaca tocando um violão e cantando um blues (ou meditando), a pequena caucasiana devorando um coelho cru, o encontro da pessoa vestida de vaca com um dos homens sem cabeça, homem-vaca numa reunião de condomínio derivada (até quando, Senhor?) de O Som ao Redor… Enfim, deu para sentir o drama, não? Planos interessantes na floresta dos eucaliptos surgem no final. Mas o estrago já estava feito.

Os curtas de Tião, Muro e Sem Coração (este em codireção com Nara Normande), foram festejados também, mas ali havia algo que prenunciava um caminho. O primeiro me enganou em sua época. Revisto, revelou suas fraquezas. O segundo nunca me enganou. Mas ambos têm suas pequenas virtudes. Animal Político é apenas um fogo de artifício soltado numa festa de cinéfilos. Incomoda, deslumbra ou faz sair da mesmice com seu barulho, mas depois ninguém mais se lembra que alguém a soltou.

Jovens Infelizes ou O Homem que Grita não é um Urso que Dança, de Thiago Mendonça

Em um plano, a autocrítica que enobrece a obra de arte. O basco (Ieltxu Martinez Ortueta) faz simulação de sexo com uma estátua (agora me foge de quem seria essa estátua). Um homem, provavelmente um cafetão, pede para ele parar porque pode prejudicar suas meninas e o movimento da rua. O basco fala em arte e radicalidade, ao que o cafetão responde, com desdém, algo assim: “vem ver o que é radicalidade, vem conhecer a Nanda que você vai ver o que é radicalidade”.

Jovens Infelizes, como quase todos os filmes episódicos, é irregular. Sua estrutura reversa (os acontecimentos são mostrados de trás para frente) nem sempre se revela a melhor opção. Algo de Godard (sobretudo na autocrítica, mas também no modo como são apresentadas algumas cenas), passado pelo filtro paulistano de Carlos Reichenbach (fica claro, mas nem precisava, na homenagem a Alma Corsária), abençoa a provocação de Mendonça. E a provocação não é adolescente. Vê-se que é obra de alguém mais maduro. Nesse sentido, o filme é muito mais político do que Animal Político, e mais inteligente que Filme de Aborto. Algumas de suas ideias se afundam no desejo tolo de se mostrar transgressor, embora parte delas cheguem mesmo a esbarrar na verdadeira transgressão. E se hoje é muito mais difícil transgredir (nada mais choca, enquanto as pessoas se ofendem com muito pouco), o simples desejo de transgredir muitas vezes parece um mutirão de pregadores insanos berrando para insanos já convertidos. Talvez a transgressão esteja em outro lugar. Transgressão poderia ser a exibição de um melodrama na tenda de Tiradentes. Mas quem, hoje no Brasil, poderia fazer um bom melodrama?

É salutar a provocação de Thiago Mendonça, com seus jovens perdidos entre slogans e orgias. Em alguns aspectos, está na trilha de Os Residentes, filme de Tiago Mata Machado que ganhou a Mostra Aurora tempos atrás. Mas é mais um filme estranho a este panorama do cinema contemporâneo (como é também Filme de Aborto). No fundo, não se aparenta a nada feito atualmente (a semelhança com o filme de Mata Machado se dá mais no tom e no grito). Se houver um caminho que pode ser prolífico e interessante para o jovem cinema brasileiro, esse caminho é o que começa a ser pavimentado por Jovens Infelizes.

 

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Eclipse Solar, de Rodrigo de Oliveira

Mostra FOCO – dia 1

Ainda me Sobra Eu, de Taciano Valério

Sempre considerei o cinema de Taciano Valério uma invenção da curadoria de Tiradentes. Este é o primeiro curta que mostra um caminho interessante. É, na verdade, uma performance filmada, do ator e diretor Tavinho Moura (diretor de Batguano). Tavinho tem presença diante da câmera. Disso já sabíamos. Suas palavras, por vezes, parecem muito as daquele tio bêbado que sempre se aproxima de nossas mesas num bar para nos importunar com sua filosofia de cachaça. Mas há momentos fortes: o do besouro em cima de um notebook sendo o melhor deles. Quantas vezes vimos um notebook que não soasse cafona ou estúpido em cena? Pois é, muito raramente. Ponto para Taciano Valério.

O Rosto da Mulher Endividada, de Renato Sircilli e Rodrigo Batista

Desde A Bruxa de Blair, as imagens encontradas e remontadas dramaticamente tem rendido alguns filmes interessantes. Este é forte, de proposta arriscada (por vezes fica cansativo por causa disso), digno de ser visto. As imagens encontradas me pareceram falsas. É isso mesmo? Taí um curta que preciso rever.

