Ano VII

Kill Tarantino Bill

quarta-feira jan 20, 2016

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No início de 2013, fui convidado a escrever um texto para o catálogo da Mostra Tarantino. Como estava terminando o mestrado na ECA-USP, e quem me convidou também era de lá, acabei fazendo o texto de um jeito mais acadêmico, o que explica as citações e notas de rodapé. Não precisava, mas saiu assim. Reproduzo aqui do jeito que mandei para o catálogo, aproveitando que Tarantino está com novo filme em cartaz (você pode ler sobre esse novo filme aqui e aqui).

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Kill Bill, música e o cinema de Tarantino

 

Por Sérgio Alpendre

 

Há muito tempo Hollywood tem se servido da história do cinema para reelaborar gêneros, apropriar-se de fórmulas já consagradas, continuar por caminhos já estabelecidos anteriormente ou simplesmente repetir ideias antigas sem maquiagem, descaradamente, ideias requentadas para um novo público, com humor diferente e maior tolerância ao que não é original. A prática, que data de uma época difícil de se precisar, tornou-se comum nos anos 1970, quando gêneros e fórmulas foram reestruturados para as plateias jovens, possibilitando imensos lucros para produtores, distribuidores e exibidores. Exemplos bem sucedidos de apropriações de algumas fórmulas vêm sobretudo de refilmagens como Nasce uma Estrela (lançada em 1976 com o mesmo nome e dirigida por Frank Pierson) e À Beira do Abismo (lançada em 1978 no Brasil como A Arte de Matar, e assinada por Michael Winner). A reelaboração de gêneros que nos anos 1960 e, principalmente, nos anos 1970 se tornou moeda corrente em Hollywood, algo que se aplica também aos filmes citados acima (um musical e um filme noir, respectivamente), foi responsável pelos dois maiores sucessos de 1977, Guerra nas Estrelas, de George Lucas, e Contatos Imediatos do 3º Grau, de Steven Spielberg (ambas ficções-científicas); e também por um longa que, lançado em dezembro de 1976, representou ao mesmo tempo um retorno ao subgênero do filme de boxe, calcado em O Campeão (King Vidor, 1931) e De Corpo e Alma (Robert Rossen, 1947) e responsável por um renascimento de Hollywood como fábrica dos sonhos, após anos de crítica e negatividade da chamada Nova Hollywood: Rocky – Um Lutador, de John G. Avildsen. Antes disso, inúmeras releituras de gêneros já haviam sido realizadas, seja por artesões como Arthur Hiller, John Hough ou Alan Pakula, seja por autores como Robert Altman ou Paul Mazursky. Eventualmente, esses diretores citavam filmes antigos ou mesmo seriados de TV em suas tramas, como maneira de fisgar o público já antenado com a história do cinema. A prática foi alavancada nos anos 1980, chegando a níveis de paródia e atingindo um grande pico na década seguinte, a década que viu um novo cineasta surgindo no horizonte com suas releituras dos filmes de gangsters e da blaxploitation: Quentin Tarantino.

Para entender melhor o cinema desse diretor de paixão irrestrita por música e cinema, é necessário ter consciência do cinema referencial que se tornou incrivelmente popular a partir da década de 1970. É necessário, sobretudo, compreender que Tarantino pode ser talentoso e bom diretor, mas originalidade não é bem seu maior trunfo. Nenhum problema com isso, uma vez que na história da arte sempre houve e sempre haverá aqueles que criam a partir do zero e aqueles que retrabalham temas de outrem em busca de uma sublimação. É precisamente neste caso que se encontra Quentin Tarantino, e é sobre o caráter multi-referencial de sua obra, desde o pastiche de Cães de Aluguel até o caminho para um outro tipo de reverência em Bastardos Inglórios e Django Livre, que nos deteremos neste artigo.

A ligação mestre-discípulo entre Martin Scorsese e Tarantino é interessante, e vem sobretudo pela maneira como ambos os diretores usam a música pop em seus filmes. Em Caminhos Perigosos ou Os Bons Companheiros, por exemplo, Scorsese usa a trilha sonora como se estivesse compondo uma coletânea de sucessos de seu quarto, pontuando suas tramas com as melodias e os arranjos pesados das canções de rock que ele gosta de escutar. Tarantino faz exatamente a mesma coisa em Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Jackie Brown, com a diferença de que seus universos musical e cinematográfico são mais amplos, passando por funk, soul, country, música de faroeste spaghetti, cinemas oriental e russo e filmes baratos de diferentes cinematografias, enquanto a aproximação de Scorsese se dá principalmente com o rock clássico, ou com a música soul que já havia sido absorvida por roqueiros, como também com cinema clássico americano e cânones do cinema moderno europeu. De todo modo, é fácil entender como o cinema referencial de Scorsese iria desembocar na fascinação com a história do cinema aproveitada e absorvida nos filmes de Tarantino. Tal fascinação, por seu lado, iria culminar, ainda dentro da carreira desse diretor, com uma das experiências estéticas mais ousadas e inventivas que envolvem cinema e música pop: o primeiro volume de Kill Bill, o coquetel de influências que atinge o zênite, a mais perfeita tradução de um álbum conceitual pop/rock para o cinema.

 

O cinema da alusão

Quando foi publicado na revista October, em edição de 1982, o texto de Noel Carroll sobre a incidência da alusão em filmes hollywoodianos a partir dos anos 1960, o autor mal imaginava que na década de 1990, quando a alusão tornou-se ainda mais constante em Hollywood, um diretor chamado Tarantino iria levar tal prática a limites autoparódicos. Desde Cães de Aluguel, seu primeiro longa, chegando ao ápice com o díptico Kill Bill, o cinema de Tarantino recria cenas e situações de filmes que costumavam frequentar seu videocassete em sua época de aprendizado cinematográfico. Faroeste italiano (western spaghetti), filmes de Kung Fu, filmes de yakuza, de gangsters, de assalto e blaxploitation; nada escapa de seu radar treinado para captar momentos que podem ser revividos em seus próprios filmes. O assim chamado “cinema da alusão”, do qual Tarantino se apropria, não é recente. Data do tempo em que críticos começaram a reforçar o conhecimento sobre a história do cinema e seus leitores passaram a acompanhar essa história com afinco.

