Ano VII

Nils Malmros

segunda-feira out 19, 2015
Tristeza e Alegria, exibido recentemente em SP

Tristeza e Alegria, exibido recentemente em SP

Apresentando o cinema de Nils Malmros 

Por Sérgio Alpendre

Tristeza e Alegria estreou no Brasil com atraso de dois anos, em circuito comercial limitado e passou quase despercebido pelo cinéfilo brasileiro (claro, filme que não é populista tende a passar despercebido mesmo num cenário desesperador como o nosso). É, porém, um filme incomum de um dos diretores mais interessantes a ter surgido na Escandinávia desde os anos 1970: Nils Malmros. A estreia desse filme foi a oportunidade para rever alguns de seus filmes e conhecer os que faltavam, todos disponíveis a um clique, e ausentes do catálogo das distribuidoras de dvd brasileiras.

Escrevo sobre o diretor para que alguém procure conhecer melhor seu trabalho. Talvez este texto seja um incentivo para isso. Uma obra relativamente pequena pode ser estudada na íntegra, em ordem cronológica. Para facilitar alguma futura pesquisa, optei pelos títulos ingleses dos filmes, mais conhecidos, a não ser nos casos em que exista um título em português.

Entre os diretores dinamarqueses que despontaram nos anos 1980, o mais experiente é Gabriel Axel (A Festa de Babette, 1987), que começou ainda na década de 1950; o acadêmico, Bille August (Pelle, O Conquistador, 1987), e o polemista é Lars Von Trier (O Elemento do Crime, de 1984, longa muito superior às bobagens que cometeu recentemente). O melhor desses diretores, contudo, é mesmo Nils Malmros, que permanece desconhecido fora da Dinamarca, e até onde sei nunca tinha sido exibido comercialmente no Brasil, fora de festivais. Toda sua carreira é digna de apreciação, mas sua grande fase aconteceu justamente nos anos 1980, quando realizou três filmes inesquecíveis: A Árvore do Conhecimento (1981), Beauty and the Beast (1983) e Arhus by Night (1989). O primeiro e o segundo voltam em Tristeza e Alegria, como os filmes que o diretor Johannes está fazendo quando se envolve e se casa com Signe. Numa festa de adolescentes, um deles, superativo, joga palitinhos salgados nos casais que dançam. Essa imagem, baseada em uma semelhante de A Árvore do Conhecimento, favorece algumas comparações com o estilo de Truffaut, e essa familiaridade será comumente invocada por aqueles que falam da obra de Malmros, principalmente as iniciais. A Bela e a Fera trata da relação conflituosa entre pai e filha, e não demonstra a carga incestuosa que Malmros sugere a partir da retomada, em Tristeza e Alegria, do mesmo tema no filme dentro do filme. O terceiro fala do ofício de diretor na pequena cidade de Arhus, fora do centro do cinema dinamarquês que obviamente é Copenhagen.

Os dois primeiros longas do cineasta – Lars Ole 5C (1973) e Boys (1977) – e o média para a TV – Pal Christmas (1978) – exploravam a infância e a adolescência com simplicidade e precisão, evitando dramatizações e condescendências nesse difícil processo de crescimento (uma interessante comparação pode se dar com os mais convencionais, apesar de belos, trabalhos de Bille August sobre a passagem para a adolescência em Zappa, de 1983, e Twist and Shout, de 1984). Cada um desses três primeiros filmes de Malmros traz cenas memoráveis das relações entre os personagens, e terminam de maneira ao mesmo tempo singela e surpreendente, num cruzamento de delicadeza com melancolia, que é sempre tentadora a ideia de começar a rever tudo desde o começo para acompanhar novamente, sob a luz de seus belos finais prosaicos, a progressão episódica da vida desses pequenos. São filmes muito parecidos, que de alguma forma se completam. Os pequenos eventos vão se encaixando e quando menos esperamos temos diante de nossos olhos obras singulares sobre o amadurecimento.

