Ano VII

Sniper Americano

sexta-feira mar 27, 2015

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Sniper Americano (American Sniper, 2014), de Clint Eastwood

 

“O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas formas clássicas”

Anatol Rosenfeld, O teatro épico

A cada manhã, para ganhar meu pão

Vou ao mercado onde mentiras são compradas.

Esperançoso

Tomo lugar entre os vendedores.”

Bertolt Brecht, Hollywood, Poemas 1913 – 1956

Em Sniper Americano todas as cenas de batalha na guerra despertam, sempre, uma perturbação visual: a partir do que é visto e presenciado pelos que se encontram submetidos àquela situação limite, vertiginosa, uma fissura se instala. O filme não se constrói através de uma continuidade dramática entre essas fissuras: um problema despertado por uma situação marcante em uma das cenas de ação não formará, necessariamente, uma ligação teleológica com a cena seguinte (exemplar nesse sentido é a sequência em que Chris mata o “açougueiro”, na qual ele dispara uma bazuca e finaliza em pouco segundos o seu alvo, mas a atenção final repousa sobre a imagem dos iraquianos reivindicando a morte de um suposto inocente). Trata-se, sobretudo, da acumulação. Essa é a lógica de Sniper Americano, as fissuras implantadas pelo que foi visto no campo de batalha, enfim, pela experiência, se amontoam; o que se passa ao largo disso e os discursos oficiais que circundam e amarram a vida social vão sendo empurrados, comprimidos e pressionados por esse acúmulo.

O personagem mais suscetível às pressões exercidas por esse acúmulo é, evidentemente, seu protagonista, o sniper Chris Kyle. É a ele, porém, que a câmera de Eastwood possui o acesso mais tortuoso. Quase todos os personagens que contracenam com Bradley Cooper conseguem reagir, de fato, aos eventos: choram, se revoltam, possuem medo de se apaixonar; enquanto Cooper permanece ali, quase como uma rocha a olhar e a tentar assimilar o que se passa, quando não engolindo o choro e engasgando ao falar. Desde o moemento em que vê um atentado contra uma embaixada americana pela televisão, o que o levará a se alistar, até quando presencia a morte de seu colega em uma emboscada, essa é a postura fundamental de Cooper perante a experiência, uma árdua e quase incessante tentativa de assimilação do que foi. É, portanto, a partir dessa figura na qual o acúmulo vai progressivamente se assentando e de sua privilegiada posição na guerra (um sniper está sempre a olhar a ação, o que se passa distante, através de uma mira – o ato de ver é macabra e intimamente ligado ao ato de matar) que o filme se dará a ver.

A luz, o traço que inscreve o drama, com a criação de intensas zonas de sombra, o chiaroscuro que intensifica e expande o conflito de cunho moral vivido por seus personagens, povoando, em última instância, o plano com a mais bruta dialética concebível: a vida perscrutada pela morte; marcas indeléveis de obras-primas realizadas por Eastwood na última década (Sobre meninos e lobos, Menina de Ouro, Gran Torino e A troca) parecem, num primeiro olhar estarem ausentes da mise en scène desse sucinto relato erigido a partir da existência de uma pessoa como Chris Kyle. A acumulação, acima mencionada, se constrói a partir de um rigoroso trabalho de montagem, mais do que propriamente por uma inscrição dramática pela luz. Passa-se de um tempo ao outro, de um país ao outro, da paz à guerra – bem como o caminho reverso – no intervalo de um corte, e é justamente na violência e brutalidade dessa passagem que o diretor irá centrar fogo.

A primeira fissura surge logo no flashback que abre o filme: uma sucessão de planos que apresentam de forma bem dura e sucinta como uma situação de combate é seguida pela necessidade de Kyle em tomar uma decisão que poderá produzir sua primeira vítima em campo. Com o som de um tiro somos levados a revisitar sua infância no Texas. Nos é mostrado, então, o processo de formação de um texano. Não há grandes nuances psicológicas: passa-se da situação de almoço em família, na qual o pai de Kyle irá proferir o mote que guiará o filho – ainda criança – por toda a vida, para um rodeio, com Kyle já bem adulto. Há, porém, um extenso e detalhado processo de descrição do que constitui materialmente aquele ambiente social extremamente específico (lembremos que ao conhecer sua futura esposa, Kyle rejeita a alcunha de redneck avisando que ele é um texano, especificando seu local de fala).

Não há, com isso, uma tentativa de se justificar moralmente a morte (fruto das decisões tomadas por Kyle): Eastwood reivindica a descrição como meio para se acessar as condições das quais brota de um discurso oficial, esse sim agente da guerra. O personagem de Cooper tenta personificar esse discurso, encampá-lo por inteiro, torná-lo aceitável para si próprio, mas toda vez que é interpelado por alguém (seu colega que deseja acreditar em alguma razão para o que estão fazendo no Iraque e afirma que o mal está em todo lugar) ou por alguma situação (o cadáver desse mesmo colega ou sua esposa questionando-o sobre a morte do amigo) ele não consegue dar as respostas necessárias. Instala-se uma espécie de mal-estar em curto-circuito, que progressivamente tomará conta do plano de forma cada vez mais incisiva.

No último confronto do filme esse curto-circuito se instala em definitivo. Chris finalmente mata Mustafa, um atirador que no fundo vai se construindo como imagem e semelhança do Kyle (diferenciando-se apenas pelo lado que ocupa no campo de batalha). Uma tempestade de areia invade o campo, tudo está envolto pela mesma areia, indiferenciado, enfim. É nesse cenário caótico que o sniper resolve ligar para a esposa, avisar que cumpriu sua tarefa e que finalmente pode voltar para a casa. Fala absurda, discurso negado descaradamente pelas imagens: um homem matou o outro, o conflito está apto a prosseguir, mesmo sem ambos. Por fim, as imagens de uma família feliz, que antecedem o final do filme, são também tomadas por uma disfuncionalidade que não condiz com o que supostamente estamos assistindo: a cena abre com um plano fechado de um revolver e segue com uma encenação de tentativa de estupro.

Todo idiota acha que sabe o que é a guerra, especialmente aqueles que nunca estiverem em uma. Eastwood acredita profundamente nessa frase, uma das primeiras proferidas por um personagem em outro filme seu, A conquista da honra (2006). Por outro lado, possui uma extrema desconfiança de definições, termos e ideias vagas, tais como sistema e sociedade, por exemplo. As coisas precisam ser definidas, enraizadas: sistema e sociedade são compostos por indivíduos e pelas relações estabelecidas entre eles. Nesse sentido, Sniper Americano é o grande filme épico-dialético de Clint Eastwood, uma vez que ao manter grandes justificativas generalistas e conceitos vagos longe de seu campo de interesse, ao mesmo tempo em que figura concreta e fisicamente, através de um homem e sua história, toda uma moral, faz emergir a contradição do discurso, quando esse tenta fracassadas e repetidas vezes se assentar e dar um sentido para a existência.

As imagens reais do cortejo fúnebre, as quais Eastwood se permite utilizar no final do filme, surgem da mesma forma que as imagem do rio no final de Sobre meninos e lobos: cadáveres submersos habitam suas profundezas, apesar do mundo seguir, indiferente, seu curso.

Guilherme Savioli

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