Ano VII

Latinos

quarta-feira dez 16, 2015

A enxurrada latina

Por Gilberto Silva Jr.

Não aconteceu de uma hora para outra. A cena vinha se descortinando há alguns anos. Talvez desde 2008 e 2009, em Berlim, quando o brasileiro Tropa de Elite e o peruano A Teta Assustada venceram, respectivamente, os prêmios principais do festival alemão. Desde então, um prêmio menor aqui, outro ali. O fato é que 2015 marcou uma forte concentração de prêmios de festivais internacionais para filmes produzidos por diversos países latino-americanos.

É certo que o mercado internacional de cinema, mais especificamente o de festivais, vive de ciclos nos quais cinematografias de diversas origens entrariam e sairiam de “moda”, por assim dizer. Foi assim com o cinema oriental, hoje injustamente nem tanto em alta, na virada dos séculos XX e XXI. Em meados da década passada vimos a ascensão do cinema romeno. Agora, como já dissemos, 2015 viu as lentes, a atenção de certa parcela da imprensa e os prêmios de festivais se dirigirem aos filmes vindos da América Latina.

O Brasil teve sua cota de reconhecimento, com a boa repercussão de Anna Muylaert e seu Que Horas Ela Volta em Sundance e Berlim. Boi Neon e Mate-me, Por Favor causaram boa impressão em mostras paralelas em Veneza. Só que, em se tratando de prêmios principais, estes acabaram indo para diversos países da América Hispânica. Chile, Colômbia, México, Venezuela, Argentina.

Quais as seriam razões para tal? Vale destacar, antes da resposta, que o já referido mercado internacional costuma rotular, independente da nacionalidade, o tal cinema latino dentro de um mesmo saco. Surge, em conjunto, uma outra questão: o que se espera – ao menos sob o ponto de vista de jurados e jornalistas que acompanham os festivais – daquilo que sai desse saco? Certamente, tendo em vista os títulos premiados, um cinema impregnado de denuncias ou retratos de mazelas sociais. Filmes de suposta “relevância”, cuja avaliação de seus pretensos méritos, ao menos para aqueles que os julgam e avaliam, estaria centrada muito mais em seu conteúdo que na construção cinematográfica em si. Espera-se, portanto, que tais filmes gerem algum tipo de impacto imediato.

O Clube, de Pablo Larraín

O Clube, de Pablo Larraín

O vencedor do Grande Prêmio do Júri em Berlim-2015, O Clube, do chileno Pablo Larraín, preenche exatamente os requisitos expostos acima. Denúncia de uma série de abusos perpetrados pela igreja católica em uma abordagem sensacionalista. Sensacionalismo, esse, coerente com tudo aquilo que o diretor vem visando em sua carreira, ao menos desde Tony Manero (2008), com discreta exceção para No (2012). O outro chileno premiado em Berlim foi O Botão de Pérola, de Patricio Guzmán. Mesmo trabalhando, por vezes, no mesmo universo explorado por seu compatriota, no qual a herança do golpe que derrubou o governo Allende e a ditadura militar surgem com temas inesgotáveis, o cinema de Guzmán não podia ser mais diverso. Enquanto Larraín, em seu cinema ficcional, privilegia o maniqueísmo e a falta de sutileza, os documentários de Guzmán unem a denúncia à poesia e à delicadeza dos sentimentos, como havia demonstrado anteriormente com o belo Nostalgia da Luz (2010).

Mesmo sem ter recebido prêmios importantes, o guatemalteco Ixcanul, de Jayro Bustamante, é outro filme que tem recebido bastante atenção no mercado internacional. Em meio ao conjunto dos latino-americanos, Ixcanul é talvez aquele que melhor encarne os clichês de um cinema “terceiro-mundista”: exploração previsível das questões sociais – pobreza, exploração, intolerância, submissão feminina, falta de acesso à saúde e até roubo de bebês. O fato é que Bustamente calca o filme de tal forma em suas denúncias que se esquece (ou não demonstra talento) para desenvolver uma mise-em-scène que crie alguma coisa além de uma quase pornográfica exploitation das monstruosidades da pobreza.

Partimos de Berlim para Cannes, lembrando que o festival francês já vem há alguns anos sedimentando um namoro sério com o cinema mexicano. Desde 2010, quando Ano Bissexto, de Michael Rowe, levou a Camera D’Or, é muito difícil os mexicanos saírem com mãos vazias da Croisette. Desde então tivemos Palma de melhor direção para Carlos Reygadas (Post Tenebras Lux) em 2012 e Amat Escalante (Heli) em 2013, além do prêmio da mostra Un Certain Regard para Depois de Lucía, de Michel Franco em 2012. Todos, sem exceção, filmes de impacto gratuito e temas polêmicos, que infelizmente se enquadram entre o que de pior o cinema pode produzir, caracterizando o atual momento do cinema mexicano como uma escola da exploração abjeta de diversas facetas dos sempre chamativos tópicos que envolvem sexualidade e violência. Mesmo Reygadas, cineasta com bons filmes no currículo, escorrega para seu trabalho mais passível de contestação. Em 2015 é novamente Franco o premiado da vez, com sua primeira produção internacional falada em inglês, Chronic, recebendo um indefensável prêmio de melhor roteiro para um filme redundante, centrado numa abordagem voyeurística de pacientes terminais que tangencia o abusivo e com um final inexplicavelmente gratuito.

