Ano VII

Frame porn

quarta-feira abr 29, 2015

Frame porn: do autorismo vulgar à pornografia chic

Por Wellington Sari

De maneira jocosa, Sérgio Alpendre mostrou-se aliviado no grupo de discussões aqui da Interlúdio, por eu não ser um entusiasta do “autorismo vulgar”, depois que mencionei minha intenção de escrever negativamente sobre O destino de Júpiter. Terminado o texto, olhei, por curiosidade, algumas fotos do filme espalhadas pela internet. Embora tenha achado (e continue achando) o filme bastante ignóbil na capacidade de articular uma mise-en-scène capaz de emanar um mínimo de beleza, alguns frames chamavam atenção pela riqueza de cores, pela exuberância barroca da iluminação, pela interessante distribuição no quadro de elementos entre o primeiro plano e o terceiro. Mesmo que boa parte destas imagens sejam stills de divulgação e não necessariamente frames retirados diretamente do filme, seria plausível imaginar uma pessoa com o mesmo espírito do personagem de Michael Douglas em Um dia de fúria, que, sentindo-se enganado pela diferença entre a foto do hambúrguer anunciado no painel e o lanche de fato, ameaça o vendedor com uma arma.

Intrigado com essa questão, resolvi procurar tumblrs (a plataforma da moda para a compilação de imagens) dedicados ao autorismo vulgar. Há vários deles. Fiquemos, porém, com aquele que parece ser o mais didático, como o título da página logo atesta. O que este fenômeno, a compilação e compartilhamento de frames congelados representa para a crítica (o ato de um tumblr selecionar determinado fotograma em detrimento de outro já se configura em um ato de crítica) e, algo mais difícil de se traçar, o que a proliferação desta prática revela sobre a cinefilia/sociedade atual? Que logo fique claro: a intenção não é pensar o uso da imagem como eficiente simulacro de citação do filme – objeto sempre inalcançável para a crítica, que só consegue indiretamente – ao longo da história da crítica ou da academia. A análise fílmica, campo dos estudos cinematográficos, e a própria crítica cinéfila utilizam imagens recortadas do filme muito antes da invenção do videocassete. O que parece estar em jogo atualmente é a potencialização desta atitude mãos de tesoura, que constantemente parece apaixonada mais pelo fragmento do que pelo todo. Se a análise fílmica já foi inúmeras vezes criticada por tratar o filme da mesma maneira que o faz um estudante de medicina na aula de dissecação de cadáveres, o que é possível apreender sobre tal cinefilia contemporânea, atuante majoritariamente na internet, que trata o filme como um podólatra trata o corpo?

O autorismo vulgar (usemos o termo de maneira generalista de agora em diante), que está longe de ser um movimento organizado ou com regras estritamente definidas,  privilegia obras de gênero, que se assumem francamente como tal e que costumam ter alguma exuberância técnica. Os Watchowski, ao lado de James Wan, John Hyams, e a grande vedete dos frames congelados nos tumblrs, Paul W.S Anderson, são alguns dos diretores costumeiramente defendidos. Existem inúmeros outros nomes passíveis de adentrar o panteão dos “vulgares”, como é possível conferir no tumblr mencionado acima. A abrangência infinita ontológica a esta maneira de ver filmes,  é intimamente ligada ao seu caráter defensivo. O ato de escolher um momento específico e estonteante de determinada sequência em determinado filme, como o fotograma de Resident evil 5: retribuição exibido abaixo, tem, intrinsicamente, a vontade de provar a riqueza artística daquele produto que, em geral, é tido como o resultado de um modelo de fabricação fordiano. A defesa é realmente sedutora: a geometria quase abstrata do plano, com seu ponto de fuga infinito, aliada ao minimalismo do cenário, que lembra o espaço metafísico ao final de 2001: Uma odisseia no espaço, denota um domínio plástico raro até mesmo em artistas cuja proposta não é a de realizar cinema narrativo. Que o plano destoe do restante do longa-metragem, ou que a sequência dure menos de quatro segundos, como é o caso em Resident evil 5: retribuição, pouco importa. Variando-se as expressões, o discurso embutido em cada uma das imagens congeladas escolhidas pelo referido tumblr (e por todos os que se valem do mesmo expediente) é o da vitória artsy – em tudo o que a palavra carrega de pejorativo. De qualquer maneira, a imagem é definitivamente instigante. E as outras milhares que compõem o longa-metragem?