A gênese sessentista do cinema de alusão que iria explodir nos anos 1970 é resumida por Carroll com as seguintes palavras:

 

A proliferação de estudiosos da história do cinema permitiu aos diretores emergentes pressupor que no mínimo parte de sua plateia estaria preparada para procurar suas alusões à história do cinema e ver nelas sinais de compromissos expressivos de seus filmes. O jogo da alusão poderia começar; os mensageiros e os receptores estavam em seus lugares; as  condições necessárias para o jogo da alusão eram satisfatórias.[1]

 

É preciso lembrar que ao fortalecimento da crítica de cinema nos anos 1950 seguiu-se o crescimento das escolas de cinema, que passaram a formar cineastas, teóricos e críticos em profusão na década seguinte. É justamente nesse interim que a base para um cinema da alusão é devidamente montada, chegando a Hollywood via cinema moderno europeu: Arthur Penn emulando Godard em Mickey One (1964), John Cassavetes levando a câmera às ruas em Sombras (1960), Robert Altman brincando com a narrativa (e o espectador) em Voar é Com os Pássaros (1970), Robert Mulligan (O Preço do Prazer, de 1963, O Gênio do Mal, de 1964) e Robert Aldrich (Triângulo Feminino, de 1968, The Grissom Gang, de 1971) fazendo filmes influenciados por Bergman, Bertolucci e, novamente, Godard; e se reforçando com a produção dos alunos dessas novas escolas: Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Brian De Palma à frente do grupo que seria identificado como Nova Hollywood.

Alusão, como o próprio Carroll afirma, tornou-se então um dos principais elementos do cinema, uma maneira de os diretores fazerem “comentários sobre os mundos ficcionais de seus filmes”[2]. O crítico ainda adverte:

 

Alusão, como estou usando aqui, é um termo geral que abrange diferentes práticas incluindo citações, memorização e reelaboração de gêneros clássicos, homenagens, e a recriação de cenas, planos, motivações, diálogos, temas, gestos, e o que mais pudesse vir da história do cinema, especialmente porque tal história já estava cristalizada e codificada nos anos 1960 e início dos anos 1970.[3]

 

No período estudado por Carroll foram lançadas inúmeras reelaborações de gêneros clássicos do cinema americano. Os exemplos mais óbvios são o filme noir (Chinatown, de Roman Polanski, 1974; Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan, 1981; O Destino Bate à Sua Porta, Bob Rafelson, 1981), bem como sua mais constante variação, o filme de detetive (À Queima Roupa, John Boorman, 1967; O Perigoso Adeus, Robert Altman, 1973; como também as paródias, destacando Assassinato Por Morte, Robert Moore, 1976), o filme de gângster (Bonnie & Clyde, Arthur Penn, 1967; The Grissom Gang, Robert Aldrich, 1971), o faroeste (Meu Ódio Será Sua Herança, Sam Peckinpah, 1969; Soldier Blue, Ralph Nelson, 1970; Quando os Homens São Homens e Oeste Selvagem, ambos de Robert Altman, 1971 e 1976, respectivamente), o musical (Loucuras de Verão, George Lucas, 1973; Nasce uma Estrela, Frank Pierson, 1976; New York, New York, Martin Scorsese, 1977; Os Embalos de Sábado à Noite, John Badham, 1977; Grease, Randal Kleiser, 1978). Nos anos 1990, a falta de criatividade se aprofundou e as reelaborações se tornaram mais numerosas e cada vez menos imaginativas. O que era recurso torna-se necessidade comercial. Trabalha-se com o que deu certo algum dia, seja nos anos 1940 ou num tempo mais recente (os anos 1980), fazendo as necessárias atualizações para o espírito da época. Foi a década em que começaram a se multiplicar as comédias românticas (das quais Ernst Lubitsch é pai com seu A Loja da Esquina, de 1940), a partir do grande sucesso de Harry e Sally – Feitos Um para o Outro (Rob Reiner, 1989). A ficção-científica, peça chave do cinema hollywoodiano no período 1977-1987, permanece com força em filmes de sucesso como O Vingador do Futuro (do mesmo diretor que havia feito Robocop em 1987, Paul Verhoeven), Robocop 2 (Frank Miller, 1990), O Exterminador do Futuro 2 (James Cameron, 1992 – retomando o sucesso do filme de 1984), O Demolidor (Marco Brambilla, 1993), entre outros. Se nos anos 1990 ainda era possível fazer bom cinema autoral no seio de Hollywood, foi naquela década que se iniciou um processo que atinge o cinema americano até hoje. Um processo em que a invenção se tornou rara, o contrabando é praticamente a única maneira de se fazer algo mais pessoal, e um diretor especial como Tarantino inicia seu brilho quase solitário em meio à mediocridade reinante.

É justamente em tal década que Tarantino começou a trilhar o caminho em direção ao rápido estrelato. Desde os anos 1960, quando se popularizou o adjetivo felliniano, não surgia diretor tão imitado, a ponto de surgir também a qualificação, quase sempre mal utilizada e compreendida, de tarantinesco. O que é ser tarantinesco, afinal? O próprio Tarantino rejeita o rótulo, dizendo, com razão, que seus três primeiros filmes são bem diferentes um do outro. Mas talvez a resposta mais apropriada seja: trabalhar com um número incrível de alusões, tanto à rica história do cinema quanto ao vasto repertório da cultura pop. O fato é que, com seu primeiro filme, Cães de Aluguel (1992), uma releitura de dois subgêneros clássicos, o filme de gângster e o filme de assalto, o diretor atinge um novo patamar no uso das alusões. Tanto na narrativa, quanto no estilo, pipocam alusões a filmes e cineastas do passado, dentro e fora do cinema americano (o cinema policial de Hong Kong nos anos 1980 é referência forte para esse filme).

