Ano VII

Star Wars VII

quarta-feira jan 20, 2016

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Star Wars: O Despertar Da Força (Star Wars: The Force Awakens, 2015), de J.J. Abrams

Eis que com o novo Star Wars, surge a epítome do retalho: nem remake, nem totalmente reboot, o retalho é o investimento seguro encontrado por Hollywood depois que a onda de refilmagens se mostrou uma cartada de alto risco e pouco retorno. O retalho é construído de tecidos velhos, com apelo nostálgico, que são colados por cima de um tecido supostamente novo. É a cabeça de Paul Walker em Velozes e Furiosos 7, o segmento de O Exterminador do Futuro em Terminator Genesys. O Jurassic World de Colin Trevorrow/Spielberg/ILM já anunciava que seria possível fabricar todo um mundo em retalhos nostálgicos. JJ Abrams, o vampiro de L.A, confecciona um universo. Repleto de velharias, O Despertar Da Força assume completamente a falência do novo e abraça a sucata – Rey, a protagonista deste episódio VII, trabalha coletando os destroços dos outros capítulos da série.

É evidente que atravessamos um período de crise do olhar. Que imagens estamos vendo? Que imagens estamos criando? A geração milênio é a concretização do pesadelo de qualquer investigador dos filmes de Argento, que sofreriam para desvendar os mistérios encenados pelos vilões Y: imagens repletas de camadas que, quando escavadas e descortinadas, nada revelam. Como poderiam, se nada tem a esconder? Quando lhes falta a imaginação, lhes falta também o segredo. Vivemos a época da imagem que anula a imaginação e privilegia a prestação de serviço. O termo fan service, que tem origem nos videogames, é o password para a compreensão desse sistema de recompensas que esvazia a tela, largamente utilizado em O Despertar Da Força: o fã das grandes franquias jamais será desafiado ou confrontado com ideias, pois estas raramente servem – precisam ser servidas. Assim, basta o ícone, em seu estado mais elementar, ser colado por cima da imagem, como um retalho (a Millenium Falcon, o C-3PO), é o bastante que a frase, despida de qualquer senso dramatúrgico, seja pichada por cima do ecrã (i´ve got a bad feeling about this) para que o fã tenha satisfação. O afago ao fã, e é preciso logo mais pensar sobre tal figura, suplanta qualquer outra motivação em O Despertar da Força, naquilo que marca o momento em que finalmente um blockbuster sai do armário e se assume como um produto cujo parentesco mais próximo é o videogame, e não o cinema (um jogo precisa, a todo custo, servir ao jogador e lhe proporcionar prazer; o desafio nunca pode ser intelectual; um jogo não cobra entendimento conceitual, apenas de jogabilidade).

Desavergonhadamente estruturado de acordo com Uma Nova Esperança e, tendo uma protagonista (mulher) que, fase a fase, torna-se mais poderosa e infalível (muito mais poderosa e infalível que qualquer mocinho anterior), que é acompanhada de Finn, o impotente ex-stormtrooper inofensivo negro trapalhão e Poe Dameron, o latino que representa o novo homem e que, por isso, muito provavelmente terá relações homo afetivas nos próximos filmes, além da presença do elenco principal da trilogia original, em toda sua gloriosa decrepitude física, o episódio VII cerca-se de quase tudo o que é possível para dar certo. É óbvio que não seria outra a atitude da Disney depois de investir 4 bilhões de dólares na compra da Lucasfilm. A atitude seria essa, mas o culpado pelos meios por quais são atingidos tal fim recaem em majoritariamente dois fatores: o politicamente correto e o fã.

