Ano VII

Garota Exemplar

terça-feira nov 4, 2014

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Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), de David Fincher

Costuma-se associar a Hitchcock o termo mastermind, conceito que sintetiza a posição do diretor como a força mental que interfere em cada pequeno aspecto do filme, que controla com esmero e precisão os fios que movimentam as articulações da obra. Embora tivesse bastante orgulho desta posição, o inglês tinha certo pudor em, na falta de expressão melhor, abusar do poder. Nas entrevistas com François Truffaut, o mestre lamenta-se por ter utilizado um flashback mentiroso para ludibriar o público em Pavor Nos Bastidores. Hitchcock, o prestidigitador, fazia do truque um caminho para o encantamento – o encantamento do espectador –, e não um retorno que dava no beco sem saída do cinismo. Entidade sagrada, o espectador hitchcockiano, mesmo quando enganado pela mente superior, é um cumplice, não uma vítima.

Logo no segundo plano em que Ben Affleck aparece, em Garota Exemplar, vemos ele carregando debaixo do braço a caixa do jogo de tabuleiro Mastermind. Poucos minutos depois, o protagonista e a irmã-gêmea, a voz da razão do rapaz, como ele mesmo dirá mais tarde, brincam com o Jogo Da Vida, enquanto falam, claro, sobre escolhas da vida. A posição de David Fincher como um mastermind é, portanto, alardeada sem qualquer constrangimento. Neste frio e calculado filme sobre manipulação, sobre o andar de peças em um tabuleiro controlado por uma mão divina, o diretor faz questão de abrir um buraco por entre as nuvens e acenar para o público, com um sorrisinho de escárnio na beira da boca.

A qualidade asséptica da imagem (em todos os seus elementos: presente em diversas cenas, a camiseta-de-usar-em-casa de Affleck, com o logotipo do St. Louis Cardinals, parece ter sido comprada amanhã) e a funcionalidade doentia dos personagens não denotam outra coisa senão  distanciamento e indiferença. Como no xadrez, as peças deste tabuleiro tem movimentos pré-definidos e limitados. Nem mesmo com o assassinato, essa brutal interferência – da vida de um homem sobre outro, do artista sobre a matéria -, há mudança, há desvio. Na sangrenta cena de morte de Garota Exemplar, com seus micro fades na imagem e música atonal na banda sonora, escolhas que negam a catarse e, logicamente, convidam ao distanciamento, o cabelo de Rosamund Pike se desalinha ao fim do ato. Agilmente, a atriz joga a cabeça para trás, sem tocá-lo com as mãos (é proibido sujar as mãos em um filme de Fincher), na tentativa de recoloca-los no lugar. Gesto extremo de desumanidade que provoca risos, pelo tom caricatural. Distanciamento crítico que termina em riso bobo.

Em De Palma e Argento, dois outros célebres masterminds, o personagem, muitas vezes, é apenas uma ideia, um conceito (o mesmo em Hawks e Carpenter, cineastas do músculo, ao invés da massa cinzenta), e se não há necessariamente sangue pulsando em suas veias, certamente há na imagem. A imagem, na dupla Argento/De Palma, está repleta de cor, de movimento, de paixão, de desalinho, de musicalidade. Em Fincher há apenas cálculo e choque. Não são esses valores que fazem uma obra de arte permanecer no tempo. Não são esses valores que fizeram Chris Marker assistir Um Corpo Que Cai mais de 50 vezes.

Garota Exemplar, principalmente da metade em diante, quando os flashbacks mentirosos já foram revelados, passa a expor, por meio de analogias, o próprio fazer cinematográfico, como em Um Corpo Que Cai. Enquanto lá o detetive Scottie, em delírio febril, tenta transformar uma mulher à imagem e semelhança de um “fantasma” por quem se apaixonou vertiginosamente, aqui a personagem/regente de Rosamund Pike conduz a vida de Affleck, moldando-o ao seu gosto, motivada simplesmente por patologia psíquica. Hitchcock, apaixonado por Kim Novak, mostra, através de James Stewart como é o meticuloso trabalho de um diretor de cinema – o cabelo deve estar de tal maneira, o vestido deve ter tal cor. Obsessivo, sim, mas trata-se da visão de mundo de alguém que ama. Já a câmera de Fincher são os olhos azul ártico de Pike, que enxerga tudo como um grande esquema: por vezes, Garota Exemplar parece uma vídeo-aula ministrada por Sid Field e é por isso que em algumas cenas vemos a personagem colando post its com escaletas (“revelar gravidez”, “cometer suicídio”) em um calendário que serve de painel, exatamente o método que guru hollywoodiano recomenda aos aspirantes a roteiristas.  Em uma revisão do longa-metragem, quando já se conhece o esquema e o artifício friamente calculado para surpreender, sobra muito pouco. Quantos voltaram no dia seguinte para ver a privada de Duchamp no museu?

Toda a questão da imagem como veículo para mentira, principalmente a imagem televisiva, outro tema do filme, é sufocada pela vontade incontrolável de Garota Exemplar em, jocosamente, expor suas próprias entranhas – não basta o bar chamar-se O Bar; é necessário colocar na boca de um personagem a fala “que legal, é bem metalinguístico”.  Sendo assim, as passagens que mostram a relação entre Affleck e a televisão, único elemento quente e úmido na grande boneca inflável que é Garota Exemplar, por ter conexão com o mundo e extrapolar a redoma de acrílico confeccionada por Fincher – a conexão acontece na semelhança com um dos maiores escândalos esportivos da história norte-americana envolvendo Lance Armstrong e o dopping, e a calculadamente redentora entrevista dada pelo atleta a Oprah Winfrey -, acabam sufocadas pelo distanciamento inócuo e pelo cinismo. Tanner Bolt, o advogado competente, ao fim do filme, zomba: “vocês são dois malucos mesmo”. E vai embora, rindo.

Depois de toda a psicopatia deplorável que vimos na tela, é isso o que Fincher tem a dizer sobre o mundo atual? Que profundo. Tão profundo quanto uma rodada do Jogo da Vida.

Wellington Sari

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