Ano VII

Montanha

domingo out 25, 2015

montanhasalavizaveneza_01

Montanha (2015), de João Salaviza

Sempre há um misto de entusiasmo e desconfiança quando um cineasta cujos curtas-metragens foram premiados consegue, enfim, produzir o seu primeiro longa. No caso de João Salaviza, tal expectativa era particularmente acentuada, uma vez que Arena (2009) e Rafa (2011) venceram, respectivamente, a Palma de Ouro em Cannes e o Urso de Ouro em Berlim. Passados apenas alguns minutos de Montanha, no entanto, fica-se evidente que o talento do jovem realizador português prescinde, e muito, da chancela de qualquer grande festival. E, desde estes instantes inicias, acompanhamos David (David Mourato), um garoto de “quase quinze anos”, como ele dirá mais adiante. De imediato, a penumbra de um pequeno apartamento e os enquadramentos rígidos pelos quais o menino será paulatinamente apresentado chamam atenção. E aqui se faz necessário ressaltar o óbvio: a fotografia de Vasco Viana (também responsável pelos curtas mencionados) é belíssima.

O enredo (se é que assim podemos chamar este que é, antes, um retrato tão específico sobre determinada vida em um determinado período) dá conta de alguns poucos e cruciais dias no cotidiano deste jovem: o relacionamento com o melhor amigo, Rafael (Rodrigo Perdigão), a tensão sexual de ambos com uma vizinha do mesmo prédio,  Paulinha (Cheyenne Domingues) e, sobretudo, a visita de sua mãe, vinda de Londres com a sua meia-irmã, para visitar o pai, agonizando por uma doença até então escamoteada.

Talvez por ter no avô sua única estabilidade, David acompanha a mãe ao hospital, mas é incapaz de assumir o fato, entrando no quarto para ver aquele por quem era cuidado. Em cada uma destas idas, sua angustia reprimida é de uma dor imensa. Ao ficar a esmo, esperando nos corredores também escuros da clínica, é como se sua vida estivesse suspensa e essa sensação, de contínua interrupção, permeará todo o filme.

Estes acúmulos de temores e excitações ocorrem sob um caloroso verão, numa Lisboa que parece igualmente inebriada, em um hiato: em uma cena exemplar, os dois amigos conversam, olhando um clube de piscinas que, certamente, um dia foram suntuosas. Hoje, um lento movimento panorâmico da câmera é suficiente para revelar suas ruínas. A mesma dinâmica é repetida na ocasião do primeiro beijo de David e Paulinha, mas aqui a câmera vai ainda mais longe, girando 360º. Mais do que mero capricho estético (e lembrando um cineasta dado a eles, Carlos Reygadas, particularmente uma cena correspondente em Batalha no Céu), a encenação de Salaviza é, não há dúvida, milimetricamente ensaiada. Ainda assim, é capaz de surpreender, emergindo espontânea: é tangível o constrangimento de ambos ao se encontrarem a sós no quarto, a garota descendo ligeiramente a saia quando o rapaz está para se deitar na cama. Os olhos dela estão fixos, voltados aos papeis em suas mãos; estes, claramente nada dizem que lhe interessa.

Não obstante isso, em meio ao aborrecimento destes dias e noites indiscerníveis, cada nova cena traz consigo algo de inesperado. Em uma delas (fica a sensação que poderíamos escolher aleatoriamente), David é surpreendido pela presença do pai de sua meia-irmã, interpretado por Carloto Cotta, ator de Arena, além de Tabu e de As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes (este também exibido nesta Mostra). Se por um lado o garoto sabe que não deveria ter nele alguém para se espelhar, a ação que decorre parece lhe deixar claro que será difícil evitar tornar-se um adulto muito diferente daquele que, possivelmente, já trouxe grande decepção a sua família. E em momentos como este, David vacila entre a infância e a maturidade e assim vai até as últimas cenas, quando pega uma bituca e, como uma criança o faria, mais brinca com ela e com o fósforo do que, de fato, a fuma. Este é, na realidade, o instante derradeiro antes de acontecer aquilo que já há muito estava anunciado. E se digo “já há muito” é porque estes pouquíssimos dias já nos parecem uma eternidade e agora não se pode mais recusar fato algum: o garoto, que conhecemos pelas costas, deitado na penumbra, está desperto às primeiras luzes do sol. Sentado. Lúcido. Vigilante.

Bruno Cursini

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br