Lightrapping, de Márcio Miranda Perez

A partir de um trabalho fotográfico com homens nus em lugares públicos construiu-se a trama com Gustavo, o fotógrafo, e Pedro, seu assistente e também modelo. Gustavo e Pedro vão fotografando peladões em terraços de prédio, estradas e até mesmo na frente do Estádio do Pacaembu. Entre os trabalhos, Gustavo e Pedro conversam sobre desejos, paixões e o que excita cada um. Cuidadosamente filmado e estruturado, Lightrapping vai crescendo surpreendentemente graças às opções bem escolhidas do diretor.

 

Mostra FOCO – dia 2

Noite Escura de São Nunca, de Samuel Lobo

Foi o grande vencedor da Mostra Foco, mas, sinceramente, considero-o o pior filme entre os nove inéditos que a compõem. Duas jovens dividem uma casa. Precisam lidar com baratas e ratos que aparecem por lá, e com uma vizinha meio doidinha (ou melhor, que vai progressivamente se mostrando mais doida). Um diabo aparece para essa vizinha. Tempos depois, ela aparece morta, com uma poça de sangue ao redor de sua cabeça.

A meu ver, um filme precisa ser, no mínimo, bem filmado. Isso dentro de um esquema de adequação em que o Pasolini mais desleixado, digamos, Decameron, é bem filmado, pois está de acordo com a estrutura narrativa construida por ele (ou seja, bem filmado é o filme em que seu modo de filmar está em adequação com o que ele pretende passar, mas também com o orçamento e as possibilidades técnicas de que dispõe). E ainda assim pode ser um fiasco (como Animal Político, por exemplo, que mesmo quando é bem filmado é acima de tudo pueril). Noite Escura de São Nunca não é bem filmado, e parece derivar de Nua Por Dentro do Coro, filme superior, mas de validade curta.

Encontro dos Rios, de Renata Spitz

Muito prejudicado pela chuva violenta que caiu na tenda, Encontro dos Rios promove mais uma experiência com uma atmosfera de horror, mas um horror que nunca se concretiza de fato. Há uma possibilidade de o filme lidar de maneira bem sucedida com esse aspecto, mas a possibilidade é logo abandonada em favor de uma ideia de mal que nos corroi sem que saibamos identificar o que é exatamente esse mal. Nada ruim com essa ideia, mas vários filmes exploraram tão bem isso no passado, sobretudo o cinema do leste europeu nos anos 60 e 70, que, em comparação, tudo que se faz hoje me parece enfadonho.

Eclipse Solar, de Rodrigo de Oliveira

Num enquadramento 1.33:1, como nos filmes de Rohmer, Rodrigo de Oliveira nos entrega o melhor curta de toda a Mostra Foco. O mais bem filmado, o mais instigante. Nem o calor da tenda conseguiu estragar (o que, infelizmente, não aconteceu com os dois curtas anteriores). A trama vai se revelando aos poucos, e essa revelação se completa nos letreiros finais, ou não (talvez ele tenha mais é confundido). De todo modo, a falta de certezas norteia este belo filme em que tudo parece nos levar ao confronto final de Selma (Rejane Arruda), mulher que aparentemente não envelhece e que teve um filho e depois um neto gerado com o próprio filho (ao menos foi o que entendi). Esse confronto é com o diabo (Rômulo Braga), um cramunhão Zé do Caixão que ri escandalosamente e promove um inferno gelado à alma de Selma. Alguns planos lembram mesmo Manoel de Oliveira (como notaram antes de mim). Outros remetem a Eugène Green. Desde Horas Vulgares, seu longa de estreia, Rodrigo de Oliveira se revelou um diretor-cinéfilo. Desta vez ele conseguiu chegar a algo particular, para além das alusões e semelhanças com outros filmes.

 

Mostra de curtas Foco – Dia 3

Levante, de Jader Chahine e João Paulo Bocchi

Uma entrevista de emprego, um segurança ex-policial sem noção, um colégio de moleques mimados. A ordem precisa ser estabelecida, e as câmeras de segurança procuram flagrar tudo, até mesmo o momento íntimo do segurança no banheiro. Alunos se rebelam e dançam nus pela escola. Porrada neles. Processo. Novo segurança precisa ser contratado. Assim corre a vida nesse curta sempre inusitado. O não saber o que vem a seguir é sua maior força, mesmo quando o que vem não é tão surpreendente assim.

