Ano VII

Adeus à Linguagem

quarta-feira set 9, 2015

ADIEU-AU-LANGAGE

Adeus à Linguagem (Adieu au Langage, 2014), de Jean-Luc Godard

O assassinato do presente

Em Weekend à Francesa (1967), o personagem do Anjo Exterminador profere – logo após sequestrar o casal de protagonistas – que a era gramatical chegou ao fim e que é tempo do exagero, da parafernália, principalmente no cinema. Ao fim da projeção, os créditos finais peremptórios anunciam o “fim do cinema”.

Em Filme Socialismo (2010), Florine (Marine Battaggia) – a filha adolescente que promete matar quem fizer gozação com Balzac – anuncia que a era digital confrontará a humanidade com problemas que não se darão ao luxo de se expressarem concretamente. Ao fim da projeção, após uma última cartela que postula a premência da justiça perante a lei, sentencia-se numa última cartela “Sem comentários”.

Adeus à Linguagem não espera a realização de um percurso: traz a ideia de interdição no próprio título. Coloca às claras, logo nas primeiras cartelas, seu ponto de partida investigativo, sua premissa: “A realidade é o refúgio daqueles a quem falta imaginação. Resta saber se o pensamento contamina o não-pensamento”. Parte, portanto, do exato ponto em que Filme Socialismo havia se encerrado. Após o longo desfile histórico das eras, que constitui o terço final do filme de 2010, Godard situa politicamente a  crise do presente de forma dialética e sucinta no primeiro quarto do filme de 2014: tudo que Hitler disse, ele fez; Hitler não inventou nada, há uma longa tradição preparando essa crise; as democracias modernas estão completamente predispostas ao totalitarismo.

Se a dialética é a força motriz do cinema godardiano, nada mais natural que Adeus à Linguagem continue Filme Socialismo pela sua negação: enquanto lá o uso do verbo ser/estar denunciava uma falta flagrante de realidade (e tudo o que se resta a fazer é, afinal de contas, inserir a realidade na realidade, e não mais nos livros), aqui a desconfiança do conceito mesmo de realidade é explicitada logo de cara. Reenviar as coisas a elas mesmas, ou seja, aprender a ver antes de ler (frase citada, novamente, por Florine), exige a perspicácia do deslocamento, afinal falar das coisas, percebê-las em sua essência, nunca é falar sobre ou percebê-las nelas mesmas, mas sim através de outras (como postula Edgar em Elogio ao Amor)

À recapitulação da crise sintetizada na primeira parte, segue-se uma premissa bem simples, de acordo com a sinopse divulgada pelo próprio diretor: uma mulher casada encontra um homem solteiro, um cachorro vaga entre a cidade e o campo, os três se encontram e começam a coabitar o mesmo espaço. É também nesse segundo momento que um personagem coadjuvante dispara: as experiências anteriores estão interditas, a imagem está se tornando o assassinato do presente. Com esse cortante adendo à hipótese inicial (“seria capaz o pensamento contaminar o não-pensamento?”, ou seja, seríamos capazes ainda de aprender a ver antes de ler?) o que se segue é um empreendimento quase quixotesco de Godard em tentar negar veementemente o plano cinematográfico como mais um lugar no qual as imagens sejam o assassinato do presente, um lugar no qual ainda é possível o deslocamento que permite a não contaminação do olhar e do não-pensamento por uma noção equivocada de realidade.

O plano monumental e o monumental no plano

A distensão do campo operada pelo 3D em Adeus à Linguagem estabelece, mais uma vez, uma operação quase inversa ao que se viu em Filme Socialismo. A possibilidade técnica de compor de forma a acentuar e a realçar as diferenças entre o que se relaciona no plano, aliada à uma intensificação da tactilidade dos elementos que brotam, como nunca, aos olhos faz com que Godard desenvolva composições que, aparentemente, em sua essência divergem do trabalho que até então vinha desenvolvendo com o uso do HD e da manipulação de imagens, principalmente em seus últimos três longas (Elogio ao amor, Nossa Música e Filme Socialismo). À imagem angustiante da imensidão marítima, um recorte singelo de um rio que corre carregando uma verdade, tentando se comunicar; à composição imagética monumental do Cruzeiro Costa Concórdia, planos de dentro de automóveis que percorrem estradas; aos cortes bruscos dos planos captados em HD para o digital em baixa resolução, as transições mais sutis em alguns momentos, que nos fazem perceber a saturação apenas em algumas flores (quando a transição é brusca, ela se dá quase sempre dentro do mesmo plano, através de uma manipulação que vacila, faz e se desfaz); às imagens extremamente saturadas de ondas batendo em rochas que entram repetinamente, a observação, em plongé, de folhas e árvores sendo movimentadas pelo vento, na qual um galho insiste em estar excessivamente próximo à lente da câmera,tal como o rabo de Roxy num dos últimos planos do filme.