Uma das referências de Tarantino para esta estreia (como também para o futuro À Prova de Morte), é Fuga Alucinada (John Hough, 1974), longa que, por sua vez, bebe na fonte de Perigosamente Mortal (Joseph H. Lewis, 1949) e faz audível alusão a Desafio à Corrupção (Robert Rossen, 1961). Ou seja, é o sistema de alusões num regime de antropofagia necessária para a sobrevivência dos gêneros e de Hollywood em meio à crise criativa.

Com Pulp Fiction (1994) a arte da alusão é sublimada por meio de uma série de piscadelas em direção à cultura pop que alimentou Tarantino e sua geração. Há o romance policial barato, o filme de gângster, o filme de boxe (com os bastidores e as consequências de uma luta, mas não a luta em si), além de tintas de paródia, comédia romântica, exploitation e thriller. Pulp Fiction amplia o caldeirão temático e estilístico do diretor e o coloca definitivamente no rol dos grandes cineastas contemporâneos, um dos poucos capazes de levar, com sua assinatura, milhares de pessoas ao cinema. O sistema de alusões a que Carroll se referia triunfava novamente perante público e crítica.

Faltava, ainda, a blaxploitation, importante manancial de sua cinefilia que seria expurgada, finalmente, com a obra-prima Jackie Brown. A recuperação de astros do passado (John Travolta em Pulp Fiction), agora acontece em dose dupla: Robert Foster, antigo galã de filmes baratos, faz par romântico não consumado com Pam Grier, estrela máxima da blaxploitation. A não consumação é o aspecto mais tocante de Jackie Brown. O casal principal claramente se ama, mas esse amor não é consumado por medo e inércia. Medo da idade, sobretudo, mas também de um passo em falso, de se machucar perdidamente numa relação fadada e intempéries. Perto de Pulp Fiction, a narrativa de Jackie Brown é comportada, palatável para um público acostumado a receber tudo mastigado. “Quanto mais complexos os artifícios, mais redundante a narrativa precisa ser”[4] – eis a fórmula de David Bordwell para a narrativa hollywoodiana a partir dos anos 1990. Pulp Fiction não é redundante, e por isso seu sucesso pode ser considerado um fenômeno. Jackie Brown não tem a necessidade de ser redundante, pois sua trama é perfeitamente seguida pelos cérebros preguiçosos das plateias de multiplexes, geralmente mais preocupadas com a pipoca do que com o que se passa na tela. Pode ser considerado o filme mais comportado de Tarantino, e também o mais eficiente.

 

Chegamos, então, a Kill Bill vol.1, o ápice do cinema da alusão e o filme que brinca com o adjetivo tarantinesco como quem está acima de comentários pejorativos, que assume criar um mundo paralelo em que as noções de verossimilhança são espalhafatosamente alargadas para abarcar toda a energia criativa de seu diretor e seu repertório fílmico. O filme que Yannick Dahan chamou de “novo ovni pós-moderno do mais cinéfilo dos diretores”[5].

Em linha semelhante à adotada por Carroll, o crítico americano Chris Norris explora a ideia de impureza no cinema de Tarantino, ideia corroborada pela cena em que uma das vilãs de Kill Bill, a nova chefe da Yakuza O-Ren Ishii, é ofendida por ser mestiça (ela é parte japonesa, parte chinesa, parte americana) por um dos chefes presentes à cerimônia de posse. Punição pelo questionamento: a cabeça cortada, e jatos de sangue manchando a mesa e alguns participantes. Impõem-se a liderança pelo medo, como havia ensinado Bill the Butcher um ano antes em Gangues de Nova York, de Martin Scorsese. Norris brinca com essa noção de impureza do sangue:

 

      Em um país onde o discurso da mulher é literalmente incompreensível a menos que seja feito em alto tom, essa nova líder o faz em som baixo, alto e – adicionando um palavrão à decapitação – em inglês.(…) O-Ren Ishii é, num certo sentido, o próprio Tarantino: outro garoto americano violento, defensivo, maluco, brilhante e confuso.[6]

 

A ideia de impureza remete a André Bazin e sua defesa de um cinema impuro, ou seja, com roteiro adaptado de algum romance, em oposição ao cinema puro que buscavam alguns diretores desde os anos 1920. Remete também, como uma espécie de fortalecimento de uma tendência, ao cinema de alusão estudado por Noel Carroll. Seja como for, a impureza em Tarantino passa também pelo mergulho na história da música pop, realizado pelo diretor desde seu primeiro e inacabado filme, My Best Friend’s Birthday (1987), e que se aperfeiçoa com a história da Noiva vingadora.

Tal como Jean-Luc Godard havia feito com a literatura em O Pequeno Soldado, e o casal Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet tinha feito com a arquitetura (ou uma ideia de arquitetura para o uso do espaço filmado) em A Crônica de Anna Magdalena Bach, Tarantino realiza, com Kill Bill 1, um disco conceitual com imagens, expandindo assim uma outra noção: a da música como pontuação da narrativa ou acentuação de elementos dramáticos, até limites nunca antes vistos de maneira tão acurada. Kill Bill vol.1 é um filme realizado unicamente para os sentidos.

Kill Bill vol.1, disco conceitual em imagens

Em 2004, lamentava-se na comunidade cinéfila a necessidade comercial de se dividir Kill Bill, a história da vingança de uma mulher contra aqueles que quase a assassinaram, em dois longas-metragens. O segundo volume, segundo a maior parte dos críticos, completava e justificava o primeiro, e este, por sua vez, era apenas um aperitivo para o verdadeiro filme que era possível vislumbrarmos somente no segundo volume.

