Ano VII

Roda da fortuna

segunda-feira dez 1, 2014

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Roda da fortuna: sobre Scarface, de Brian De Palma

por Wellington Sari

Até que ponto a violência em Scarface se mantém chocante, nos dias atuais? Transformado em herói por rappers americanos e enfeitando a estante de bonecos atrás da porta de nerds no mundo todo, Tony Montana, esse conquistador inverso, de trajetória operística, deixou de ser o vilão para quem o sistema capitalista aponta o dedo e se transformou em palhaço, com nariz pintadinho de branco e olhar tristonho.  Se a cultura pop devorou o personagem e, depois de mastigá-lo, cuspiu uma frase de efeito, há um aspecto que continua perturbador e atual: o processo de enclausuramento por parte daqueles que detém o poder – consequentemente, o dinheiro. Existe, ainda, o motivo universal do retorno ao ventre e da hereditariedade, da manutenção do poder patriarcal. O longa de 1983 é uma épica jornada sobre o desejo de alcançar estes objetivos. Desejo, claro, nunca alcançado.

 

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O projeto barroco de De Palma só é experimentado em sua totalidade no cinema. A exuberância das gruas que marcam o início de praticamente toda sequência desaparece na tela da sala de estar. As imagens cintilantes – para citar o título do livro de Camille Paglia – criadas pelo cineasta norte-americano se mantém brilhantes, mesmo depois de toda a exploração do universo de Scarface. Nada derruba a mise-en-scène sólida, a organização precisa e sublime da feiura do mundo.

 

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Em Scarface, o destino do herói é traçado logo no primeiro plano. Mesmo antes de se tornar um bilionário paranoico, que investe boa parte da fortuna em vigilância, Montana é interrogado em uma longa cena em que vemos apenas seu rosto sendo escrutinado por uma câmera que se move lentamente em círculo. O cerco ao fugitivo cubano está armado desde o início. A jornada de ascensão e queda é, mais do que tudo, uma narrativa sobre o fracasso da paternidade. De Palma, em diversos momentos, insere no plano motivos circulares – a janela redonda na sequência da motosserra, o relógio na parede na sequência da contagem de dinheiro – para contrastar com a magreza drogada de Elvira, interpretada por uma Michele Pfeffer sem curvas, com seios pequenos.  Elvira, a junkie de ventre poluído, segundo Tony. O “x” de Howard Hawks transforma-se em “o”, neste jogo da velha doentio.

 

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Contraste, aliás, que ao mesmo tempo em que diferencia personagens e destinos, os aproxima. Frank, o chefão de pele cor-de-cenoura, de riso fácil e de gestos expansivos (todos usam camisetas abertas no peito; as camisetas de Frank são ainda mais abertas) contrasta com a sisudez de Montana, cujos músculos da face parecem talhados em rocha. O personagem de Al Pacino não percebe que o bronzeado do dono do time mirim de beisebol é aquilo que o cubano será no futuro próximo: um sujeito que vive enclausurado, que precisa pintar um painel com palmeiras e céu alaranjado no escritório, para simular a existência em Miami (a maquiagem imitando bronzeado artificial só poderia ser exagerada e à beira do ridículo, já que é deste simulacro de praia que Frank recebe luz solar). O patrão de Montana nunca é mostrado em externas. O mundo é dele, e o mundo se resume à boate, à mansão e ao escritório.

 

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Pfeiffer e Mary Elizabeth Mastrantonio: Montana é cercado por signo circulares e, em um momento chave, o vemos mergulhado na banheira redonda. A espuma branca, abundante, representa exatamente o estado daquele homem já paranoico e afundado em cocaína. O movimento da grua termina exibindo o dopado em total isolamento. O banheiro é gigantesco e Montana está preso naquele pequeno círculo no meio do quadro, naquele ralo que lhe suga a vida – De Palma nunca retrabalhou Psicose tão bem quanto neste plano.  Minutos antes o cubano discutia ferozmente com Elvira, a mulher que ele tanto desejou possuir, mas que é incapaz de lhe conceber um filho, de transformar-se, ela mesma, em uma forma circular. Não há qualquer sexualidade em Pfeiffer, ao contrário de Mastrantonio, jovem mulher de formas voluptuosas, com quem Montana dividiu um ventre.  Ela, sim, parece capaz de lhe dar um filho – seria possível imaginar que a sequência em que Montana sofre o atentado na boate é um pesadelo grotesco, fruto dos desejos proibidos do personagem: logo depois de atacar furiosamente a irmã, graças ao ciúme doentio, ele, letárgico, senta-se afundado na mesa do bar, cercado de espelhos, que o fragmentam em mil imagens, sob o fundo vermelho sangue, ao som de gargalhadas medonhas; materializa-se diante dele um boneco de enorme pança redonda, com rosto cartunesco, composto por bochechas também muito redondas, que dança de maneira patética; o pesadelo só termina com as balas, que rasgam o barrigão do boneco e estilhaçam os espelhos.

 

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Ao perder a esposa e matar a irmã e o melhor amigo, eliminando, de uma vez por todas, o já pequeno círculo de amizade do personagem, resta deixar-se consumir pelo cerco que começou a se materializar lá na primeira sequência e, na última ganha corpo. Cercado pelos capangas de Sosa, que invadem a mansão como animais, como uma tribo primitiva – o batuque étnico eletrônico de Giorgio Moroder ressalta tal impressão – Montana encontra-se no topo das escadarias duplas que, subindo uma de cada lado, formam um semi círculo. Sozinho e encurralado, como na banheira de cocaína, o cubano termina derrubado na piscina, o sangue banhando a água, pintando de vermelho um dos poucos elementos do ambiente que tem outra cor. O globo redondo a anunciar, em letras de neon, que o mundo é dele. O mundo das câmeras de vigilância, dos muros altos, do enclausuramento.  De volta ao líquido em que nadamos no ventre, a cobiça sempre reviverá, como o bebê gigantesco do final de 2001:Uma Odisseia No Espaço.

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