Entre Imagens – Intervalos, de André Fratti Costa e Reinaldo Cardenuto

Uma participação de 17 segundos no filme Anuska: Manequim e Mulher é o único registro em movimento do artista plástico, Antonio Benetazzo, morto pela ditadura militar em 1972. Este curta tem um lado Godard e um lado Retratos de Identificação, o belo filme de Anita Leandro que vi no ano passado em Ouro Preto. Um dos diretores de Entre Imagens procura o diretor de Anuska, Francisco Ramalho Jr., para que este mostre onde está o artista no filme. Os momentos de encontro com a obra do artista são os mais fortes deste filme sempre instigante, ainda que um tanto reiterativo em sua faceta mais experimental.

A Vez de Matar, A Vez de Morrer, de Giovani Barros

Homens num posto de gasolina de uma zona rural do Mato Grosso do Sul. Entregues ao amor e à competitividade. A câmera procura os corpos, desenha um espaço em torno deles e esses corpos se atraem e se repelem, atacam-se de todas as maneiras, até mesmo as mortais. É o melhor filme da sessão. O melhor pensado na câmera, mesmo que os acontecimentos nem sempre fiquem claros.

 

Mostra de curtas Espaços em Conflito

Mostra que tem o nome do principal tema do evento neste ano, decepciona pela seleção de sete curtas dos quais apenas dois, Território e À Parte do Inferno – com algum esforço O Castelo – trazem questões formais interessantes. Território, aliás, combina mais com os curtas da segunda sessão e está um tanto deslocado da primeira, uma vez que nela estão alguns filmes que estreitam o conceito de espaços em conflito, enquando a segunda o alarga (convém lembrar que o conceito é largo o suficiente para caber a maior parte dos filmes feitos no mundo, sobretudo hoje, quando o que mais temos são espaços em conflito).

– Dia 1

Enquadro, de Lincoln Péricles

Reprovo a opção pela câmera titubeante, e a dissociação entre som e imagem, de certo modo menos infeliz no longa de Péricles, aqui é francamente mal realizada.

Fort Aquário, de Pedro Diógenes

Não tenho entendido as últimas experiências do pessoal da Alumbramento. Estariam perdidos, sem saber o que fazer? Ou eu que não captei o que os move ou o que nos entregam? Espero que seja temporário, uma vez que todos eles já demonstraram o que podem em longas e curtas passados. Aqui parece que o conceito se sobrepõe à realização.

O Castelo, de Alexandre Wahrhaftig, Guilherme Giufrida, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos

Da mesma turma que fez E, um dos curtas de destaque de Tiradentes em 2014, surge agora este curta sobre um condomínio de luxo nas margens do Rio Pinheiros. Apesar da força de algumas de suas imagens, fico me perguntando como é necessário quatro mentes para fazer um curta tão simples, de 9 minutos e meio de duração.

Território, de Iris Junges

Filme de mise en scène, pensado na câmera, com uma forte preocupação da relação dos atores com o espaço. Dois irmãos abandonados. Um claramente entregue ao abandono. O outro luta contra isso e contra o sentimento do irmão. Um interessante trabalho com a penumbra, que me pareceu mais interessante que o do filme de Ruy Guerra, Quase Memória. O irmão que chega é Rômulo Braga e o irmão que está entregue ao abandono é Tavinho Teixeira. São dois bons atores da nova geração, que figuram em diversos curtas atuais (Tavinho é também diretor).

– Dia 2

Pé Sem Chão, de Sérgio Ricardo

A volta de Sérgio Ricardo à direção após décadas é decepcionante. Um homem velho (o próprio SR) testemunha a desumanização em uma favela carioca. O velho pergunta se o oficial de justiça negro que vai levar uma ação de despejo é um escravo e, ao ouvir uma resposta positiva e o oferecimento de seus serviços, ironicamente, o xinga. “Somos o que, paisagem?”, pergunta no final. Ok como intenção, mas insuficiente como cinema. Mas é o retorno de um diretor que já fez coisas muito boas (principalmente Esse Mundo é Meu e Juliana do Amor Perdido). Vamos torcer para que continue fazendo filmes.

Entre Casas, de Luden Viana

Filme extremamente prejudicado pela forte chuva que caiu na hora e batia na tenda com barulho ensurdecedor. Não dá para saber se há o já batido drone que serve de muleta para a criação de atmosfera (em certo momento, parecia que sim, mas não dá para ter certeza), ou se tudo é tentado pela câmera e pela disposição dos elementos em cena. De todo modo, não é uma câmera bem pensada, a não ser em alguns breves momentos.