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A Árvore do Conhecimento (1981)

Tudo isso atinge um nível muito elevado com A Árvore do Conhecimento, que claramente tem ligação com os antecessores. Nele, uma garota, Elin, é cobiçada por todos os garotos da sala, mas de repente, sem saber o motivo, torna-se indesejada, solitária, passa a não ser mais convidada para festas. Nem os que a desprezam conseguem precisar o porquê. Apenas o espectador, que observa o comportamento de sua então melhor amiga, Anne-Mette, sabe o ciúme que ela sente da popularidade de Elin, e entende que sua inteligente maquinação (resultado de seu inegável carisma para a aglutinação) conseguiu anular o carisma da amiga, como uma vampira que suga a energia vital da outra. Claramente isso não é julgado por Malmros, pois é apresentado como parte do se tornar adolescente, da busca por aceitação e da competitividade inerente à sociedade. É da vida, e Malmros não amacia em nada para Elin. Esses filmes são todos autobiográficos. Um dos garotos é sempre o próprio diretor, ou os garotos compõem juntos os traços de sua personalidade, segundo sua percepção. Nesse caso, é Nils Ole, que se apaixona por uma garota que só quer saber de farrear e de flertar com outros garotos, e que inicialmente o engana, parecendo igualmente apaixonada por ele, para depois partir seu coração sem remorso. A insistência dele é típica dessa pré-adolescência confusa e dolorida pela qual todos nós passamos. Nesse processo de filmar crianças, pré-adolescentes e adolescentes de fato, Malmros vê seus atores envelhecendo. Em dois anos, entre A Árvore do Conhecimento e Beauty and the Beast, Line Arlien-Soborg (aliás, Mette, protagonista do segundo e Anne-Mette, uma das amigas de Elin, no primeiro) e Eva Gram Schjoldager (que no segundo vive Drude e no primeiro interpretava Elin), transformam-se de adolescentes cheias de traços e modos infantis em duas belas jovens, capazes de despertar paixões em homens mais velhos, inclusive no pai de Mette, ecoando aqui o filme dentro de Tristeza e Alegria (e não é a única semelhança entre os filmes, e, de resto, Malmros sempre repetiu motivos e mesmo planos de um filme a outro).

Se A Árvore do Conhecimento é mais episódico (como, aliás, seus dois primeiros longas), numa linha semelhante à que John Boorman iria adotar em Esperança e Glória, Beauty and the Beast é mais tradicionalmente linear, com o relacionamento entre pai e filha se desenvolvendo conforme o filme avança e o pai tendo de se acostumar com o fato de que a filha (Line Arlien-Soborg) já se tornou uma moça sensual. O filme se encerra da mesma maneira que os anteriores, com extrema simplicidade, como se não estivesse acabando. Neste caso, um apagar de luz que significa apenas que a vida deles continua, e nós é que os deixamos seguir em frente, sem nosso testemunho. São finais prosaicos, no tom exato do que seus filmes apresentavam até então (o de Tristeza e Alegria promove um círculo, ou um looping, voltando a momentos antes da tragédia com a qual ele se inicia).

Em Arhus by Night, é o próprio ofício de cineasta que está em cena. Mais ainda: é dirigir um filme em Arhus, não em Copenhagen. Na segunda cidade mais populosa do país, não na primeira. É Malmros falando de suas próprias dificuldades como artista fora do centro da cinematografia dinamarquesa, filmando crianças e se apaixonando por uma jovem atriz, fazendo melhor com as crianças do que nas partes eróticas adultas – o próprio diretor de fotografia informa isso para Frederik, o diretor/protagonista, tanto de Arhus by Night quanto do filme que seus personagens rodam (a construção em abismo é uma constante na carreira de Malmros). A cena em que o diretor, no fim das filmagens, recebe de presente uma noite de sexo com duas prostitutas é, contudo, inspiradíssima, e mesmo um momento estranho, em que Malmros, tomado pela febre maneirista, filma os corpos em contato por baixo de um colchão de água, tem um brilho evidente.