Não há muitos enganos maiores que esse na história recente da crítica cinematográfica. Se pensarmos em estrutura, ritmo, mise en scène, o mais correto seria dizer que a invenção sensorial de Kill Bill Vol.1 justifica a divisão, enquanto Kill Bill Vol.2 é a corda usada para amarrar comercialmente a saga da Noiva. Mas para quê mesmo queremos uma corda? Amarrar um aglomerado de cenas construídas impecavelmente segundo a mais laboriosa mise en scène não seria algo supérfluo, uma vez que temos pela frente um filme que existe em outra dimensão, num mundo exclusivo de seu criador, ou melhor, existente, como o próprio Tarantino diz, exclusivamente no cinema? E por que não considerar que essas imagens referenciais, alusivas, apresentam uma amarra que responde justamente pela lógica do cinema, não de uma regra comercial já desgastada?

O necessário e justificável volume 1 do díptico Kill Bill é na verdade o zênite de algo que Tarantino persegue, inconscientemente ou não, desde o início de sua carreira: a realização de um álbum de ópera-pop em forma de filme. Não é necessário entender os meandros de arte tão nobre e emotiva como a música, tampouco saber ler partituras ou tocar algum instrumento para entender tal afirmação. Basta ter boa audição (não em potência, mas em disciplina e paixão) e saber olhar. A questão aqui é entender a sinfonia musical cinematográfica de Tarantino do ponto de vista de um melômano, não necessariamente de um apreciador ciente da técnica. Dessa maneira, é possível perceber cada canção colocada como um movimento, de acordo com o momento narrativo; cada diálogo ou monólogo como solos de um determinado instrumento musical, cada faixa pensada para oferecer um contraponto à anterior, ou uma preparação para a seguinte. Assim é um álbum de ópera-pop[7], assim é Kill Bill Vol. 1.

A ideia de ópera em relação a Kill Bill já estava presente na resenha de Wesley Morris publicada em livro organizado por Paul A.Woods em 2005. O crítico escreve, a respeito deste primeiro volume, que

 

Tarantino reinventa o filme de ação americano, lançando mão de seu usual arsenal de ilusões e verve para transformar pop arte em bagaceirice cult. O filme eleva violência grind-house japonesa/de Hong Kong a um raro território operístico, sem deixar o gênero de artes marciais e os filmes de samurai fora do negócio. Ele os fundiu numa única espécie cinematográfica.[8]

 

Operístico, diz Morris, num sentido mais cinematográfico, da parte de um diretor que é obviamente influenciado por Sergio Leone. Um tanto diferente do que defendemos aqui. Mas a ideia de fusão é pertinente. E ópera, afinal, é música usada para amarrar uma história cuja letra em forma de versos está contida em um libretto. O conceito que nos importa aqui é “música amarrando uma história”, o que se aplica perfeitamente a Kill Bill 1. Pois é a música que faz avançar a narrativa (como aliás em inúmeros filmes hollywoodianos) e mais: ela conduz nossas sensações para o mundo do cinema segundo Tarantino. Temos a fusão de suas referências visuais e musicais em um só filme. Chris Norris, por outro lado, prefere a ideia de “álbum do Wu-Tang”[9], aproveitando que a direção musical do filme foi responsabilidade de RZA[10], líder do importante grupo de hip hop Wu-Tang Clan. É um dado a não ser esquecido, uma vez que RZA modernizou alguns trechos e ajudou na fabricação do conceito musical. A ideia de ópera-pop, contudo, nos parece mais adequada.

Um trunfo da concepção musical de Tarantino é a percepção de que o tipo de música usada nos westerns spaghetti cai perfeitamente em filmes japoneses (de samurai, de vingança, de yakuza, e mesmo num anime). Quem viu dois ou três filmes de Sergio Corbucci, Sergio Sollima ou Ferdinando Baldi sabe que suas trilhas caberiam perfeitamente em filmes como Yojimbo (Akira Kurosawa, 1961), ou A Vida de um Tatuado (Seijun Suzuki, 1965). A aproximação estilística entre filmes japoneses e faroestes italianos, de fato, é evidente. Em Kill Bill 1, Tarantino promove esse reencontro com habilidade notável. Começa com o logo da Shaw Brothers (produtora de Hong Kong que foi muito forte dos anos 1960 aos 1980). Mas poderia ter começado com uma agulha atingindo os sulcos de um vinil. Seria igualmente apropriado.

 

*** *** ***

O filme-álbum começa com a tela escura e uma respiração ofegante, que depois ficamos sabendo pertencer à Noiva (Uma Thurman), protagonista já devidamente espancada pelos Deadly Vipers de Bill (David Carradine). É uma introdução calculada para deixar o espectador-ouvinte tenso já de início. Os pesados passos de Bill no assoalho contribuem para o clima de apreensão. Segue um diálogo em que se estabelece a antiga relação de amor entre a Noiva e Bill, onde este, com a voz aveludada e impressionante, fala pausadamente, dizendo ser masoquista em vez de sádico. Bill, por sinal, só irá aparecer no segundo volume. Neste, ele é apenas uma voz, ou um borrão desfocado por trás de um cano de revólver no breve flashback que a Noiva tem quando desperta de um estágio de coma, mais adiante.

Logo após o tiro que manda a Noiva para o coma de quatro anos e seis meses, entra a voz de Nancy Sinatra. A música, “Bang Bang”, que também teve uma ótima versão com Stevie Wonder, cai perfeitamente para encerrar este prólogo sonoro e acompanhar a entrada dos créditos iniciais. As cenas que seguem mostram a segunda vingança da Noiva, contra Vernita Green (Vivica A.Fox). À maneira de Pulp Fiction, Tarantino brinca com a cronologia, o que também ajuda na construção do álbum musical. A sequência funciona como a parte mais ousada do álbum, sua faceta mais experimental, em que os momentos de silêncio são quebrados por barulhos de briga, vidros estilhaçados, lâminas, socos, pontapés e gemidos. É encerrada por uma narração em japonês (de Hattori Hanzo, personagem que ainda não apareceu) sobre os atributos e deveres de um guerreiro. Tudo é atmosfera em Kill Bill 1, estímulos sensoriais.

A cena seguinte mostra a noiva ensanguentada logo após o espancamento e o tiro que era para ser fatal. O xerife que vai investigar o caso traz a música country, por meio da voz de Charlie Feathers, apresentado por um locutor de rádio (é a fixação de Tarantino pelo encadeamento musical, já visto em Cães de Aluguel e influenciado por Vanishing Point). É um instante hillbilly, com os diálogos espelhando o interiorano dos E.U.A., de costumes conservadores e crenças religiosas extremas.

