Ano VII

O Garoto

quarta-feira dez 16, 2015

garoto2

Garoto (2015), de Julio Bressane

Algumas breves e introdutórias notas sobre Garoto (2015), último filme de Julio Bressane, visto em outubro passado, durante a 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo:

- Em 1977, Bressane realiza o “último filme Belair”, no caso, o curta-metragem Viola Chinesa. O filme é basicamente um ensaio, um comentário, acerca do cinema experimental brasileiro como um todo e, mais especificamente, sobre a trajetória pessoal do próprio diretor nesse terreno. Numa série de planos relativamente longos, em pleno mirante do Leblon, ao lado de Grande Otelo, Bressane dispara uma série de aforismos e considerações acerca do cinema experimental brasileiro e o “terremoto clandestino” que foi a Belair. Apesar da estrutura remeter a um balanço histórico seguido de um manifesto curto e potente – quase um manisfeto punk em meio aos áridos anos 1980 que estavam por vir – as considerações de Bressane parecem se acentuar e refletir muito mais especificamente sobre sua fita mais recente, no caso o longa-metragem Agonia, estrelado por Joel Barcellos e Maria Gladys. Dentre seus aforismos, o que talvez melhor descreva o que é o filme Agonia seja aquele no qual afirma que grande parte de sua carreira, até então, consistiu em uma poda drástica. Agonia é isso: filme limite dentro da carreira do diretor, procura condensar e desarticular quase toda a estrutura – já quase minimalista – sob a qual vinha trabalhando, pelo menos desde que voltou do exílio e realizou, dentre outros, O Gigante da América e O Rei do Baralho. Trata-se de levar as coisas ao limite, reduzir o filme a um homem e uma mulher que se conhecem, transitam pelas estradas em montanhas em um carro, esgarçar o tempo, estabelecer e medir as distâncias do gesto estabelecido com o paideuma experimental, em especial Limite; verificar o que permanece, o que difere e quais as distâncias do que difere em relação ao original. Um experimental num sentido quase científico.

- Garoto parece estar para os filmes recentes de Bressane – pelo menos para a parte de sua filmografia que vai de Filme de Amor (2003) até Educação Sentimental (2013) – assim como Agonia esteve para os filmes que realizou após o retorno do exílio (mais especificamente os já mencionados acima). Trata-se de uma inflexão e reordenamento de motivos, de retrabalhar a matéria com a qual se estava lidando até então, mas no sentido de leva-la até um limite, provar e verificar as suas fronteiras. Em Agonia era, principalmente, o esgarçamento do ato de se colocar em relação com uma história das formas e das imagens cinematográficas, reinserindo personas e personagens em situações arquetípicas do imaginário. Em Garoto, Bressane tenta reduzir ao essencial, ao mínimo esquelético, a relação entre erotismo e morte, pólos constantes em seus filmes ficcionais do período mencionado.

- O filme divide-se em duas partes. Na primeira, acompanhamos uma garota e um garoto que se encontram em um bosque, nas imediações da cidade (primeira vez que a banda sonora destoa do universo diegético). A garota seduz o garoto. Ela fala muito, tece considerações a respeito da vida – “o mistério do amor é ainda maior que o mistério da morte”) e lhe conta histórias – como a de Billy The Kid, adaptada de um conto de Jorge Luís Borges, a primeira vez que a violência brutal, dessa vez coadunada à ideia de coragem, rasga a trama. Ele fala muito pouco (o inverso de Áureo em Educação Sentimental, que na relação com a professora/amante sempre a interpelava). O ato de sedução empreendido por ela é truncado: estamos muito distante da sensualidade tão marcante em Filme de Amor e Educação Sentimental. Tal truncamento, contudo, não tem ligação com a obsessão compulsiva de alguém por outrem (ou sua imagem), como em A Erva do Rato. Em Garoto é como se a sedução e o erótico estivessem, desde o princípio, ligados à um destino trágico. A rigidez dos corpos e mesmo os momentos em que se entrelaçam – quase sempre sob uma luz baixa ou no fora de campo – marcam fortemente essa percepção truncada. O assassinato da mulher – que era boa e dava dinheiro à garota – durante o ato sexual entre o garoto e a garota sela definitivamente o destino trágico anunciado.

- Nesse momento temos a passagem para o segundo momento do filme: a fuga do garoto para o sertão (afinal, tal como anunciado pela garota, ele está perdido, foi ele quem morreu) e a busca da garota por ele. Atentemos, porém, que o assassinato também marca, além dessa passagem, uma certa disjunção entre a banda sonora e a imagética (enquanto ouvimos o assassinato ocorrer, nos é dada apenas a imagem da estátua, a arma do crime, provavelmente). Se na primeira parte isso já se insinuava (primeiro sutilmente, como na insinuação da incrustação do bosque em um ambiente citadino; depois na forma de um jogo cênico que se estabelece com o percussionista que entra e sai de quadro), na segunda metade do filme isso será um dado material importantíssimo. Não resta quase mais nada ao filme (assim como, a partir de certo momento, não restava mais nada para Gladys e Barcellos em Agonia): observamos ele vagando pelas paisagens áridas, ela vai a seu encontro. Bressane compõe essa segunda metade basicamente com as variações de intensidade e ruídos na banda sonora (o vento parece querer a tudo devorar  em certos momentos) e sua relação com as tentativas de aproximações e reconciliação – não entre um casal, mas sim com um estado de espírito (talvez aquele em que o erotismo e a morte eram pólos que não se anulavam, mas sim se retroalimentavam) – empreendidas ali. É como se ocorresse uma dinamização entre som e imagem, na qual esse embate fosse uma espécie de metonímia do embate que tanto interessa ao experimento em questão, ou seja, aquele entre erotismo e morte. Não que um (som ou imagem) represente metaforicamente um dos elementos em questão, o que importa é a figuração concreta do choque entre eles.

- Golpe de mestre de Bressane no final de Agonia: o filme não tem fim, ele é simplesmente interrompido, o fim é o meio. A natureza histórica e metafísica das imagens nele retrabalhadas podem, enfim, (re)existir, vir à luz novamente (não é possível existir um fim ali para elas) somente graças ao experimento ao qual foram submetidas. Bressane está livre para ampliar seu escopo tanto em seu alcance histórico (Cinema Inocente) quanto na gama de assuntos trabalhados imageticamente (Tabu). No final da segunda parte de Garoto vemos uma imagem bem escura da copa das árvores sendo balançadas pelo vento. A imagem é nitidamente acelerada, fugidia, tem pressa de se mostrar. O barulho do vento parece finalmente cumprir seu desejo e devora a imagem nos deixando com uma tela preta. Aqui há um fim, e tal como a vela presente no mini-prólogo do filme, firma-se uma ideia de duas coisas que se consomem até o fim, que se esgotam, como combustível e comburente num experimento.

Guilherme Savioli

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br