À Parte do Inferno, de Raul Arthuso

Duas coisas me incomodam no curta de Arthuso: os enquadramentos à Lucrecia Martel e o scope. A martelização (pessoas cortadas no quadro, enquadramentos obstinadamente imperfeitos) incomoda mais no início. Depois ela se arrefece. E a escolha do formato, apesar de não se justificar muito bem aos meus olhos, não é grave. A favor do curta o fato de que ele não fica só no climão. Ao contrário, ele abraça o fantástico sem temores, como os personagens seguem o portal com a certeza de que estão ali só de passagem. A imagem, vista pelo monitor da câmera de segurança, dos moradores de rua olhando para a casa, é forte, e a invasão é o contracampo do cinema dito de horror feito pelo mainstream brasileiro atual. E ainda bem que não fica escancarada a questão social que pode ser levantada a partir disso. Ela está ali, mas só insinuada, sem ser explicitada por algum comentário ou por alguma estratégia da direção. Lembra o terror dos anos 80 (Wes Craven, Hellraiser…).

 

OUTROS LONGAS E CURTAS

 

Através da Sombra, de Walter Lima Jr.

Não é o fiasco anunciado por muitos, e só é decepcionante por seu diretor ser Walter Lima Jr. É menos decepcionante, ainda assim, que seu longa anterior, Desafinados. Com uma direção correta, quase acadêmica, Através da Sombra se sustenta por boa parte do tempo como um razoável drama de aceitação com toques sombrios, como tantos outros que o cinema nos deu. Mas a pergunta se impõe: por que filmar, a esta altura, uma nova versão de A Volta do Parafuso, que já havia tido brilhante adaptação por Jack Clayton em Os Inocentes? Ainda mais se é para fazer algo tão abaixo da versão anterior, sem lhe acrescentar nada, a não ser a língua portuguesa no lugar da inglesa? Se era para Lima Jr. voltar à forma de A Ostra e o Vento, deu muito errado. Se era para se manter trabalhando, ao menos ele pode se exercitar em um gênero bom para perder a ferrugem.

Quase Memória, de Ruy Guerra

Pelo que vimos em Tiradentes, algo faz com que os diretores do cinema novo (Guerra, Lima Jr.) tenham mais dificuldade de se manter em forma que os diretores do chamado cinema marginal (Tonacci, Bressane, Ignez, mesmo que esta última só tenha se tornado diretora mais tarde, e tenha também participado do cinema novo). O que Ruy Guerra conseguiu foi fazer-nos pensar que Quase Memória, o ivro de Carlos Heitor Cony, não era assim tão bom quanto nos pareceu na época. Mas esta adaptação feita com uma câmera delirante e indecisa, com atores em momentos quase constrangedores, talvez entregue que foi mesmo um capítulo terrível da carreira de um cineasta que desde Os Deuses e os Mortos é bem irregular (só A Queda se constitui um grande filme desde então).

Ralé, de Helena Ignez

Filme doido, um tanto trôpego na direção, mas a que vemos sempre com curiosidade: aonde iremos? Ignez se aproxima perigosamente de alguns procedimentos contemporâneos do cinema brasileiro, mas quando sossega e diz o que tem a dizer o filme decola.

Algo que acontece aqui com maior intensidade que em Luz nas Trevas é que somos remetidos o tempo todo a outros filmes. No show do personagem Ney Matogrosso (essa fronteira entre o que é personagem e o que é ele mesmo se dilui nos momentos musicais), lembramos de Jards, um dos melhores filmes de Eryk Rocha. Os momentos da natureza podem lembrar tanto Bressane (grande sintonia com Garoto) quanto História da Eternidade. As citações explícitas lembram o primeiríssimo Godard, a maneira como se costura o filme dentro do filme, Carlos Reichenbach. Com trinta minutos já temos tanta informação que estamos arriscados a nos perder no mar de referências.

Mas é incrível como certos prodecimentos podem afundar ou ajudar um filme. O conjunto propício pode transfigurar aquilo que em outro conjunto nos parecia equivocado ou até terrível. O que é posado e falso pode se transformar em arrojado e intenso. Curiosamente, todos esses efeitos são vistos em Ralé, o que lhe confere a aura de um interessante filme tortuoso. Por exemplo: Mário Bortolotto parece deslocado no filme. Quando aparece, o filme cai. Tenho minhas dúvidas também a respeito da presença de Djin Sganzerla. Logo que aparece, construindo uma moldura no espelho, sua presença é muito forte. Depois, no pequeno apartamento onde encontra o namorado, parece estar em um núcleo frágil do filme. Essa impressão por vezes de esvai, mas depois volta. Outro momento em que a inadequação dá as caras é aquele em que José Celso Martinez Correia se borra todo e chama o filho (namorado de Matogrosso no filme) para ajudá-lo a se limpar. O momento, que poderia ser tocante, é permeado por uma trilha sonora bem inadequada. Penso que o silêncio seria primordial nessa cena.