Um assobio melodioso (música composta por Bernard Herrmann para o filme inglês A Morte Tem Cara de Anjo, de Roy Boulting, 1968) nos introduz em outro clima, como se fossemos transportados da América profunda para um western spaghetti[11]. Mas não estamos nos desertos de Marrocos ou nas regiões áridas da Espanha, lugares onde se filmava boa parte dos faroestes à italiana; estamos num hospital aparentemente urbano, com suas luzes assépticas, onde nossa heroína repousa inconsciente. O assobio introduz uma das futuras vítimas da Noiva, a assassina de tapa-olho Elle Driver (Daryl Hannah). O som do assobio, que se tornou fundo musical durante sua caminhada no corredor, é interrompido para um monólogo dessa assassina, dirigido à Noiva inconsciente, seguido da voz aveludada de Bill ao telefone. Após a ordem deste para que Elle Driver não mate a vítima indefesa, a voz metálica da assassina, agora do outro lado da linha, solta um impropério (“what?”) que soa como um estampido metálico, praticamente inaudível. Esse é o tipo de intervenção experimental que Tarantino realiza em sua trilha sonora com a ajuda de RZA, a ecoar mais adiante, quando a xícara do ajudante de Hattori Hanzo cai de sua mão, no extra-campo, para demonstrar sua surpresa ao ouvir que a identidade secreta de seu chefe fora revelada.

É com a ida ao Japão para realizar sua primeira vingança que o álbum se torna mais pop e sedutor, com músicas que representam a história do cinema embalando a fúria da vingadora, canções pop/rock de apelo comercial e vozes preenchendo musicalmente as pausas que a narrativa musical oferece. A viagem é precedida pela história de O-Ren Ishii, outra assassina forjada sob o signo da vingança, conforme contada pela Noiva (e pelo filme em forma de anime) enquanto tenta recuperar os movimentos da perna, com a bela música de Luis Bacalov (para o western spaghetti O Grande Duelo, de Giancarlo Santi, 1972) a embalando na maior parte. A outra parte recebe um tratamento musical mais suingado: o trecho de uma música composta por Isaac Hayes para o filme O Preço da Ousadia (1974), do injustiçado diretor Duccio Tessari, um dos mestres do cinema criativo e barato (logo, um dos mestres óbvios de Tarantino). O anime é um parêntesis dentro do filme, e assim também é a trilha desse pequeno segmento animado. Ela funciona como um respiro melódico (com um tema que voltará mais ao final) seguido de um contraponto de impacto. Essa estrutura repete a do filme como um todo; a trilha funciona como uma sucessão de contrapontos nascidos da cinefilia e da melomania do diretor.

A chegada a Okinawa é acompanhada de alguns acordes do arranjo para “Bang Bang” que ouvimos no início. Em seguida, é a vez de um instrumento peculiar dominar a trilha: o inglês cheio de sotaque do ator Sonny Chiba, velho herói de filmes japoneses dos anos 1970 e 80, aqui no papel de Hattori Hanzo, que agora se esconde como pequeno comerciante. É preciso apenas um “Welcome”, com o “l” pronunciado com a típica dificuldade oriental, do antigo fabricante de espadas de samurai, impressionado com a beleza angelical que vem daquela aparição loira à sua porta, para já ficarmos entregues a essa cena antológica. Só o diálogo entre a Noiva e Hattori Hanzo (mais as broncas no funcionário noveleiro e uma xícara caindo no chão) preenchem a trilha sonora. Nada mais é necessário, a não ser os pequenos ruídos da movimentação de ambos (dentro dessa movimentação, Hattori Hanzo maneja um facão de cozinha como quem empunha uma espada contra um inimigo). O sotaque de Sonny Chiba, afinal, nos conquista definitivamente (“my english very good”). No decorrer do diálogo, quando a Noiva revela suas intenções, ela, que dizia saber apenas três palavras de japonês, começa a falar a língua dos samurais fluentemente, como num passe de mágica. A Noiva sobe no sótão de Hattori Hanzo. Enquanto vê as espadas, ouvimos uma bela voz feminina cantarolando uma típica melodia oriental. É a música “Wound That Heals”, cantada por Salyu e originalmente presente no filme nipônico All About Lily Chou Chou (Shunji Iwai, 2001). Ao final da visita, quando a heroína recebe o convite para se hospedar ali enquanto Hattori Hanzo fabrica a espada, inicia-se a música do romeno Gheorghe Zamfir (“The Lonely Shepherd”, presente na minissérie australiana Golden Soak, de 1979). O momento comprova a intenção musical ambiciosa de Tarantino. A música se desenrola, e as cenas acompanham a progressão melódica. Começa com a flauta de pã, os outros instrumentos vão entrando lentamente. Logo depois, há um momento de suspensão, em que a melodia se torna minimalista por um bom tempo, até que o fabricante de espadas pronuncia algumas palavras, começando no exato momento em que a flauta de pã volta a tocar a melodia principal: “Acabei de fazer algo que jurei há 28 anos que nunca mais faria. Criei algo que mata gente (…) “Ouso afirmar que esta é minha melhor espada. (…) Guerreira de cabelo amarelo. Vá!”. Ao que a personagem de Uma Thurman responde apenas com um “Domo”[12]. É o momento exato em que a música explode com todos os instrumentos, num belo e impactante arranjo.

Além de uma decupagem muito bem feita de toda a cena da entrega da espada, Tarantino ainda demonstra um domínio do ritmo que é raro no cinema a partir dos anos 1990. Nos filmes anteriores ele havia patinado nessa questão, mesmo na obra-prima que é Jackie Brown (e que de certa forma beneficia-se de uma arritmia involuntária). O álbum conceitual chega a seu ápice.

