Ano VII

Relatos Selvagens

domingo out 26, 2014

 Relatos_Salvajes_Al_MC

Relatos Selvagens (Relatos Salvages, 2014), de Damián Szifrón

Acompanhar festivais é, de alguma maneira, uma tentativa de encontrar preocupações estéticas e temáticas semelhantes entre os realizadores envolvidos. Uma busca facilmente detectada, já há um tempo em voga, é a intenção de uma série de filmes que pretendem constranger o espectador, talvez influenciados pelos lados menos louváveis das filmografias de Roman Polanski, Lars von Trier, Michael Haneke, Ulrich Seidl e Todd Solondz (este, definitivamente, sem qualquer lado mais louvável). A tática destes (às vezes) jovens cineastas é, normalmente, aquela de criar um universo bastante limitado, moldado à revelação de um mundo corrompido, no qual personagens patéticos são colocados em situações-limite para, assim, revelarem-se ainda mais boçais. Esta poderia, sem dúvida, ser a sinopse de qualquer uma das seis histórias buriladas por Damián Szifrón, nestes “relatos selvagens” sobre vingança e relações de poder.

A elas: em um avião, passageiros percebem todos terem alguma relação com aquele que (spoiler!) é o comandante do voo; numa lanchonete de beira de estrada (muito mais americana do que qualquer outra coisa, bem condizente com sua pitada à Tarantino, jamais economizada, aqui e nos outros episódios), a garçonete percebe que seu único cliente é o político, corrupto, responsável pela morte de seu pai; em um Audi – neste filme que parece um comercial para a televisão –, o motorista babaca (“coxinha”, para usar um termo irritantemente na moda, nestas vésperas de eleição presidencial), xinga o condutor de um carro velho, que não lhe deixa ultrapassar. Ao finalmente fazê-lo, põe pra fora seu arsenal de preconceitos e injúrias. Momentos depois (spoiler?), o pneu de seu sofisticado automóvel alemão fura; Ricardo Darín é um técnico em explosivos que tem seu carro injustamente guinchado. Disposto a fazer seu direito prevalecer, acaba por perder o emprego e a mulher, e começa a pôr em curso sua desforra; filhinho de mamãe, bêbado, atropela e mata, com sua BMW, uma grávida. Para preservá-lo, papai faz uma proposta que o jardineiro da família não poderá recusar. Entre eles, advogados e a mídia fecham o círculo vicioso; por fim, a última e mais detestável, onde uma noiva, em plena festa de casamento, descobre que seu recém-marido a trai com uma colega de trabalho, convidada à cerimônia. Roupa-suja (de sangue, evidente), sexo para retaliação, escatologia, enfim, o pacote completo: o resumo definitivo do que testemunhamos até então.

Em comum entre toda a meia dúzia de incidentes, pequenas reviravoltas à medida para tornar os envolvidos, imbecis. Tal tática pode ter por intuito fazer com que o realizador pareça esperto, cabendo aos espectadores, acuados, achar graça dos desastres de seus fantoches, tornando-se, assim, também eles superiores à degradação exibida. A isto, normalmente coloca-se o rótulo de humor-negro quando, na realidade, está mais para uma coletânea do CQC em seus momentos “testes do limite do humor”.

Àqueles fãs de algum dos nomes acima mencionados (incluindo o humorístico da Band), temos, nesta 38º Mostra, um dos poucos realmente talentosos cineastas adeptos desta fórmula: ainda que Força Maior esteja longe de ser um grande filme (na realidade, Sem Querer, exibido alguns anos atrás e, sobretudo, seu curta-metragem, Händelse vid Bank, são consideravelmente mais impactantes), Ruben Östlund consegue – através de uma decupagem que mistura Bergman com virais do YouTube – fazer de seu cinismo algo com o qual nós podemos, de uma maneira ainda que constrangida, nos sensibilizar. Em Szifrón, ficamos (ou melhor, deveríamos ficar) apenas contentes, nos sentindo nobres diante aos personagens/gados, que seguem ao abate, sob os comandos de tão sábio e impiedoso artista/juiz.

P.S.: Relatos Selvagens foi o escolhido para abrir a Mostra. Segundo amigos presentes durante a cerimônia, provocou risos histéricos e, ao final, aplausos entusiasmados. Fui a uma única abertura, cuja exibição fora de O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira. Pouco preocupados com o elenco presente, parte considerável dos convidados se retirou nos primeiros minutos da projeção e, nos próximos instantes, a debandada só fez aumentar. Tal comparação deve explicar algumas coisas, entre elas, os títulos que nossos exibidores escolhem para abastecer nosso circuito. Sobre isto, Relatos Selvagens já está em shoppings por toda a cidade e é recorde de bilheteria na Argentina, além de ser o escolhido daquele país para pleitear uma vaga entre os indicados ao próximo Oscar – dado este que deve interessar demais ao público-alvo desta produção e, a ele, venho a tranquilizar: o filme já me parece um dos favoritos à estatueta.

Bruno Cursini

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br