Pode parecer estranho falar em inadequação em um filme tão livre, que parece possível de comportar tudo o que se queira, um filme tocado pelo espírito da Belair. Mas devemos lembrar que Copacabana Mon Amour, que não é uma obra da mesma estatura de O Signo do Caos, Tudo é Brasil, Sem Essa Aranha ou dos longas sessentistas, também tem suas inadequações, e nem por isso trata-se de um mau filme, pelo contrário. Ralé parece mais a obra de uma diretora reinvindicando para si, e com maior desenvoltura, a mesma filiação belairiana que envolve os trabalhos de Bruno Safadi.

Garoto, de Júlio Bressane

Uma tartaruga, uma pequena luz em meio à escuridão, desenhos infantis na parede. Bressane, como sempre, começa a pedir que o ajudemos a montar seu filme. Pós-título; teste de imagem/locação /elenco. Um homem e uma mulher em local paradisíaco. Uma pose, como num quadro de Edouard Manet. Bressane é um dos poucos diretores que conseguem fazer o belo com o que é posado. Marjorie Estiano, surpreendente como mulher bressaneana. Por vezes parece possuída. Ela fala com a câmera. Parece que vemos o que não era para termos visto. Um teste. É assim que Bressane rompe mais uma vez com a hierarquia do material filmado. Tabu. Ela se aproxima da câmera, se abaixa, fica fora de quadro por um tempo e levanta com leite na boca. O sêmen. Tabu. Ela corre. Ele, depois, fará o mesmo, perseguindo-a enquanto fecha o zíper (não precisava disso para entendermos o sexo oral). Depois ela fala para uma mulher (Josie Antello) que a ajuda, espécie de oráculo, que eles são irmãos. Logo em seguida eles transam. Incesto? Que importa? O filme não trabalha com construções de personagens. É outro o foco. Adão e Eva no paraíso sob o testemunho da cobra tentadora. Adão mata a cobra, mas não mostra o pau.

Filme rachado em dois. Os jovens se separam. Estão em uma região árida. O barulho do vento é predominante, como em Reporters, de Raymond Depardon. As mais belas imagens surgem então: o contorno da rocha que forma um trapézio disforme, a penumbra que cria silhuetas, o anoitecer. Garoto é também um filme sobre o contato dos humanos com a imensidão natural. Os elementos. Terra, vento, fogo e água. O homem (no sentido amplo, do humano) contra a natureza? Não, porque o homem também é natureza. Ao tentar deslocar a grande pedra, é como se ele no fundo quisesse se fundir a ela. Enquanto ela também tenta se fundir à terra, rastejando-se. Eles desaparecem dentro dessas forças que não podem controlar.

Na primeira parte, um homem maduro bate com seus dedos num grande pedaço pintado de madeira bem no meio da mata. É mesmo como se invocasse a natureza, ou alguma divindade, com sua percussão. É também o exercício de um veterano em contato com a juventude: tela brilhadora. Perigo à vista. Mas beleza, igualmente. Uma beleza que sempre será incompleta, pois nunca entenderemos tudo que ela quer dizer. Se entendessemos, seus filmes não teriam tanta força. O fato é que Bressane sempre cresce quando revisto, e Garoto não é exceção.

O Espelho, de Rodrigo Lima

O maior problema de O Espelho é que ele não consegue se livrar de sua forte herança bressaneana, o que, na comparação, o deixa com uma forte aparência derivativa. Mas heranças existem, e é necessário trabalhar com elas. Ou seja, o problema maior do filme é, no fundo, um problema menor num aspecto mais amplo.

Rodrigo Lima parece ter um caminho a seguir. Em seu filme há uma série de imagens fortes, pensadas na câmera (Lima é montador, mas sabe que o filme, desde que não seja baseado em colagens de imagens já estabelecidas, nasce mesmo é na câmera, e se não for assim, não há montagem que salve).  Há, também, o espelhamento de imagens e situações (alguns desses espelhamentos são óbvios): o pico mais alto de uma montanha e o dedo indicador de uma mão; a mulher com uma ave, e depois com um peixe e com uma fera que apenas ouvimos; o homem com um peixe agonizante; o homem com seus duplos, os dados marcando o número três porque são três homens iguais; a cachoeira como mais um elemento para construir abstrações; sexo e natureza. Mas não é só o espelho que protagoniza o filme, é qualquer superfície reflexiva. A principal, no caso, é a água.