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A tentativa de se manipular, dissecar, separar e congelar determinada parte de um objeto cujas bases estão montadas sobre a invisibilidade altamente sensível do tempo, como é o cinema, é um esforço não só desonesto, como inócuo. Quando se propaga e se consome fotogramas congelados que supostamente sintetizam a riqueza visual de determinado filme, não se está nem mesmo mostrando o vestígio da obra – nos moldes de Andre Bazin, que dizia ser a fotografia um vestígio -, mas uma prova falsa. O ato crítico, mais uma vez, tanto de quem produz/seleciona quanto de quem consome, resume-se à procura obsessiva pelo hit, pelo best of.

Eis um frame selecionado de Tiro e queda (The big hit, no orginal). A imagem, decididamente, impressiona pela plasticidade insólita e, assim paralisada, poderia muito bem se passar por uma resposta à Barbecue, quadro de Eric Fischl. Só que, de maneira alguma, este plano suspenso ajuda a dar pistas sobre a experiência que é assistir ao longa-metragem de Che-Kirk Wong que, em todas as escolhas imagináveis, afasta-se esteticamente do pintor norte-americano. A simetria entre os dois só existe graças à manipulação cuidadosa, feita por mim, de uma sequência do filme. Destituído do corpo, o frame passa a ser unicamente um fio de cabelo. É evidente que esta não é a intenção,  mas o autorismo vulgar (e outras manifestações, como veremos adiante) alcança o efeito contrário à vontade inicial: ainda que busque o não-usual, o não grosseiro e, ironicamente, o não-vulgar, a descontextualização exacerbada provocada pela segmentação termina por fazer da imagem uma gota banal a desaguar no oceano imagético em que vivemos.

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Em uma configuração de mundo em que a crítica de arte foi nocauteada pela prescrição cultural, em que a crítica de cinema tem tudo para ser, no futuro próximo, substituída inteiramente por reviews de YouTube ao estilo unboxing (poderá haver uma alternativa: vídeos ao estilo playthrough, em que o “produtor de conteúdo” exibirá o filme do início ao fim, enquanto aparece no cantinho da tela, gritando palavrões e tomando sustos), é preciso colocar em xeque toda abordagem que faça ainda mais um buraco no já esburacado casco do navio.  A abordagem do frame porn  – termo inventado de improviso – está muito mais próxima do vendedor de carros usados, que anuncia o veículo exibindo fotos do belíssimo banco de couro e esconde as imagens da lataria riscada, do que do crítico de arte. Precisamos de mais vendedores de carros?

Essa relação de desonestidade não se dá apenas com o filme em si. Estende-se ao “leitor” do produto elaborado pelo crítico/cinéfilo, uma vez que já não se está fazendo uma tentativa de “citação”, ou de ilustração de uma ideia, como se faz, para ficar ainda no exemplo óbvio de internet, no blog de David Bordwell.  Pulando da academia para a avenida Mac Mahon, é possível citar a definição de Michael Mourlet para a crítica: “Discernir as sensações provocadas pela obra, explicitá-las, ordená-las para tentar fazer penetrar na obra o leitor, supondo seguir o caminho inverso e passar da explicitação escrita à sensação bruta”. A impressão passada pelos vultosos frames cuidadosamente selecionados pelo autorismo vulgar é que não fazem o leitor “penetrar na obra”, mas o contrário: engula essa peça de genialidade. Esquece-se a ordenação, a construção harmoniosa do pensamento e parte-se logo para o prazer. Pupila dilatada, ecstasy.

Mourlet e os macmahonistas, aliás, são a metade malvada dos “vulgares”; são o antídoto para o otimismo-vendedor-de-carros, que sempre consegue mostrar a fotografia com o lado do automóvel em que a lataria não está danificada. Essa vulgarização do gosto, que chafurda na lama em busca de pérolas – cuja manifestação, no Brasil, mistura-se constantemente com outra ainda mais grotesca, que é a da tentativa em valorizar desmedidamente qualquer tipo de produção cultural, sob a falácia obscura e imprecisa que anuncia ser essa “a voz do povo” e que tem no funk, no grafite, nas novelas e em programas como Esquenta seus exemplos mais medonhos – é digna de ser combatida e repudiada. Não neste texto, no entanto. O problema é muito mais complexo do que a frouxidão de critérios ou do que a vitória definitiva do sentimento derrotista do pós-moderno: a vitória do imediatismo, do valor de face, ante ao raciocínio, à reflexão.

