Ano VII

Sheencalypse Now!

sábado nov 26, 2011

 

Texto: Franklin Ruão

 

A editora norte-americana Bluewater Comics, especializada em quadrinhos biográficos de celebridades, deve lançar em breve Infamous Charlie Sheen. Mas não espere ver esse gibi na seção de quadrinhos encadernados de alguma grande rede de livrarias, onde os aficionados se acotovelam para ler de graça as caríssimas republicações em capa dura de títulos que antes eram encontrados em bancas de jornal por preços bem menores.

Este é apenas mais um lançamento que se aproveita do momento, quando todos os holofotes estão voltados para o polêmico ator.

É claro que Charlie Sheen tem potencial para se transformar em um grande herói dos quadrinhos, rivalizando com Batman, outro playboy milionário que faz o que quer e só acorda às três da tarde.

Toda a atenção que Charlie Sheen tem recebido se deve ao sucesso da sitcom Two and a Half Men, que fez dele o ator mais bem pago da televisão nos Estados Unidos.

Chuck Lorre, que criou a série junto com Lee Aronsohn, desde o início imaginou Charlie como o milionário viciado em sexo e bebida, uma vez que o papel só retratava o cotidiano que o ator já levava há décadas.

Lorre só não imaginava que a criatura se tornaria mais importante que seu criador e, como é de costume nessas situações, tratou de destruir seu filho rebelde.

Enquanto a série ganhava status como sucesso mundial, e Charlie Sheen ficava cada dia mais podre de rico, Lorre se tornava um ressentido, pois projetava no personagem todas as suas fantasias e desejos reprimidos.

Dentro e fora da série, Charlie seguia seus impulsos hedonistas no livre consumo de mulheres, bebidas e drogas em excesso e sem remorsos. Já Lorre era corroído pela culpa e a frustração de ter escolhido ser o irmão fraco e submisso de Charlie, Alan, interpretado na série por Jon Cryer – o verdadeiro alter ego do criador da sitcom.

Lorre e todos os demais frustrados da equipe torciam para que Alan vencesse no final, assim como Bill Gates e Steve Jobs prosperaram apesar de serem frágeis e pouco interessantes.

Aos poucos, Lorre conduziu a série para episódios nos quais Charlie, atormentado e confuso, teve que escolher entre seu estilo de vida ou o casamento e seus malefícios.

O personagem acusou o golpe, enfraqueceu, entrou em depressão, enquanto o papel de Jon Cryer crescia lentamente. No fim, o sangue de tigre e DNA de Adonis de Charlie Sheen falou mais alto, e ele radicalizou com drogas e álcool, deixando claro que não era mais uma das marionetes controladas por Lorre.

Foi a deixa para o chefe descartar ator e personagem, mesmo que para isso tivesse que sacrificar sua galinha dos ovos de ouro, substituindo Charlie por Ashton Kutcher.

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Charlie Sheen tinha por volta de 10 anos de idade quando acompanhou seu pai, Martin Sheen, até as Filipinas para as filmagens do épico de guerra Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. Ele presenciou toda a loucura que foi a produção do filme, incluindo destruição de cenários, mortes, festas selvagens e o ataque cardíaco quase fulminante do seu próprio pai.

Alan (esquerda) e Charlie. Quem você queria ser?

Em 1986, Jon Cryer (futuro intérprete inconsciente de Chuck Lorre) era uma espécie de emo-fashion, que não sabia se ficava com a garota ou com o guarda-roupa dela em A Garota de Rosa Shocking (Pretty in Pink). No mesmo ano, Charlie era o delinquente na delegacia que partia para cima da irmã de Ferris Bueller no também clássico Curtindo a Vida Adoidado, de John Hughes.

Ele ainda arrumou tempo para visitar a guerra do Vietnã em Platoon, também de 1986, e disseminar o lema dos yuppies cocainômanos, “ambição é bom”, em Wall Street – Poder e Cobiça, de 1987, dois filmes de Oliver Stone.

Dirigido e atuando ao lado de ninguém menos que Clint Eastwood, fez Rookie – Um Profissional do Perigo (1990), no mesmo ano em que esteve em um dos primeiros filmes a mostrar a equipe Seal da marinha dos Estados Unidos enfrentando terroristas no Líbano, em Comando Imbatível. Os Seals foram os responsáveis, 21 anos depois, pela eliminação do terrorista mais procurado do mundo: Osama Bin Laden.

Mas, mesmo com esses bons serviços prestados ao cinema adulto, o público volátil preferiu compactuar com os críticos bem comportados no linchamento de Charlie Sheen, agora visto apenas como um ator viciado em reabilitação permanente.

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Eu não me lembro de nenhuma mulher, no seriado ou na vida real, reclamar de receber diamantes e levar a vida na primeira classe ao lado dele. Se os seus detratores tivessem a oportunidade de ter uma mansão no meio da praia e muito dinheiro para gastar, agiriam de modo diferente? Chuck Lorre acredita que sim, e colocou Ashton Kutcher andando pelado para tentar provar.

Com isso, ele destruiu definitivamente a série e a transformou em um programa de menininhas que vão se reunir para fazer as unhas, assistindo Ashton desfilar para elas. O mais surpreendente foram os críticos do sexo masculino que endossaram essa mudança.

Charlie Sheen no papel de Charlie Harper era o homem que todos queriam imitar. As mulheres, por outro lado, desejavam mudá-lo completamente e exibir sua castração matrimonial como um troféu para suas mães e amigas.

No programa Comedy Central Roast de 19 de setembro, Charlie Sheen cravou: “Eu tive tudo no mundo e perdi tudo porque fiz o que todo mundo aqui quer fazer um dia: mandar seu chefe se foder. E ainda estou aqui pra contar a história.”

Ao lado de Tony Soprano e Jack Bauer, Charlie Harper completa a trindade da masculinidade moderna nesses tempos atordoados em que vivemos, quando o pensamento independente é cerceado, e as patrulhas totalitárias rondam em busca daqueles que ainda celebram o prazer de possuir testosterona correndo nas veias.

 

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Franklin Ruão (aka Sargento Mad Dog) é produtor de televisão e sabe tudo de HQ. Se ele fosse um dos Watchmen, seria o Rorschach.

Fale com ele: frank_ruao@yahoo.com.br

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