Ano VII

Mia Madre

quarta-feira jan 20, 2016

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Mia Madre (2015), de Nanni Moretti

É uma grande ironia que o desejo mais manifesto dos personagens de Nanni Moretti seja a fuga. Normalmente à beira de um colapso, em comum a eles há uma vontade escapista que torna tudo e todos (uma piscina, um colégio, uma igreja, um consultório) em prisão, em estorvo. Fato irônico, pois é difícil pensar em outro cineasta contemporâneo que tão bem conseguiu registrar as mudanças de seu próprio país ao longo de sua (curta, no caso) filmografia.

Mia Madre revela a subjetividade de Margherita (Margherita Buy), uma cineasta sob as mais variadas pressões. Às voltas com uma conturbada produção de um longa-metragem de viés político/realista e tendo de lidar com o final de um relacionamento amoroso com um de seus atores, ela encontra-se suspensa, incapaz de liderar sua equipe (coisa possivelmente inédita) e de dar a atenção merecida tanto a sua agonizante mãe (Giulia Lazzarini) quanto à filha adolescente (coisa possivelmente característica). A isso, soma-se a chegada de Barry (John Torturro), um ator americano também em impasse com sua profissão: inseguro e arrogante, recusa os serviços de seu intérprete, apesar de conhecer tanto o idioma italiano quanto a média dos garçons nas cantinas do Bexiga. Sua presença faz da rotina de Margherita algo ainda mais enervante – e, do filme, algo às vezes absurdamente engraçado. O ponto de equilíbrio parece ser o personagem interpretado pelo próprio Moretti, Giovanni, irmão de Margherita e aquele que irá se dedicar aos cuidados da mãe. Logo em sua primeira cena, os três estão reunidos no quarto do hospital. Ele leva à mãe uma massa, lembrando que na vez anterior, por ser longa, ela grudou; agora, lhe trouxe uma curta, além de um peixe já sem os espinhos. Margherita, que, às pressas, no caminho, havia comprado qualquer coisa, discretamente devolve a marmita à mochila.

Diferentemente de alguns outros filmes de Moretti, Mia Madre não é episódico. Ainda assim, é um filme cuja montagem é precisa e inflexível, as cenas funcionando como blocos. Tal fragmentação narrativa faz com que personagens e situações se acumulem e impregnem, misturando os sonhos, a rotina e as lembranças da protagonista. O resultado é a incerteza sobre a veracidade daquilo que está sendo mostrado: Teria a idosa saído do hospital e, ainda com o avental, como Michel Piccoli em Habemus Papam, ido caminhar a esmo pelas ruas de Roma? E o que falar sobre o enorme vazamento de água, capaz de submergir o piso de todo um apartamento? Pois se Palombella Rossa podia ser visto como um longo pesadelo (surreal, digressivo, onírico, onde o jogador de polo aquático – perturbado por lembranças e traumas – não conseguia desempenhar o seu papel e, tampouco, abandonar aquele clube), à consciência perturbada de Margherita resta ainda menos tranquilidade, tornando crescente um certo torpor.

Não à toa, o movimento de câmera mais recorrente é uma gradativa aproximação do rosto de Margherita, como se este sutil reenquadramento do plano a alienasse ainda mais dos outros ao seu redor. Sua angústia é mais do que a incapacidade de retratar a realidade: é, enfim, não vivê-la. Ou, como clama Barry, à certa altura , naquela que talvez seja a frase-síntese do filme: sua ânsia é por uma volta à realidade. Daí alguns tormentos de ordem bastante prática, como em um instante de súbita cumplicidade com Barry, diante de toda a equipe, quando questiona o que fazer com os tantos livros que sua mãe deixará. Momentos antes, ao descobrir a gravidade da doença de sua mãe, é seu irmão que tem de enfatizar: “Mamãe está morrendo!”. Quanto mais a vida lhe encaminha a isso, menos sentido parece ter a produção de seu longa-metragem, cheio de verdades, cheio de posicionamentos. E se a mais íntima das buscas de Margherita (por entre este desenrolar de situações-limite, fantasias e subterfúgios) é conseguir responder objetivamente à realidade tal qual, pode-se aproximar sua angústia àquela de um outro personagem de Moretti, o padre de A Missa Acabou, alguém aparentemente antagônico a ela. Em uma conversa daquele jovem sacerdote, ele afirma não conseguir mais prestar atenção às queixas daqueles que o procuram, pois só consegue, desde que retornou à cidade – aos familiares e amigos, portanto – pensar em si mesmo, em seus próprios problemas. No mesmo diálogo, revela o desejo de voltar à ilha onde estava, mas, se o fizesse, como ele mesmo diz, seria uma fuga.

Em Mia Madre, no entanto, não existe espaço para alternativa, ao menos no que se refere à imposição dos fatos, à aceitação do falecimento da mãe. E este dado irrefutável, essa antecipação tão concreta pode, contra as evidências, fazer com que Margherita finalmente encontre solo fixo para pisar.

Se antes na filmografia de Moretti – coerente como poucas -, ouviu-se gritos de “minha mãe, minha mãe não retornará” e, por fim, antecipando uma desastrada tentativa de suicídio, “mamãe, mamãe venha me pegar”, agora, nesta obra-epítome de sua carreira, o diretor parece ter encontrado, de início, a garantia da limitação de seu fazer artístico diante das questões mais básicas. Depois, encontrou nas perdas de suas certezas e forças combativas, a constatação de que só se pode seguir. E fez, disto, sua maior ironia: algo de uma vitalidade extraordinária.

Bruno Cursini

 

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