O primeiro ser humano que vemos é o homem do dedo inicial, que segura um cigarro e é visto primeiramente pelo reflexo de um espelho. Já é uma indicação de que ele é apenas esse reflexo, um ser incompleto, uma parte de algo muito maior. Ele encontra a mulher que sai de dentro do lago (um parto?) e passa a andar pela floresta (essa mulher é a que vai ligá-lo ao mundo, torná-lo natureza. A mulher vai se ver, logo mais, surpreendida por seu reflexo no espelho. Ela tem forma, afinal. E na verdade, é grande a sintonia com Garoto, de Júlio Bressane. Pois O Espelho também é (e é também) um filme sobre a fusão do humano com a natureza. E continuando a série de espelhamentos, O Espelho, de certo modo, espelha alguns temas e imagens de Garoto: poucos personagens, pequena duração, trabalho com texturas, um homem se envolve com uma mulher, homem e mulher sentados à beira da água como num quadro de Manet, homem e mulher perseguindo-se um ao outro, a natureza e seus mistérios, mulher olhando para a câmera e se abaixando como que para excitar o homem, os elementos terra, vento, fogo e água (fogo, lá como cá, está implícito na ideia de desejo carnal). Nesse sentido, a herança, porque explicitada, é também justificada, uma vez que o filme de Lima continua, ou é continuado, pelo de Bressane.

Na segunda parte, com abstrações e sobreposições, o filme se mostra ainda mais potente. Ana Abbott dançando e virando uma massa indefinida pelo desfocar da câmera é uma imagem de grande beleza. No plano seguinte a essa abstração, ela beija o homem-reflexo debaixo de uma cachoeira. Depois, eles estão num barco, numa composição retirada de algum paisagista romântico. Ela interage com o homem que se tornou definitivamente um reflexo (não só ele, como tudo que o rodeia; parece um mundo erguido debaixo d’água, ou um mundo liquido).

Outro filme rachado em dois, como Garoto. Mas aqui a segunda parte é bem maior, corresponde a dois terços da duração. Baseado em um conto de Machado de Assis, O Espelho justifica o projeto Tela Brilhadora (que não deixa de ser um truque de marketing) ao mostrar que não existe somente para o expurgo de fantasmas bressaneanos, mas para investigar o que ainda é possível de se fazer no cinema.

Jonas, de Lô Politi

Jonas (Jesuíta Barbosa) mora numa favela ligada a uma Escola de Samba, e é apaixonado desde criança por Branca (Laura Neiva), filha da patroa de sua mãe. Ele a sequestra e a mantém prisioneira dentro de um carro alegórico que emula uma baleia. Temos, então, Jonas e sua presa dentro da baleia, por mais canhestra que a simbologia possa parecer. E o filme ainda é todo mal encenado.

Tropykaos, de Daniel Lisboa

A ideia é interessante: mostrar o efeito da onda de calor em Salvador na mente de um de seus habitantes, um pobre infeliz cujo ar condicionado pifou. O Jovem se debate em seu quarto, enfia a cabeça no congelador, refresca-se como pode em lojas de eletrodomésticos, mas o filme não explica por que ele anda com uma blusa de inverno com capuz (ou explica brevemente e eu comi bola). Talvez seja uma piada que eu não captei. Se for, é uma má piada. Quem irá se importar com um imbecil andando com blusa debaixo de um calor ofensivo? Logo vemos, aliás, que a ideia poderia ser interessante para um curta, mas seria preciso um mágico para fazer dela um bom longa. Daniel Lisboa até que dirige direitinho, sem muitos brilharecos. Apenas o suficiente para realçar o absurdo da coisa. E também não transforma em bagunça visual o que a câmera capta. Mas definitivamente não é mágico. As participações de Bertrand Duarte e Edgard Navarro são engraçadas, e só. E a cena do assédio frustrado na rua, dentro do esquema “pedreiro humilhado na frente dos amigos” é bem ruim, porque só está ali  para confortar plateias atuais compromissadas com o politicamente correto, sem razão dramatúrgica alguma.

Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, de Petrus Cariry

Em uma longa linha cujas pontas opostas são tocadas por Boi Neon e Cavalo Dinheiro, o terceiro longa de Petrus Cariry, Clarisse…, felizmente, está mais próximo do segundo. O problema é que não está próximo o suficiente para se livrar de alguns aspectos do primeiro.