Mas perto de suas obras anteriores, que retratam ritos de passagens da infância e da adolescência, Arhus by Night inicialmente parece meio desgovernado. O filme demora um pouco para decolar, apesar de algumas imagens marcantes (sobretudo as do filme dentro do filme, que muitas vezes surgem sem aviso prévio – algumas são bem parecidas, mas não idênticas, com as de Boys, o segundo longa de Malmros, o que o letreiro inicial com a informação de que estamos em meados dos anos 70 reforça). Parece que ao sair parcialmente do universo infantil/adolescente (que agora está mais numa instância interna da narrativa), e tendo demorado seis anos para filmar após A Bela e a Fera, Malmros leva um tempo para se aquecer. A primeira meia hora é irregular, com algumas barrigas, até que nos acostumamos com os personagens e passamos a acompanhar suas histórias com maior prazer. Com muito prazer, podemos dizer, pois o estilo de Malmros continua o mesmo, assim como sua habilidade de extrair a mais nobre poesia do cotidiano, de flagrar o inusitado nas reações das pessoas e de juntar planos da maneira mais original possível (a pontuação de seus filmes tem grande responsabilidade pela rara fluência nesse tipo de registro mais episódico). E aí começamos a perceber que não há muita diferença entre os marmanjos da equipe de filmagem e os garotos dos filmes anteriores. São todos crianças aprontando. Só aumentaram de tamanho. Frederik, principalmente, é o mais imaturo. Parece ter idade de estudante de cinema iniciante, não de um diretor com alguns curtas-metragens no currículo (assim ele é apresentado). Reencontramos nesse filme a bela Line Arlien-Soborg, que vemos em todos os filmes que Malmros dirigiu nos anos 80: com 14 anos em A Árvore do Conhecimento, com 16 em Beauty and the Beast, com 22 em Arhus by Night, mas sempre com o mesmo rosto. Teria ela um quadro como o de Dorian Gray? A atriz se tornou assistente de direção em dois filmes posteriores de Malmros, segundo o imdb, e nunca mais atuou para cinema, infelizmente. Por onde anda a bela Line?

Nos anos 1990, Malmros filma ainda menos. Apenas dois filmes, um a menos que na década anterior. O maior problema é que são filmes mais frágeis, e sem dúvida esse é o ponto mais baixo de sua carreira (ou menos alto, se preferirem). Pain of Love (1992) revela uma certa encruzilhada. O início é belíssimo, porque ele mostra crianças, que ele filma como poucos. Quando elas crescem e viram adolescentes problemáticos, o filme perde força, e perde mais ainda quando a protagonista, Kirsten, torna-se mãe de uma pequena filha, mas não consegue recuperar a alegria de viver. É dos países nórdicos, sabemos, esse profundo e inexplicável desgosto com a vida que leva a tantos suicídios. Mas de algum modo o tipo de direção de Malmros não se adequa a esse tipo de drama. Não há mais a leveza que temperava seus filmes anteriores, nem o lado mais abertamente melodramático que faz a beleza de Tristeza e Alegria, por exemplo. Pain of Love é a obra de um diretor procurando fugir do limite de só se dar bem filmando crianças ou adolescentes. Mas esse processo leva tempo, e durante esse tempo é inevitável cair em alguns buracos.

O desafio seguinte é Barbara, primeiro roteiro adaptado de sua carreira. Baseado em romance de Jorgen-Frantz Jacobsen, é um corpo estranho na obra de Malmros por pelo menos mais dois motivos: a história se passa nas Ilhas Faroe, longe da Dinamarca e de sua Arhus natal (ainda que seja um território dinamarquês localizado entre a Escócia e a Islândia), e durante o século XVII. Um padre chega na região e se apaixona pela personagem título, uma moça encantadora que havia casado com os dois padres anteriores, e ambos morreram. Uma caçadora de padres. O resultado dessa experiência atípica é que pela primeira vez Malmros esbarra no academicismo. É como se o desafio fosse grande demais e obrigasse o diretor a ser cauteloso, a dirigir um pouco segundo uma cartilha do drama histórico.