O 3D aqui não está à serviço de uma busca por uma imagem monumental (Ceylan e o seu Sono de Inverno são talvez os representantes mais aguerridos da tendência, dentre os filmes lançados este ano), imagens assassinas do presente, assassinas da percepção (como ocorreu com o uso da ferramenta em quase todos os filmes que a utilizaram até então, com exceção feita, talvez, a James Cameron e Werner Herzog), mas sim, numa busca pela monumentalidade no plano, o verdadeiro ofício dos grandes cineastas que souberam utilizar com propriedade o que seu tempo, a técnica então existente e a economia política que a regulava lhes permitiam (o que fizeram Lumière, Eisenstein, Murnau, Guitry, Anthony Mann, Rouch, Glauber, Fuller e Michael Mann senão exatamente isso?). A busca de Godard se encontra, sobretudo, nos planos em que o 3D não possui o sentido espetacular que lhe é atribuído usualmente. Filma-se um vaso numa janela, as flores sobre a mesa ou na relva, as nuvens e duas crianças que caminham por entre as árvores,  close-ups de troncos de árvore, a sobreposição de um campo e de um contra-campo, a neve caindo ou Roxy se rolando na mesma, mas principalmente seu rabo balançando de forma inesperada, incompreensível num primeiro momento, mas que o choque com a lente tudo esclarece: o monumental está ali, de repente, como sempre esteve, no fundo, trata-se apenas de perscrutar as coisas com os instrumentos mais precisos que se possui (Straub-Huillet diriam a mesma coisa).

Trata-se, sobretudo, de poder entrever as experiências interditas mencionadas anteriormente (“o historiador não procura, acha”, Filme Socialismo, mais uma vez, ou “até esse momento na história, nada foi dito” como a mulher casada profere em Adeus à Linguagem). E se há uma aparente divergência com o trabalho de composição realizado nos últimos longas – nos quais simplesmente filmar uma relva ao vento ou as nuvens passando, senão com um senso de angústia aferida pela imensidão do fora de campo, soaria como algo impossível – é pura e simplesmente porque as condições técnicas se alteraram, a essência de seu olhar continua o mesmo, contudo.

Em seu Pedagogia Godardiana, Daney afirma: “Para Godard, reter as imagens e o público, fixá-los (como fazemos cruelmente com as borboletas) é uma atividade desesperadora e talvez sem esperança. Sua pedagogia apenas o faz ganhar tempo. À obscenidade de aparecer como Autor, ele preferiu aquela de colocar-se em cena no próprio ato de retenção”. Se o capitalismo, mais do que nunca, consiste em uma fuga para a frente, se qualquer publicidade, pelo menos desde a década de oitenta, já se utiliza da técnica do distanciamento brechtiano para vender sabão em pó (como bem observou Roberto Schwarz), a estratégia do comunista Godard não consiste mais em operar uma retenção e revisão de discursos (tal como nos filmes exemplificados por Daney em seu texto). A retenção agora operada se desloca para o espaço, primeiramente, e desdobra-se, em um segundo momento, para o tempo: não se pinta mais o que se vê, mas sim o que não se vê (citação de Monet, presente no filme); é necessário reter algo dito a nós pelo rio que flui intermitentemente ao longo da história – aquele mesmo que tenta se comunicar com Roxy – se assenhorar de seu espaço-tempo, manter-se fixo e rijo diante dessa fuga para frente

A inversão do aforismo de Lumière

Em carta ao Festival de Cannes, a fim de justificar a sua ausência, Godard afirma que ele não está mais onde as pessoas julgam que ele esteja, mas sim seguindo outras pistas. Carta premonitória no que diz respeito à recepção de Adeus à Linguagem, que girou, na maioria dos casos, em torno de afirmações que davam destaque apenas para um certo tom zombeteiro do diretor para com a técnica da tridimensionalidade ou para a melancolia que compõe o que seria o réquiem de um grande artista. Se esses elementos estão presentes na obra, no entanto, se encaixam dentro de uma cuidadosa lapidação, através da qual Godard busca uma brutal inversão do aforismo de Lumière: o cinema é a única invenção com futuro, no que diz respeito ao combate às imagens que, cada vez mais, se tornam o assassinato do presente. Se Adeus à Linguagem virá a ser, de fato, o último filme do diretor, isso pouco importa: os horizontes abertos por seus postulados, por sua batalha, já são tão importantes quanto a fenda aberta por Acossado.

Guilherme Savioli

 

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