Essa linha elucida o que cada diretor herda de um passado cinematográfico em que se encontram os filmes alemães de Murnau, Dovjenko e Antonioni (com ramificações que levam a Mizoguchi, Ophuls, Fassbinder…). Peter Greenaway, Lav Diaz, Lisandro Alonso, Raya Martin e Gabriel Mascaro, entre muitos outros, transformam essa herança num arremedo de cinema prostituido pelas instalações. São diretores do fake, da pose de artista, do esvaziamento completo do drama humano em favor do sensacionalismo e de imagens-choque (filipino que estupra a irmã, festa do cinema com gente da cinemascope e conversas sobre a Criterion collection, vaqueiro estilista, membro ereto penetrando uma mulher grávida sob uma luz estilizada, sexo homossexual filmado como se fosse um escândalo, tudo a milhas de distância de um Derek Jarman ou um Fassbinder).

As imagens-choque estão presentes em Clarisse, só não sei precisar até que ponto elas servem apenas ao choque ou fortalecem o drama da protagonista. A impressão é que são as duas coisas, portanto, fica o benefício da dúvida. De certo modo, algumas delas mostram claramente sua função (a cena final de sexo libertador, por exemplo).

Devemos louvar o trabalho de Sabrina Greve, sempre uma excelente atriz, aqui totalmente entregue à personalidade conflituosa da protagonista, que só consegue ter prazer com algum tipo de violência.

E também algumas imagens de imensa força: a) quando Clarisse visita seu pai (Everaldo Pontes), a breve aparição de uma mulher, no background, adquire ares fantasmagóricos; b) um corpo rolando para um tanque cheio de água; c) Sabrina Greve com o rosto desfigurado pelo sangue que jorrou de todos seus orifícios (esta uma imagem-choque que se justifica dramaturgicamente).

Planeta Escarlate, de Dellani Lima e Jonnata Doll

No geral, não curto muito o cinema de Dellani Lima. Seus filmes costumam ser irregulares, cheios de cenas desleixadamente dirigidas intercaladas a momentos que brilham pela habilidade em compor imagens estranhas. Mas é um guerreiro, que faz filmes como quem se alimenta, como necessidade vital. Isso se sente em tudo que filma. Por isso gosto de ver seus filmes, mesmo que nunca consiga uma adesão completa a eles.

Planeta Escarlate não foge a essa regra. Do que fala este filme? O que pretendem seus diretores? Um casal vive entre transas e brigas. Ramon é viciado em drogas pesadas, mas tenta ficar limpo. Vê o fantasma de sua ex-namorada e recebe conselhos do melhor amigo. Tina procura compreendê-lo, mas é difícil. Há os momentos de felicidade e os momentos de desilusão, muitos deles temperados com o fantástico. Embora muito do climão barra pesada seja alcançado com a ajuda da edição de som, o que é uma saída fácil demais e geralmente procura compensar o que a imagem sozinha não alcança, a estranheza é o forte do longa, como sempre acontece no cinema de Dellani.

O codiretor Jonnata Doll interpreta o personagem principal, e é por sua vez uma interpretação estranha, que de algum modo combina com o filme no que ele tem de melhor e pior.

Urutau, de Bernardo Cancella Nabuco

Com uma nítida inspiração da obra de Pedro Costa, Urutau se passa num único cômodo, um quarto de paredes manchadas e móveis baratos que poderia estar em Juventude em Marcha, caso tivesse a densidade para tanto. Ali vivem o adolescente Fernando e um homem com voz de locutor de programa de rádio noturno chamado Josias. São irmãos? Pai e filho? Amantes? Não se sabe. Mas existe uma clara relação de dependência entre eles. No primeiro plano, eles aparecem transando. Mas Fernando não parece sentir prazer. Depois, Josias dá um presente a Fernando, que é tratado com muita gentileza. Que tipo de relação é essa? Onde o filme quer chegar, com sua radicalidade no uso do fora de quadro (três minutos de cama vazia enquanto os dois interagem atrás da câmera) e seus procedimentos esquisitos (um zoom out no quarto vazio é especialmente bizarro) é um enigma. Um enigma que o alimenta, que nos mantém interessados, e que é parcialmente resolvido no final angustiante. (é curioso ver um filme pequeno desses com quase dez minutos de créditos que parecem passar em câmera lenta).

A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas

Documentário experimental, segundo a sinopse, sobre a ditadura militar na Bahia, realizado pelo diretor do filme dos Novos Baianos, que é bem quadrado. A Noite Escura da Alma tem, de fato, uma faceta experimental. Mas mesmo com o efeito das falas dos entrevistados geralmente  em off, e de estes – intelectuais, artistas, professores e demais sobreviventes da ditadura – sempre aparecerem no escuro, o que vemos na maioria do tempo não é tão experimental assim. Tem imagens bem interessantes e sombrias, por vezes fantasmagóricas com suas sobreposições, bem de acordo com o tema tratado, e nunca deixa de ser informativo e ao mesmo tempo aflitivo (em curioso contraste com o carnaval baiano que vemos no início: o pau comendo solto nos porões enquanto as pessoas festejam nas ruas). Pode-se reclamar de uma ou outra estratégia: tem muitas falas, o que entedia um pouco, e algumas imagens que ilustram os depoimentos são artificiais e posadas demais. Mas é um longa forte e no geral adequado para se tratar um período terrível, que não podemos esquecer.