O que se segue é uma miscelânea de estilos musicais que fariam inveja ao mais eclético dos DJs. De rock de garagem japonês a pop americano dos anos 1960, da trilha de Besouro Verde a uma bela balada japonesa (que se assemelha a uma balada de western spaghetti), da disco-flamenco do Santa Esmeralda à música de motel, de Quincy Jones a Ennio Morricone, tudo que Tarantino ouviu na vida poderia estar presente na famosa sequência do “Confronto na Casa das Folhas Azuis”, o quinto e derradeiro capítulo de Kill Bill 1, em meio às lâminas e gritos de briga, e a sequência toda prima pelas cenas de ação mais arriscadas feitas até então pelo diretor, culminando com o esperado duelo com a temível O-Ren Ishii num jardim cheio de neve. Ao final, a Noiva consegue sua vingança, como já sabíamos no início do filme ao vermos o nome de O-Ren Ishii já riscado em sua “lista de morte”.

Ao final do confronto na casa das folhas azuis, o mosaico musical se completa, primeiro com a bela balada japonesa “Flower of Carnage”, cantada por Meijo Kaji; e depois com a voz de Bill, dizendo a sua protegida Sophie Fatale, que teve o braço direito decepado no confronto: “Is she aware her daughter is still alive?”[13]. A voz rouca e aveludada de Bill funde-se à melodia de Zamfir que estava ao fundo para encerrar esta belíssima sinfonia audiovisual. A agulha sobe. Fim dos créditos. Fim do disco.

 

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Esse conceito musical que amarra a narrativa já estava presente, de maneira mais discreta, em Cães de Aluguel, com o programa de rádio que toca sucessos dos anos 70 adornando a violência que vemos na tela. Reaparece em Pulp Fiction, cuja trilha foi um dos maiores sucessos de venda da história, alternando surf music, baladas e funk, e cresce ainda mais com Jackie Brown, no qual a música negra dos anos 60 e 70 comanda as explosões de sentimentos dos personagens (a música dos Delfonics faz com que Max se lembre de Jackie, e a de Bobby Womack faz Jackie, e talvez o espectador, lembrar de momentos tocantes e chorar).

Kill Bill 1 é portanto a coroação da experiência musical de um dos diretores que melhor soube explorar o apelo da música pop em seus filmes. A música pop em Kill Bill vem também do próprio cinema. Desse modo, Ennio Morricone, Luis Bacalov e Riz Ortolani convivem com Charlie Feathers, Human Beinz e Santa Esmeralda, na festa do ritmo promovida por Tarantino.

Ritmo é a palavra. Se há algo perfeito em Kill Bill 1 é justamente o ritmo. Dosando os tempos quase mortos com diálogos triviais e a ação frenética que se desenvolve nos confrontos, Tarantino conseguiu fazer com que seu álbum pop tivesse um rock seguido de uma balada, depois de uma canção bem melancólica que é seguida de um novo rock, para depois iniciar uma levada bem lounge (com a flauta fazendo a principal melodia), seguida de um funk de rachar o assoalho, e assim por diante. As vozes entram como pequenos interlúdios, como narrações num disco conceitual de rock progressivo (estilo representado no filme pela banda alemã Neu e pelas faixas de Luis Bacalov e Riz Ortolani). A alternância de estilos musicais orienta o ritmo perfeito do primeiro volume e faz com que sua duração se torne um bálsamo para quem tem ouvidos bem abertos e olhos livres.

 

A síntese e o brilho esmaecido

Não só na parte musical, ou melhor, na conjunção entre música e imagem, mas também no estilo, podemos dizer que Kill Bill Vol. 1 é uma síntese da carreira de Tarantino. É o resultado de todas as suas obsessões, de anos dedicados à paixão pelo cinema. E o diretor precisou recorrer ao cinema oriental para conseguir tal proeza.

Yannick Dahan intitulou seu texto da Positif sobre Kill Bill 1 com o nome de um filme de Suzuki: O Vagabundo de Tóquio (1963)[14]. A referência é evidente na cena em que a Noiva luta com os Crazy 88 em cima de um chão de vidro. Outro filme de Suzuki, A Vida de um Tatuado (1965), está presente quando a Noiva luta com os oponentes no escuro, e só vemos suas silhuetas na frente de uma luz azul. Suzuki adorava esses jogos de luz e cores, e Tarantino, apesar de admitir que não gostava dos filmes do diretor japonês integralmente, só de momentos, claramente bebeu dessa fonte. Mas não é de nosso interesse identificar de onde vem cada referência. Inúmeros sites já se encarregaram de fazer isso. O que nos interessa é perceber como essas referências se encaixam, e como Kill Bill sintetiza o cinema referencial de Tarantino pela exacerbação de algumas de suas principais características. É paradoxal, já que a síntese requer equilíbrio, controle. Porém, em se tratando de um filme de Tarantino, tudo é possível, e a síntese se dá pela maneira como ele se apossa de referências que anteriormente haviam aparecido de forma discreta, porque subordinadas às histórias que ele queria contar, e as embaralha numa confusão de gêneros (o escalpo tirado de O-Ren Ishii, por exemplo: um elemento de Western fundindo-se à ambientação de filme de samurai). As referências são bem diversas: a desolação e a presença física do western spaghetti e dos filmes de aventura orientais, blaxploitation, homenagens a diretores favoritos, recuperação de figuras estranhas para as novas gerações, colocação sem adaptação do passado no tempo em que vivemos, falta de hierarquização dos tempos da narrativa, câmera maneirista alternando com câmera funcional, e, sobretudo, na trilha sonora que engloba todos ou quase todos os seus gostos.

Dedicando cerca de 70% da duração do filme entre Okinawa, quando vai atrás de Hattori Hanzo para comprar uma espada fabricada por ele, e Tóquio, quando vai enfrentar O-Ren Ishii, Tarantino homenageia principalmente diretores japoneses, de Akira Kurosawa a Seijun Suzuki, de Kihachi Okamoto a Toshiya Fujita, além de incluir no bolo uma meia dúzia de cineastas chineses que trabalhavam para os Shaw Brothers, numa espécie de paródia do cinema oriental dos anos 1960 e 70.