Sem muita tradição em festivais, a Colômbia chamou atenção em Cannes-2015 com dois títulos. Mesmo sem prêmios importantes, O Abraço da Serpente, de Ciro Guerra, teve boa receptividade em sua participação na Quinzena dos Realizadores. Preocupante, em especial para quem assistiu a seu longa de estreia, A Sombra do Andarilho (2004), um drama com contornos de denúncia política com uma premissa absurda unida a uma abordagem exagerada que beirava o risível. Com O Abraço da Serpente, Guerra certamente demonstra um amadurecimento e um crescimento no domínio da construção artesanal, em um filme visualmente chamativo. Entretanto, o entusiasmo inicial causado por seu exuberante retrato do universo amazônico, vai se dissipando durante as 2 horas de projeção, à medida que o filme gradativamente sucumbe às suas próprias pretensões, indeciso entre optar por uma abordagem realista do recorrente tema da exploração (política, econômica, religiosa) e um tratamento surreal determinado por uma lógica xamanista.

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A Terra e a Sombra, estreia do colombiano César Augusto Acevedo

Bem mais equilibrado e certamente o melhor entre os latino-americanos laureados este ano é o também colombiano A Terra e a Sombra, que deu a César Augusto Acevedo a Câmera D’Or de 2015. O que a princípio poderia ser, assim como Ixcanul, mais um burocrático retrato de uma família miseravelmente explorada, se destaca pela competência de Acevedo em criar, com sua mise-em-scène econômica e direta, um universo consistente para um núcleo familiar frente a um processo de rupturas. O diretor-roteirista privilegia a abordagem das relações pessoais e afetivas entre seus componentes, o que situa A Terra e a Sombra um patamar acima dos lugares-comuns que costumam mostrar os mais diversos grupos de latino-americanos empobrecidos como um eterno bando de “coitadinhos”.

Já ocupando há tempos uma posição mais destacada no mercado cinematográfico internacional, a Argentina não foi esquecida nas premiações dos grandes festivais. Paulina, de Santiago Mitre, foi reconhecido na Semana da Crítica, certamente por sua abordagem politicamente correta de uma personagem feminina que defende de modo inabalável suas escolhas pessoais, mesmo indo de encontro a todos que a cercam e subestimando as possíveis consequências de seus atos. Assim como no anterior O Estudante (2011), Mitre peca por um tratamento claudicante e indeciso, partindo do fato que seu filme “cola” em uma protagonista de temperamento e atitudes contestáveis, sem colocá-las em questão a maior parte do tempo. A láurea mais importante para os argentinos, por sua vez, foi o Leão de Prata de melhor direção em Veneza para O Clã de Pablo Trapero, cineasta que foi perdendo gradativamente o frescor de seus primeiro filme em favor de trabalhos visando uma melhor aceitação de mercado. Não à toa, O Clã, ao qual ainda não assistimos, foi a melhor bilheteria doméstica de 2015 em seu país de origem.

Veneza trouxe também a coroação máxima para esse suposto “ano latino-americano” concedendo seu prêmio principal, o Leão de Ouro, para o venezuelano Desde Allá, curiosamente aquele que considero o pior dentre os integrantes do “pacote”. Dirigido por um estreante em longas-metragens, Lorenzo Vigas, trata-se de uma co-produção com o México, estampada com a grife do nefasto Michel Franco e sua produtora Lucia Films. Mexicano também é o argumentista Guillermo Arriaga, escritor cuja contribuição à dramaturgia cinematográfica extrapola as barreiras do nocivo. Tendo em vista estes dois nomes, podemos prever um filme de estofo oportunista, fatalista e miserabilista, forrado por uma capa de suposta relevância social e humanismo de almanaque. Desde Allá cumpre essa promessa sem preocupar-se em frustrá-la momento algum. Um filme não menos que lamentável.

Sendo assim, voltemos a pensar razões que justifiquem a onda de premiações para além das coincidências. A questão do bairrismo foi fortemente levantada em Veneza, com um suposto favorecimento dos “hermanitos” pelo presidente do júri, o diretor Alfonso Cuarón. Mas tal fato não se aplicaria ao conjunto global. Difícil determinar muitas justificativas para além de um contexto favorável em um momento universal que privilegiaria a correção política, a aceitação das diferenças e a eterna reflexão sobre a exploração dos menos favorecidos, tão cara às cinematografias de nacionalidades emergentes. Não há como deixar de pensar que avaliadores e jurados oriundos de países com situações econômica supostamente mais pesada veriam no fato de premiar filmes com as temáticas descritas como forma de aplacar algum tipo de peso na consciência. Pode ser uma visão coerente, porém igualmente contestável. Especialmente perante o fato que a simples relevância do tema por si só não traria méritos a um filme, fato com frequência ignorado por críticos, espectadores e jurados, que muitas vezes acabam privilegiando uma visão superficial e, sob nosso ponto de vista, equivocada, subestimando todo o trabalho da construção cinematográfica que traria uma individualidade a cada filme em si.

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