Ano VII

Whiplash

segunda-feira fev 2, 2015

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Whiplash – Em Busca Da Perfeição (Whiplash, 2014), de Damien Chazelle

Não há nada particularmente novo ou insólito no tema tocado por Damien Chazelle em Whiplash. A rápida leitura da partitura nos ensina as notas para uma velha música executada exaustivamente por Hollywood. Qualquer entusiasta do cinema americano já ouviu o refrão: “mestre durão, aprendiz dedicado”.

Como o cinema não é leitura, tampouco se limita ao tema – do mesmo modo que uma partitura não é música – é possível encontrar no filme de Chazelle algo que deve ser sempre louvado: o brilho na execução.  Pouco importa se Whiplash é tematicamente uma variação de um arquétipo tão explorado quando nosso interesse pode se derramar sobre a forma, que aqui é absolutamente coerente com o material indicado no roteiro. Em um mundo ideal, ressaltar a supremacia da mise-en-scène seria redundância. Vivemos na lua e o mundo ideal é apenas um pontinho brilhante no céu escuro e sem nuvem.

A primeira pergunta feita internamente por todo cineasta digno da alcunha, é: de que maneira filmar esta ideia? Como filmar o Bebop? Como filmar o swing tresloucado de uma big band? Como filmar o som da bateria de Buddy Rich? Quando Chazelle formulou as questões, possivelmente sabia que as respostas eram fundamentais para que a ambição do projeto se sustentasse (a construção esquemática do roteiro não permite aos menos atentos enxergar que Whiplash é ainda mais ambicioso do que parece): registrar o nascimento de um gênio. Captar o árduo aprendizado que resulta no nascimento do gênio. Aparentemente, mais uma vez, trata-se de uma ambição gasta. Filmes sobre artes marciais, do naif, como o O Grande Dragão Branco ao ultra autoconsciente Kill Bill mostram sem dificuldades o labor do aprendiz para se tornar o maior de todos no seu ofício. Fazê-lo não costuma trazer grandes embaraços aos cineastas, uma vez que a arte marcial, por si só, já é extremamente visual. Uma operação relativamente simples de montagem e coreografia corporal pode ser o suficiente.

Como fazer exatamente a mesma coisa, só que com o jazz, estilo musical complexo e repleto de minúcias? Eis um desafio.

Se é possível afirmar que o roteiro de Whiplash é didático em várias passagens (o diálogo na mesa de jantar; todas as cenas envolvendo Nicole), é possível, também, olhar para o contraponto deste didatismo.  A escolha em decupar com abundância algumas sequências-chave e utilizar o plano detalhe recorrentemente é, a um só tempo, uma maneira de traduzir visualmente de maneira didática peças musicais altamente complexas e virtuosas e, também, optar por um estilo de montagem inteiramente coerente com o jazz. Nada mais certeiro do que segmentar a cena e conduzi-la com a ajuda de cortes abundantes, que guiam o olhar para as sutilezas de uma música frenética, ao mesmo tempo em que nos fornecem signos do esforço físico (sangue, suor) depreendido pelo aprendiz para executá-la com perfeição. E, recorrendo mais uma vez à analogia, embora a partitura da extasiante sequência final de Whiplash seja composta dentro da mesma estrutura de um filme de pancadaria (podemos ficar com o exemplo de O Grande Dragão Branco: há um palco, há uma preparação lenta para o espetáculo, há o revés, e, finalmente, a explosão de golpes que demonstram todo o vigor físico e mental do aprendiz que, derramado o sangue e adquirido os hematomas, consegue a aprovação final do mestre), a execução, por ser tão conectada à matéria prima, resplandece em som e fúria.

O ator, pistão que faz ressoar a mise-en-scène, será a categoria mencionada em dez entre dez críticas sobre Whiplash. Não é por acaso. J.K Simons é tanto a maior força do longa quanto a maior fraqueza. Nada mal para um papel que suscita boa dose de ambiguidade para não parecer-se totalmente com algum fantoche kubrickiano.Quando  o velho didatismo aparece sem vergonha alguma, na cena de humanismo pornográfico em que o Darth Vader das batutas (ambos vilões dividem o mesmo guarda roupas) conversa afavelmente com uma criancinha no corredor, o filme fica prestes a ruir. “Veja, não sou apenas um professor descontrolado”, é como se gritasse cada gesto e palavra do ator. Aparentemente, falta ao personagem a mesma sutileza que cobra de seus alunos para a execução das músicas (e, evidentemente, a sutileza que o Chazalle emprega  para filmá-las). Poucos ouvidos recostados na poltrona do cinema são capazes de identificar se o andamento do baterista está adiantado ou atrasado, mas basta dez segundos de presença no plano para ficar claro que o mestre é alguém odioso. Nos momentos de pura vilania, como no sussurro “acha que sou burro, eu sabia que foi você quem me denunciou”, Whiplash também fica prestes a ruir por implosão, apesar da forma rígida da mise-en-scène.

Eis que o momento seguinte ao sussurro, quando o mestre vê materializar-se diante de si o gênio segurando baquetas, e o corpo do professor gradativamente começa a se transfigurar, em espasmos controlados, em gestos ao mesmo tempo deliberados e automáticos (limpa o suor do buço com uma das mãos bem abertas), com o olho vidrado do homem das cavernas que vê pela primeira vez o raio queimar o tronco da árvore, temos, nós também, nossa pequena epifania: toda aquela atuação de mão única precisava ser solidamente mantida ao longo do filme para que a meia volta da sequência final fosse realmente impactante (Stuntman Mike acende os faróis a 100 mph).

Se o diabo está nos detalhes, a mão ligeiramente em chifrinho de Simmons a conduzir a ode herege ao sacrifício humano tocada na sequência final, um detalhe sórdido não pode passar despercebido: o sociopata vence, e o faz em meio à uma explosão de vida, fogo, sangue, êxtase e beleza, ao invés da dubiedade gélida dos olhos azuis de Rosamund Pike em Garota Exemplar, filme que se aproxima de Whiplash em diversos sentidos – o mais óbvio: o retrato esquemático da sociopatia. O primeiro celebra a morte, a apatia, a frieza. O segundo, o calor, a vida, o nascimento. A convalida Hollywood não precisa de outra coisa, atualmente.

Wellington Sari

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