Os outros 30% são divididos entre a segunda vingança da Noiva e sua recuperação no hospital. A primeira parte homenageia filmes baratos americanos ou italianos, com uma luta entre a Noiva e Vernita Green que emula o melhor do cinema físico (Phil Karlson, Fernando Di Leo); e a segunda é quase totalmente Brian De Palma – split screen, câmera lenta, maneira de usar a trilha sonora (o famoso assobio da personagem de Daryl Hannah, como também a climática música que invade a trilha quando o enfermeiro estuprador vai ser abatido). Brian De Palma, por sinal, (como também Dario Argento) já é citado quando um movimento da Noiva revela a filha de Vernita Green por trás, indicando que ela havia testemunhado o assassinato de sua mãe. A sequência se completa com a Noiva indo até o carro do enfermeiro, no estacionamento, com música típica da Blaxploitation ao fundo. Tarantino completa assim o sonho da pilhagem multi-referencial que perseguiu desde Cães de Aluguel (1992), ou, se preferirmos, desde seu primeiro e inacabado filme, My Best Friend’s Birthday (1987).

Por esse motivo é que o filme dentro de sua obra com o qual Kill Bill 1 melhor dialoga é sem dúvida Pulp Fiction. Em ambos as idas e vindas no tempo funcionam como espinha dorsal de estilo e como maneira de compor a trilha sonora. Ambos usam a música da mesma maneira, sendo que Kill Bill 1, por ter uma história movida por uma única personagem ao invés do mosaico de pequenos gangsters do outro filme, consegue costurar sua trilha de maneira a fazer o álbum conceitual de que necessita para cativar o espectador (ao menos o espectador melômano). Pulp Fiction, nesse sentido, parece mais um ensaio, algo mais descompromissado.

O díptico Kill Bill, por sinal, pode se concentrar na Noiva, personagem concebida por Tarantino e Uma Thurman, mas outros dois personagens merecem uma construção especial, e maior tempo na narrativa: a vilã mestiça O-Ren Ishii, antagonista principal da Noiva durante dois terços do primeiro volume, e Bill, o antagonista principal da saga inteira. O-Ren Ishii é um papel que caiu dos céus para Lucy Liu, que a desempenha com classe e vigor. A cena da decapitação, seguida de uma ameaça dita em inglês no seio da Yakuza é primorosa, e o duelo final cresce em intensidade pela interpretação da atriz. Mas só a performance de Uma Thurman, violenta e agressiva, como também graciosa e meiga, faz par à excelente atuação de David Carradine como o vilão principal Bill. Carradine havia vivido o personagem principal de Kung Fu, série americana de sucesso nos anos 1970, que mostrava as aventuras de um lutador que perambulava pelo deserto americano – uma mistura de gêneros que cai perfeitamente no gosto de Tarantino. Como Bill, Carradine tem a interpretação de sua carreira (méritos óbvios do diretor, que sempre proporciona essa intensidade aos atores). Isto engrandece o encontro final com a Noiva, quando esta conhece sua pequena filha. Mas enquanto Kill Bill 1 é um amontoado de cenas antológicas amarradas por uma trilha conceitual perfeitamente burilada a partir de cacos de outros filmes, Kill Bill 2 é desigual, e se fortalece nos momentos em que Bill está presente.

Dentro da estrada tarantinesca, Jackie Brown representa um considerável desvio. Talvez por isso mesmo seja o mais ousado filme do diretor, mesmo vendendo-se como um produto mais próximo de palatável segundo o modelo clássico de cinema hollywoodiano. É um parêntesis necessário para uma espécie de autoanálise fílmica, processo que o liberou para o jorro referencial de Kill Bill. Essa autoanálise, em Jackie Brown, passa pela compreensão de como as referências de juventude, filmes de gangsters e blaxploitation, podem ser introduzidos por ele – e só por ele – em seus filmes e traduzidos para dentro de seu próprio mundo, com seus próprios códigos. A resposta está na tela, brilhante e insofismável. O filme serviu para mostrar, em 1997, que não adianta se apropriar da fórmula Tarantino se não se é Tarantino. Da mesma forma que Amor à Queima Roupa, Assassinos por Natureza e Um Drink no Inferno não se tornaram grandes filmes só por terem sido escritos por ele. O primeiro tem momentos interessantes (Gary Oldman como um cafetão que pensa que é negro, Dennis Hopper dizendo ao mafioso siciliano que todos os sicilianos descendem dos negros), mas sofre com a afetação e afobação do diretor Tony Scott. O segundo é sensacionalista e igualmente afetado, e pode ser considerado o pior filme dirigido por Oliver Stone, e um dos piores filmes da década de 1990. Somente o terceiro, cuja definição pode ser “Tarantino sob efeito de aditivos”, traz consigo algum talento cinematográfico para além da escrita do roteiro. Seu diretor, Robert Rodriguez, a quem Tarantino chama de irmão, tem uma boa ideia do que fazer com a câmera e com os efeitos especiais (algo que ele exploraria melhor em Sin City, outro trabalho em parceria com Tarantino). Mas é necessário o domínio do ritmo que Tarantino atingiu plenamente no primeiro Kill Bill.