Being Boring, de Lucas Ferraço Nassif

Filme de orçamento zero, segundo o próprio se anuncia, sobre o impacto que uma música, “Being Boring”, ou o disco a que ela pertence, Behaviour, dos Pet Shop Boys, provoca em algumas pessoas. É experimental, então vemos uma garota dançando e um rapaz que a observa enquanto a música rola. Uma terceira pessoa está presente: é ela que filma. Quem é essa pessoa? Seria a segunda atriz que o filme anunciou nos letreiros iniciais?

O clima de uma festa chata é passado. Por vezes, dá vontade de desistir do filme, que se parece (penso ser intencional) a materialização do título. Mas ele muda assim que entra a segunda faixa do disco, “This Must Be the Place” (na minha opinião, a melhor). Vira uma instalação. Ou um estudo sobre a luz. Mas logo volta para o cara que observa a garota a dançar. Enche o copo, senta, faz cara de cool, é visto através de uma garrafa, e o disco segue rolando. Nos melhores momentos, aqueles em que se lança em tentativas de abstrações e/ou repetições, lembra, de longe, uma atualização de algumas coisas da vanguarda americana dos anos 60/70 (George Kuchar, Ken Jacobs, Kenneth Anger). Mas jamais alcança o nível de inquietação desses diretores. No mais: bode.

O Diabo Mora Aqui, de Dante Vescio e Rodrigo Gasparini

Pelo nome, já se percebe a derivação de Evil Dead (e, indiretamente, de filmes clássicos sobre casa mal assombrada). Duas máximas: a) filme de terror raramente dá prejuízo; b) no terror é que se pode exercitar melhor o estilo. A primeira máxima não vale muito para o Brasil, cujo mercado costuma negligenciar obras de gênero. A segunda encontra já uma óbvia resistência na assinatura: é o estilo de quem que prevalece, de Vescio ou de Gasparini? Observando mais de perto, vemos que O Diabo Mora Aqui não tem muito estilo. Está mais para um artesanato bem feito, subordinado aos códigos do filme de horror (a edição sonora é essencial a esses códigos, e recentemente responde por grande parte do clima que a imagem por si só dificilmente alcança) ou ao texto, que por vezes  parece ser uma seleção aleatória de diálogos de outros filmes. Alguns momentos de exceção: a câmera que segue Apolo quando este vai em direção a Magu (casal em formação) e depois volta pelo mesmo corredor onde estão Alê e Jorge (casal já formado), quando um pisca-pisca ilumina parcialmente o rosto de Alê enquanto ela tem uma espécie de contato com o sobrenatural (o pisca-pisca permanecerá ligado nas cenas de exterior), o casal  de loiros transa e o gozo é acompanhado de um tiro fatal vindo do porão. O aspecto racial é importante: o mal é escravocrata. Mas o filme se perde um tanto nas relações entre os que estão na casa e o que é imortal ou não (além dos quatro mencionados anteriormente e das forças do além, vão para lá os dois irmãos que pretendiam manter o mal aprisionado).

Bom Dia Carlos, de Gurcius Gewdner (curta)

Escatologia pura e caricatural em um filme que visa o incômodo do espectador, mas pode ser visto como uma comédia (ao menos eu vi desse jeito) . Se visto após um almoço de comida mineira, um feijão tropeiro, por exemplo, o espectador mais sensível corre o risco de ficar igual ao protagonista. Se visto em condições normais, será apenas um filme engraçado e aflitivo, mais pela performance do ator do que pelos líquidos coloridos que saem de sua boca.

Chutes, de Gustavo Vinagre (curta)

A maior virtude de Chutes é que há farpas para todos os lados. Quando parece detonar os homens boçais que só querem saber de futebol, percebemos claramente que a mulher também é boçal, afinal, casou-se com um idiota e não faz a menor questão de se separar dele. Fala também em “ditadura gayzista”, que é satirizada com a presença de um homem grávido (semelhança com Filme de Aborto). Ninguém é poupado, nenhuma bandeira, nenhuma causa. Falta agora fazer um filme assim a sério. A ambiguidade num drama sério faria o espectador pensar, algo com que se desacostumou. Neste “menino ou menina” resta apenas uma leve e descompromissada diversão.

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