O autorismo vulgar não é o vírus que contamina uma parte da crítica. É apenas o sintoma de efemeridade muito mais séria, ligada à maneira como nos relacionamos com imagens atualmente. Não poderia haver nome mais representativo para a tendência imediatista que se tem com as imagens do que One perfec shot, perfil de Twitter que se dedica a selecionar, obviedade das obviedades, um plano perfeito presente em uma infinidade de filmes. O perfil, seguido por 127 mil contas e preenchido com mais de 6.800 postagens, não se limita apenas aos zumbis de Resident Evil, ou à careca de Jason Statham. Embora predominem filmes norte-americanos, há obras canônicas da Ásia e da Europa ocidental. A catarata de fotogramas perfeitos que se forma quando descemos o cursor pela timeline do site tem o mesmíssimo tom arbitrário e de involuntária banalidade da página dedicada ao autorismo vulgar, citada anteriormente. Tarkovsky, Ryan Gosling, De Palma, Gia Coppola, o outro Paul Anderson, Herzog, Snyder, Corbucci, Masaki Kobayashi, Michael Mann: o fluxo da geléia geral transforma tudo em um grande nada.

Em paralelo a perfis como este, é curioso notar a transformação no consumo da pornografia na internet. A grande quantidade de tumblrs com conteúdo erótico não é apenas indício da sua popularidade, é também fornecedor de pistas para que se possa perceber como a pornografia deixou de ser algo marginal, que se faz às escondidas, que é destinado a ser consumida de portas fechadas, com o dedo fazendo guarda no botão de liga/desliga do monitor. Mais ainda: deixou de ser passatempo de adolescente do sexo masculino e do rosto cheio de espinhas. É, agora, algo tão cool quanto a foto preto e branco de um jovem de rosto imberbe fumando um cigarro sentado em cima de um skate, usando tênis Nike.  Mesmo levando-se em conta a possibilidade de muitas donas de tumblrs eróticos criarem perfis falsos, é possível, fazendo uma rápida pesquisa em redes sociais, encontrar um número grande de meninas jovens mantendo tais sites. Houve uma mudança, então, na maneira como a sociedade expõe a sexualidade? Talvez. Para que isso tenha acontecido, a pornografia teve de ficar chic. Teve de tomar um banho de loja. Teve de aderir ao bom gosto, como deixa bastante claro o título deste site.

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Assim como o perfect shot, ao propor a mumificação do objeto fílmico, entregando o ouro em menos de 140 caracteres e poupando o espectador/leitor dos perigos e segredos que uma aventura pelos labirintos da pirâmide poderia proporcionar, o money shot do tumblr pornô que, subvertendo a velha norma da indústria erótica, não é mais a imagem que serve para provar a ejaculação masculina, entrega a putaria envolta em verniz, em imagens cuidadosamente escolhidas, que poderiam tanto pertencer ao universo do celestial quanto ao das propagandas de desodorantes femininos que não deixam manchas escuras nas axilas. Tudo é um grande clímax (haveria que se escrever um texto em separado dedicado exclusivamente aos GIFS, formato largamente utilizado na internet com intuito humorístico e também abundante na manifestação de cinefilia e em tumblrs eróticos, que exibem ad infinitum seios a balançar, uma pélvis a remexer, em uma radicalização da ideia de prazer imediato; não basta mais exibir apenas o ápice, o momento incrível; é preciso exibi-lo em looping: o GIF erótico é um Sísifo do prazer eterno).

O reducionismo fetichista dos exemplos mencionados aqui tem ligação direta – nada mais evidente – com a era em que vivemos, a das redes sociais. Estas plataformas privilegiam, ou melhor, estimulam o constante compartilhamento de clímaxes, nunca de tempos mortos, cuja efemeridade tem se mostrado ainda mais dominante (o snapchat celebra a brevidade patologicamente). A maneira como abordamos o cinema e as artes em geral, reflete no que será produzido, que, por sua vez, é inteiramente influenciado pela maneira como vivemos.

Limitar a existência de um filme a um frame congelado é lhe tirar toda a vida. O que é o cinema? Kent Jones escreveu que o cinema é um segredo, um sussurro passado de geração a geração. O frame porn equivale-se ao delírio dos antigos egípcios que mumificavam-se na esperança de sobreviver ao tempo e de encontrar o reino dourado do outro lado. Mas, esta triste múmia acaba por se transformar em mero cadáver putrefato misturado às areias do deserto. O próprio tempo se encarregará de oxidar o brilho excepcional do fotograma congelado, que tenta preservar a vida, como se estivesse em um tanque criogênico, e termina como mais um cadáver fedendo formol na ala dos indigentes do necrotério.

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