Sabemos que um drama de época, a menos que abdique de qualquer realismo no retrato do passado distante (O Gerente, de Paulo Cesar Saraceni; Caravaggio, de Derek Jarman) ou construa uma narrativa que fuja inteiramente do convencional (Duas Inglesas e o Amor, de François Truffaut; O Portal do Paraíso, de Michael Cimino), corre o risco de ser ou parecer acadêmico, ou seja, escrito e realizado segundo os preceitos de um suposto bom gosto cinematográfico, sem desvios ou percalços. (O “parecer” acima foi proposital, já que alguns filmes parecem acadêmicos sem o ser, pois trazem em sua estrutura um alto nível de ambiguidade que os faz transcender tal aparência – Razão e Sensibilidade, de Ang Lee, é um bom exemplo dessa felicidade). O limite é tênue, e muitas vezes um filme de época pode ser muito bom e ao mesmo tempo ficar próximo do academicismo, embora isso seja bem difícil de acontecer. Barbara, nesse sentido, é apenas um passo mais ou menos em falso (afinal de contas, mesmo preso pelas convenções, é inegável que ele filma muito bem) dentro de um caminho que Malmros demorou para conseguir percorrer: o drama adulto de implicações trágicas, e bastante nórdicas.

A recuperação vem com Facing the Truth (2002). Formalmente, não deixa de ser atípico em sua carreira. Talvez até mais que Barbara. É filmado em preto e branco, como seu primeiro longa, Lars Ole 5C, e em scope, formato em que nunca trabalhou. O tema, contudo, é muito Malmros. É a história de seu pai, um neurocirurgião muito respeitado, desde a infância até a velhice, passando pelos anos que fizeram sua fama na profissão. Na velhice, ele enfrenta um escândalo: um procedimento comum em suas operações foi o causador de uma série de mortes de pacientes operados nos anos 1940, a partir dos últimos dois anos da Segunda Guerra Mundial. A direção elegante e equilibrada pode sugerir novamente um academicismo. Mas a secura que o relato adquire em diversas partes, a habilidade em costurar os três diferentes tempos narrativos e a precisão da câmera fazem deste filme o mais formalmente rigoroso de toda sua carreira.

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Aching Hearts (2009)

E em 2009 surge um dos mais belos filmes da carreira do diretor: Aching Hearts (2009). É uma volta ao relato semi-autobiográfico de sua juventude. Estamos nos anos 60, e os adolescentes Steffen e Agnete se amam e se desprezam, não necessariamente ao mesmo tempo, sem que um saiba bem como se livrar ou se amarrar no outro. Ora é um o sacana, ora é outro, mas estão sempre perdidos entre seguir uma vida de diversão e adensar seus passos rumo a um entendimento mais profundo da vida e seus sofrimentos. Os relacionamentos com os pais, principalmente no caso de Agnete e do melhor amigo de Steffen, Toke, a outra base desse triângulo amoroso, entram como catalizadores do sofrimento. No fim, Agnete termina com um outro jovem, mais maduro. O que o coloca em par de igualdade não só com o Truffaut que sempre o influenciou, mas com Renoir e suas cirandas amorosas. A direção não é tão solta como nos anos 70 e 80, mas o artesanato límpido e equilibrado de Malmros a essa altura já tinha evoluído o bastante para se afastar de vez da pecha de acadêmico, e se abre por vezes a manifestações dignas da Nouvelle Vague (via Truffaut, como sempre), sobretudo nas cenas em que Steffen se hipnotiza pelo medo de perder Agnete ou pelo jeito como ela se comporta porque sabe estar sendo observada por ele.

Após Aching Hearts, que de alguma forma conjuga o cinema inicial de Malmros com uma certa maturidade que ele vinha perseguindo, abre-se o caminho para Tristeza e Alegria, seu longa mais recente (e segundo ele mesmo, o último). É um filme autobiográfico e trágico ao mesmo tempo. Mas seu foco não é na tragédia. É um belo relato de uma superação. Numa das cenas mais impactantes, Johannes e seu montador editam uma cena (refilmada de Beauty and the Beast) em que o pai descobre algumas fotos de nu artístico de sua filha (nu artístico que, para ele, pai zeloso e inconscientemente atraído pela filha, é pornografia). Signe pede para ver como a cena ficou. O pai dentro do filme editado está visivelmente tocado pelas fotos, e Malmros nos mostra que Johannes também. Signe, que não é boba, percebe tudo e se põe a chorar discretamente ao lado de Johannes, até que sai da sala visivelmente abalada. Se a carreira de Malmros realmente se encerrar com este filme invernal, será um testamento muito belo de um artista injustiçado.

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