Após Kill Bill 2, Tarantino perdeu boa parte de seu fôlego. Seus filmes já não revelam o domínio do ritmo ou a habitual destreza na administração das influências. Os três últimos, À Prova de Morte, Bastardos Inglórios e Django Livre sofrem de excesso de preciosismo didático, ou de exagero na mistura de gêneros, algo que acomete principalmente os dois últimos, como se Tarantino precisasse à todo custo misturar esses gêneros e estilos para ser reconhecido como autor. Os crossovers são inúmeros, e quase sempre forçados, principalmente em Django Livre. Os diálogos femininos da segunda parte de À Prova de Morte parecem feitos por alguém querendo imitar o estilo de Tarantino. Todos os rápidos flashbacks de Bastardos Inglórios atingem o patético, sobretudo aquele em que Shoshanna imagina Goebbels e sua secretária italiana (a mesma Julie Dreyfus que interpretou Sofie Fatale em Kill Bill 1) em posições nada pudicas. Os de Django Livre são menos constrangedores, mas o diretor de fotografia Robert Richardson (com quem Tarantino trabalha desde Kill Bill) tem sempre a má ideia de estourar a luz, fazendo imagens publicitárias. Richardson contaminou o filme de Tarantino com o tipo de fotografia utilizada por ele em Assassinos por Natureza (Oliver Stone, 1994). Em Bastardos Inglórios, o plano geral que mostra o saguão do cinema de Shoshanna na estreia do filme de Goebbels, com a seta indicando um personagem específico, é igualmente ridículo, e o procedimento se repete mais adiante, mostrando um figurão no camarote. Não são filmes desprezíveis, e tanto Bastardos Inglórios quanto Django Livre têm vários momentos inspirados de mise en scène. Mas já não justificam o barulho em torno do diretor. São filmes comuns, feitos por alguém que envelheceu rapidamente, chamando para si o resultado de uma recente declaração, em que não se imagina fazendo cinema depois de velho, porque “diretores não ficam melhores à medida que envelhecem”[15] (bom, ele deve ter esquecido de John Ford, Kenji Mizoguchi, Otto Preminger, Howard Hawks, Mikio Naruse, Yasujiro Ozu, Eric Rohmer, Fritz Lang, e tantos outros que brilharam até os últimos filmes, ou principalmente neles).

É possível ver o talento de Tarantino em diversas cenas de Django Livre, seu mais recente longa. As cenas com Christoph Waltz tem a atmosfera ideal, e impressionam pelo controle do tempo e do suspense. Alguns personagens secundários são extremamente fortes, com destaque para o bajulador dos senhores brancos interpretado por um envelhecido Samuel L. Jackson. E Jamie Foxx se vira como pode no papel de demolidor, o escravo que, sozinho, destrói uma Casa Grande e todos que nela habitavam. Tarantino ainda mostra seu talento cômico em diversos momentos, com destaque para aquele em  que brancos vestidos como futuros membros da Ku Klux Klan[16] discutem sobre a má qualidade de suas máscaras, algo digno de Monty Python. Mas a exemplo de À Prova de Morte e Bastardos Inglórios, o filme cai consideravelmente na segunda metade. Tarantino tem uma mania meio sádica de contornar nossas expectativas para, mais tarde, poder realizar uma virada brusca. É o que acontece perto do final, quando tudo se encaminha para uma reconciliação e um destempero bota tudo a perder. Era necessário que o grande herói negro e libertador de fato brilhasse. Contudo, a solução encontrada não encontrou na mise en scène uma resposta convincente. Tarantino recorre à câmera lenta, que ele tão bem soube usar em seus melhores filmes. Mas a cena soou falsa, os movimentos na tela ficaram incongruentes demais com o tempo real que cada um deles teria. Cenas mal dirigidas como essa aparecem nos últimos filmes. Tarantino está brincando de ser barato com altos orçamentos. Não está dando certo. Seu talento ainda segura a maior parte das cenas, e mesmo seus três últimos filmes suscitam ainda revisões interessadas, em grande parte por causa da explosão de talento que teima em acontecer. Mas já não é suficiente para deixá-lo no topo do mundo cinematográfico, como era até nove anos atrás.

Tarantino chegou em uma encruzilhada, e, tal como Django, precisa se libertar das correntes do cinema referencial e espertinho. Capacidade ele já demonstrou que tem. Seus filmes estão menos interessantes, mas ainda revemos com prazer. Resta apenas pensar mais no que filma e, principalmente, em como filma.



[1] CARROLL, Noel. The Future of Allusion: Hollywood in the Seventies (and beyond). In October, 1982. p.55.

[2] Idem. p.52.

[3] Idem. Ibiden.

[4] BORDWELL, David. The Way Hollywood Tells It: Story and Style in Modern Movies. University of California Press, 2006. p.78.

[5] DAHAN, Yannick. La Vagabonde de Tokyo. In Positif nº 514, 2003. p.27.

[6] NORRIS, Chris. “Mixed Blood”. In Film Comment, nº , 2004. p.26.

[7] Alguns exemplos de álbuns de ópera-pop/rock: Arthur or the Decline and Fall of the British Empire (The Kinks), Tommy (The Who), A Question of Balance (The Moody Blues), The Snow Goose (Camel), Joe’s Garage (Frank Zappa), The Wall (Pink Floyd), Operation Mindcrime (Queensryche).

[8] MORRIS, Wesley. Resenha sobre Kill Bill Vol.1. In WOODS, Paul A.. Quentin Tarantino. Editora Barba Negra, São Paulo, 2012. p.320. Itálicos do autor.

[9] NORRIS, Chris. Op.cit. A ideia de coletânea está presente em texto de Peter Travers (Ver WOODS. Paul A. (org). Quentin Tarantino. p.337).

[10] RZA foi também o responsável pela trilha sonora de Ghost Dog (Jim Jarmusch, 1999).

[11] O filme em que a música de Herrmann apareceu pela primeira vez não tem nada a ver com western spaghetti. Porém, era comum termos assobios nesse tipo de filme, então a associação é imediata.

[12] A tradução da fala de Hattori Hanzo é a que está no DVD brasileiro (Imagem filmes). A fala da Noiva (“domo”) não é traduzida.

[13] “Ela sabe que sua filha está viva?” (tradução do DVD).

[14] DAHAN, Yannick. Op.cit.

[15] A declaração pode ser lida aqui: http://cinema.terra.com.br/tarantino-nao-quer-envelhecer-como-cineasta-piores-filmes-sao-ultimos,de186b009aa1b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

[16] A 1ª Ku Klux Klan (KKK) só foi fundada em 1865, para impedir que os negros, não mais escravos após a Guerra Civil, pudessem exercer os seus direitos. É portanto uma organização ligada ao fim da escravidão, enquanto a história de Django Livre acontece num período anterior.

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