O que é o fã? É, quase sempre, um nerd, que cultua, acima de tudo, personagens – e, não custa lembrar, o nerd ocupa, atualmente, o topo da cadeia de consumo. O fã gosta de Batman e quer a caneca do Batman, o jogo da Batman, o bonequinho do Batman, a sunga de banho do Batman. O nerd experimenta produtos culturais pelo viés da conexão psicológica ao personagem (identificação é a palavra-chave) e mergulha ferozmente na narrativa, como se essa fosse um poço de vida em que a transparência, em oposição à opacidade, se apresenta como única opção para matar a sede. Daí o intenso combate ao spoiler, a peste negra que contamina a fruição – se tudo o que importa é a história e a história é a própria vida em si, conhecer de antemão o destino de certo personagem é algo nefasto, é obra de ocultistas e bruxos, que precisam ser perseguidos e queimados. O fã é um conservador de espada na mão.  Ainda que tenha sido George Lucas o responsável indireto pela criação do nerd contemporâneo, com o estabelecimento da cultura high concept (o filme é apenas um segmento da cadeia, que incluiu a novelização, o álbum com a trilha sonora, o game etc.) e por ter vestido o fã com pantufas wookie, ao licenciar mil e produtos com a marca Star Wars, o filme de 1977 é tudo, menos veículo para personagens. Exercício conceitual de síntese mitológica e mistura criativa de diferentes imagens (a imagem como um micro-cosmo fechado em si mesmo: a imagem do western, a imagem do jidai-geki, do romance da cavalaria, do seriado dos anos 30), com objetivo bastante claro e definido: a defesa da moral do bem. Em Uma Nova Esperança, personagens fazem parte de uma engrenagem que gira para moralizar e elevar o espírito. E, mesmo que a identificação com o personagem seja peça chave do processo, é no uso da geometria, da cor, da luminância e da proporção de onde emana o bem – é a vitória do pequeno objeto cilíndrico contra o gigantesco triângulo, é a luz de dois sóis iluminando o jovem contra o sujeito coberto de negro enclausurado em corredores, salas de conferência e hangares de cruzadores imperiais, é, em suma, a supernova iluminando a escuridão do espaço com a explosão da Estrela da Morte. É daí que brota o senso de fantasia, da vontade de falar da luz mostrando a luz.

A prova maior pelo desprezo à luz e pela falta de vontade (ou necessidade) de se elevar o espírito em O Despertar Da Força é vista na quantidade de cenas situadas em sets dominantemente pretos ou em locações externas em que reina o concreto destruído e o nublado – imagem parente de produtos como Jogos Vorazes e Divergente, que se passam no futuro pós-apocalíptico da descrença, e não no passado distante da esperança. E, na mais perturbadora das evidências, na fala de Kylo Ren, o vilão, que confessa estar sentindo-se tentado pela luz. Deste vazio que resulta da falta de fantasia (não existe fantasia sem luz, portanto, não existe fantasia sem cor) materializa-se um filme que se alimenta puramente do material: as sucatas de Rey, a máscara destruída de Darth Vader, os personagens “clássicos” – Luke, Leia, Chewbacca, Han – que são corpos sem vida, McGuffins. Quem se alimenta de sucata, cultua a sucata: o filme faz de Finn, por exemplo, o representante do fã inserido na narrativa, que se deslumbra com a Millenium Falcon, que estremece ao conhecer Han Solo, e de Kylo Ren, o jovenzinho fanático por Darth Vader. O papel do ex-stormtrooper é empolgar-se com a maravilha que é a iconografia material de Star Wars; o de Ren, é lembrar o quão incrível é o maior vilão da saga.

Em Hollywood o politicamente correto é traduzido como estudo demográfico. Produto global, O Despertar Da Força exibe representantes de variadas etnias e segue a tendência maior que é a da heroína feminina juvenil e imbatível, ligeiramente masculinizada, mas ainda sim com rostinho de bebê e beleza idealizada. Tudo no episódio VII é um serviço à determinada demanda e quando algo precisa responder a tantas exigências e necessita vestir tantas máscaras para agradar, é óbvio que não sobrará tempo para se fazer perguntas e para se criar uma identidade (tudo deve, desesperadamente, responder ao mundo, eliminando qualquer possiblidade de se manter fiel ao universo diegético, pois isso poderia causar desconforto e gerar problemas de identificação no fã). As perguntas em O Despertar Da Força limitam-se aos baratos truques narrativos típicos das séries de TV, que entopem seus episódios pilotos com “segredos” cuja intenção de fisgar o espectador. Mas para o fã, sem dúvidas, é um deleite poder elucubrar sobre a paternidade de Rey.  Talvez devessem também tentar resolver outro tipo de mistério: por que O Despertar Da Força se parece com algo tão morto?

Sendo um filme sem luz, não surpreende a falta de vida e a incapacidade de JJ fazer da protagonista on demand ter algum brilho além da beleza – rainha do óbvio, Rey tem de deixar claro, a cada 20 minutos, que não precisa de ajuda e sabe se cuidar sozinha; imaginemos o quão tolo seria se Bond ficasse dizendo “eu sou bem mulherengo” 4 ou 5 vezes durante um filme. Ter vida não significa ser escravo de personagem, e sim lhe dar algo que injete força à mise-en-scène: um olhar, um gesto, uma entonação vacilante. Em suma, não é plausível cobrar vida de um produto tão desinteressado na morte: o impacto nulo gerado pela explosão de cinco planetas é o sintoma de um longa-metragem que embora se movimente, encontra-se em avançado estado de putrefação.

Wellington Sari 

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