Ano VII

Debi e Lóide 2

quinta-feira nov 20, 2014

debiloide

Debi e Lóide 2 (Dumb And Dumber To, 2014), de Peter e Bobby Farrelly

Piadas de aleijado ultrapassam o bom senso? Vesgos são engraçados? Ver uma gordona cair da cadeira é hilário? A comédia sempre foi sobre diferenças. O insólito causa riso – um homem normal em uma situação insólita ou um homem insólito em uma situação normal, eis o que fará um cavalheiro contorcer-se na cadeira. A questão da diferença é da constituição de toda comédia.

O cinema dos irmãos Farrelly é, em geral, brilhante, quando lida com a matéria-prima apanhada diretamente na natureza, sem qualquer intervenção industrial para melhorar a aparência ou o gosto. Debi e Lóide 2 é justamente isso: um filme exclusivamente sobre comédia, cuja idiotice abstrata não está domada por estrutura apaziguante, em que a careta rococó de Jim Carrey não é envolta por moldura careta. Se seria tolice falar em pureza do gênero comédia, certamente é possível comemorar honestidade artística. Um longa-metragem sobre a loucura, sobre a deformação, sobre espasmos faciais, sobre o grotesco, que não abdica desses valores no terceiro ato só pode ser louvável.

Em um cenário onde boa parte da comédia-norte americana dita “politicamente incorreta” (Judd Apatow e associados, Kevin Smith e outros tantos), faz uma viagem do insólito para a normalidade, e parte sempre para uma busca pela correção, pela norma, traindo, assim, a própria natureza da comédia, negando a exploração verdadeira deste universo artístico, Debi e Lóide 2 é a válvula de escape.

Assim como o a gargalhada – essa explosão de ar e som que nos escapa da boca – ou a flatulência, a comédia é fundamental para a existência humana. Na sociedade atual, que caminha com passos cada vez mais apressados para o corredor estreito da correção, que aumenta ostensivamente as fiscalizações nas fronteiras entre o eu e o outro, desviantes como os Farrelly ganham ainda mais importância na composição de um mundo não homogêneo. Questão de equilíbrio: deus é bacana, mas um pouco de diabo não mata ninguém.

Obra quase conceitual, Debi e Lóide 2 nos oferece logo de saída o passe livre para o riso na piada dos 20 anos, esta hilária declaração de princípios: vale a pena ultrapassar todos os limites, apenas pela graça. Ficar 10 anos fingindo-se de mongolóide seria engraçado. O dobro disso é ainda mais. Tudo pelo timming. Fingindo seguir as regras do filme de estrada e da interstate comedy, muito em voga nos anos 90 e início dos 00 (Entrega A Domicílio e Caindo Na Estrada são dois exemplos óbvios), o filme não tem receio algum em as implodir no momento certo, revelando que tudo não passava de uma grande piada. Curiosamente, é preciso um grupo de velhos – os diretores, os atores – para fazer aquilo que deveria ser prerrogativa da juventude: desrespeitar as regras.

Juventude, aliás, que desaprendeu a trabalhar o corpo na comédia. Boa parte do humor feito por e para jovens, atualmente, é textual. Toda a usina que poderia ser o corpo do comediante é desligada e deixa-se ativa – por falta de talento ou escolha – apenas a boca, que declama textos que causariam o mesmo efeito se ouvidos no rádio. Carrey e Jeff Daniels são engraçados de cima a baixo e, quando o humor depende do texto – a cena do telefonema duplo -, cabe aos Farrelly potencializar o riso por meio da mise-en-scène (campo/contracampo em uma requintada sala de estar: de um lado, os debilóides, sentados nas pontas do sofá; do outro o estabelishment, posicionados eretos no sofá, observando, atônitos os dois homens insólitos ao telefone).

Embora possa ser visto como ofensivo em determinados momentos, o humor dos Farrelly e Carrey/Daniels nunca é cínico ou cinzento. O clima feelgood ao final do filme não é só físico – o riso provoca bem estar. Há algo de libertador, que as cores vivas e as imagens de Harry e Loyde na estrada, durante os créditos finais, ajudam a ilustrar. É quase o tipo de liberdade que se sente ao ver o jardim em Giverny pintado por Monet.  O que importa são as cores e o gesto na tela, não a mensagem. A menção ao pintor francês parece sem proposito? Esse é o ponto.

Wellington Sari

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