Ano VII

Os 8 Odiados

quarta-feira jan 20, 2016

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Os Oito Odiados (The Hateful Eight, 2015), de Quentin Tarantino

Serpenteando-se em si mesmo, como a própria figura do 8, que percorre idas e vindas para voltar ao mesmo lugar, o mais recente longa de Tarantino não é cinema do passado ou do futuro, mas de um eterno e maçante presente. Embora reclame a tradição, QT, em Os Oito Odiados, desconhece a linha reta, passa ao largo do trilho de trem, ignora o horizonte fordiano; De No Tempo das Diligências, só fica o não-essencial e o mito é substituído pela mentira. Quando os fatos se tornam ficção, publique-se a falsa carta de Lincoln (e guarde-a junto ao coração, posteriormente). Nenhuma mitologia é construída olhando-se para o próprio rabo; é na beira da estrada, montado em um cavalo, sacolejando no trem ou com as mãos ao volante que se rascunha o desenho de um país, que se escreve as lendas.

Que cinema é o 8 de Tarantino? É o 70 mm do blá blá blá, é a cabecinha torta de lado de Michael Madsen, na busca doentia pela afirmação da identidade, que passa por cima de tudo o que não é o eu. Passa por cima da ideia de História, nação e cinema.

Cinema, como artesanato, não é necessariamente um problema para QT. É evidente que o diretor tem domínio do espaço, que consegue, com muita eficiência, guardar e exibir por meio da decupagem, ao mesmo tempo em que demonstra exímia capacidade em revelar e revelar no próprio plano, usando o split diopter. No entanto, que verdades são, de fato, mostradas na imagem? Quando os fatos se tornam ficção, publique-se o truque? A encenação de Tarantino acaba por desvendar mais as próprias secreções – daí que os personagens jorrem vômito depois de tomarem veneno – do que o sangue que semeou a terra. E não se pode imaginar que o objetivo inicial tenha sido outro, que não o da História: todo western é a inscrição de alguma coisa sobre a terra; seja a inscrição em ferro (o trilho de trem) ou em traços à maneira dos ourives (John Wayne) e o cineasta, ao filmar a terra, está registrando os desenhos formados pelas letras da História. O comentário de Tarantino sobre a violência da América não passa pela inscrição de uma ideia ou uma imagem que deixem entrever um mundo, que se organizem de forma a fixar-se definitivamente na tela. Isso se dá pela falta de abertura ao universo extra-tarantinesco, na apropriação de outras obras que não se mostra diferente do vômito ou do sêmen, outra secreção que aparece em Os Oito Odiados (de maneira sugerida, no caso da última). Expelir, ao invés de gerar.

Nada se parece mais com a tela de cinema do que a terra em um faroeste, mesmo quando a neve ocasionalmente a cubra. Só que a neve de Tarantino nunca derrete, é um lençol branco com dois furos representando olhos – a fantasia é o desejo de querer ser. Quando o banho de sangue proposto por QT será, realmente, purificador, e não apenas a 8º homenagem a De Palma? Pois, embora implausível limitá-lo à categoria de imitador, é muito possível que ao fim da jornada Tarantino tenha construído um mundo do tamaninho do galpão em Cães de Aluguel. O autoproclamado passeio pela cinefilia, a viagem através da História, terá sido um longo delírio, um esperto flashback alocado no meio de uma narrativa retroalimentada, contado em primeira pessoa pelo narrador inebriado em ouvir o som das próprias palavras. Tarantino já não parece mais capaz de andar em linha reta, como se vê nos seus dois últimos filmes, e só a linha reta é que faz vislumbrar o horizonte. Não é por acaso que a diligência que escreve na terra do Monument Valley o faz pela estrada direta, que culmina lá longe, fora do alcance dos olhos. O foco está no infinito e para além do que é visível existe todo um mundo de segredos e promessas. O futuro de Dallas e Ringo tem as mil e uma possibilidades da certeza.

Toda a série de truques extra-fílmicos, que antes soavam lúdicos, mostram-se vulgares, por estarem gradativamente tomando o primeiro plano – e assim o fazem por conta das próprias obras, que se apequenam em um infinito “autoprofágico”. Pouco importa se Os Oito Odiados foi filmado em gloriosos 70 mm, se o cineasta não está interessado em captar o mundo em toda sua glória e, sim, glorificar o próprio mundo – dominada pela serpente de mil bocas a reproduzir a mesma voz.  A contagem regressiva está perto do dez, do derradeiro atestado sobre… sobre o quê? Pouquíssimos artistas permaneceram na História fazendo atestados sobre si mesmos. Existe a chance de a filmografia de QT esfumaçar-se pelo tempo e dela restar apenas uma bituca de Red Apple. A demonstração por um gosto de cinema e por um prazer em filmar é sempre louvável, mas quando desprovida de compreensão – traduzida em moral -  da real natureza daquele universo de que se está adentrando – o western, claro – sobra, ao fim das contas, o acessório e a publicidade.

Wellington Sari 

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