Ano VII

Permanência

quarta-feira jun 3, 2015

permanencia

Permanência (2014), de Leonardo Lacca

O leitor desta revista sabe dos meus problemas com o cinema pernambucano recente. Aliás, problemas que tenho desde Baile Perfumado. Os filmes do estado, a meu ver, promovem gradações de transgressão calculada, tendo como um norte inconsciente, ao que parece, o cinema de Cláudio Assis. Mesmo os mais interessantes, como O Som ao Redor, caem em presepadas como a da “Veja fora do plástico” – pregação para convertidos que se revela cada vez pior com o tempo e a revisão. Em todos que vi, e vi muitos filmes pernambucanos, percebo uma incompetência geral ou parcial com as possibilidades mais dramáticas das narrativas, quando não um desprezo completo.

Em Permanência, Leonardo Lacca consegue evitar muitos desses problemas, em grande parte graças à dupla de atores principais, Irandhir Santos e Rita Carelli. Ele já é um monstro da atuação, e já está até na perigosa fase de interpretar ele mesmo. Ela é relativamente desconhecida, tirando alguns curtas, e podemos dizer até que faz frente ao trabalho dele. Ou mais, dá a impressão de comandar o tom do filme, com seu próprio tom hesitante, um tom que é da personagem, e que torna impossível imaginarmos uma outra atriz para o papel. É um mérito dos atores, e do diretor, de se ausentar parcialmente para permitir que eles brilhem, ou seja, saber que tem nas mãos um filme de ator.

Irandhir interpreta Ivo, um fotógrafo que viaja para São Paulo por causa de sua primeira exposição individual. Ele nega a oferta de um hotel e aceita hospedagem na casa de sua antiga namorada (Rita Carelli), que agora está casada com um descolado paulistano.

A principal linha de força do filme é, então, a história entre os dois, que, percebe-se, não terminou. Ele é fotógrafo, tudo indica que deve levar uma vida despojada no Recife. Em São Paulo, as coisas lhe parecem pesadas, o ambiente, hostil. A imagem das escadas rolantes no metrô reforça a impessoalidade que é marca da metrópole (ou uma das marcas). Existe, claro, o lado pernambucano zoando sutilmente os paulistas. A zoeira, parte fraca do filme, por aproximá-lo ao lance da “Veja fora do plástico”, está mais no personagem do marido, Mauro (Silvio Restiffe), uma caricatura da classe média descolada que se vangloria do consumo em viagens internacionais, e na dona da galeria (Sabrina Greve), típica sabichona do mercado de artes. Esses dois personagens representam o cerco à vontade que Ivo tem de assumir sua paixão e mandar tudo (convenções, instituições, exigências profissionais) às favas. Sua única cúmplice, podemos dizer, é a assistente da galeria, com quem tem uma transa solta, livre, e o apoio discreto na hora em que a dona da galeria pede para que uma foto dele fique fora da exposição (um mero capricho para mostrar uma suposta visão de conjunto, ou seja, um blefe sustentado pela posição social).

Existem contraposições tolas, como a que coloca em lados opostos o marido moderninho que trabalha com o olho no notebook branco e o fotógrafo do analógico, do filme, que só vê sentido no material frágil e leal. Ou a da entrega sexual de Ivo, homem sensível, em relação à transa mecânica de Mauro. São contraposições que, pela sutileza dos atores, não incomodam tanto, mas revelam certos esquematismos de roteiro.

Mas são os sentimentos represados, não ditos, embora sentidos plenamente, sentimentos que dão conta de uma série de impedimentos contornáveis, mas dificilmente sem um grande trauma, que podemos reter de Permanência (Ivo também está casado, afinal, e seu choro enquanto fala com a esposa ao celular é um dos momentos fortes do filme).  Rita pode ter balançado com a chegada de Ivo, mas não abandona a segurança da vida burguesa em prol de uma aventura com o maluco beleza do Recife. E Ivo, bem menos, ou quase nada maluco beleza em São Paulo, não teve coragem de dizer mais claramente o que sente. Se é que ele tem essa clareza dos próprios sentimentos, porque uma das melhores coisas do filme é justamente a dúvida e a incerteza passional como motores do drama.

Leonardo Lacca faz assim sua estreia em longas. Uma estreia insegura, tateante, simples (por vezes até simplória) e de grande entrega. Está, de certo modo, na contramão do cinema pernambucano atual, porque pensa em dramaturgia, ainda que vários nomes que fazem parte da cena apareçam nos créditos, apadrinhando de alguma forma este primeiro longa, e ainda que parte dos procedimentos desgastados (porque trabalhados de forma insuficiente ou programática) que relatei no balanço do Festival de Brasília de 2014 sejam sentidos em poucos momentos. Aqui, ao menos, há frescor, e uma consciência maior do que o drama pede.

Sérgio Alpendre

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