Ano VII

Foxcatcher

terça-feira jan 20, 2015

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Foxcatcher – Uma História que Chocou o Mundo (Foxcatcher, 2014) de Bennett Miller

 

Something so horryfing it’s a relief: normal life falls away.

Truman Capote (Philip Seymour Hofman) em Capote (2005), de Bennett Miller

 

Logo no início de Foxcatcher – Uma História que Chocou o Mundo, de Bennett Miller, o personagem de Mark Schultz (Channing Tatum) encara fixamente sua medalha de campeão olímpico, após uma desconcertada apresentação motivacional para uma plateia infantil em um colégio. O plano dessa medalha e o seu deslocamento de sentido – definitivamente não se trata de uma celebração do sucesso e sim de entrever uma fratura na elegia de poder e vitória desse símbolo – irá repercutir e se adensar em cada cena, em cada momento posterior do filme.

Após ser convidado pelo magnata John Du Pont (Steve Carell) para formar uma vencedora equipe de luta greco-romana, Mark vai estender o convite ao irmão, David Schultz (Mark Ruffalo). Mark fala com entusiasmo sobre o inflamado discurso de Du Pont acerca da recuperação de uma força quase mitológica da civilização americana, em uma década marcada pela disputa ideológica com a URSS e pela doutrina neoliberal de Reagan-Tatcher. O entusiasmo emanado por Mark soa, tal como a imagem da medalha, tão contraditoriamente melancólico, inseguro e sem qualquer respaldo na realidade.

Foxcatcher é um filme sobre a perversidade que habita o processo de construção de sentido da imagem, através dos signos que a perscrutam e procuram lhe conferir sentido. Três personagens são postos em cena para encarnar e perseguir essa (quase) minuciosa análise: Mark (Tatum), seu irmão David (Ruffalo) e o magnata que os assedia, Du Pont (Carell). Este último é quem primeiro irá dar as cartas do jogo, a figura central de todo o processo. É também quem encarna de forma mais visceral essa falta de respaldo de sentido, falta de lastro para o signo que conclama para si mesmo – tornando-se tragicômico em cenas como na qual a mãe (Vanessa Redgrave) vai assistir aos treinamentos ou quando se encontra completamente deslocado no momento em abana Mark com uma toalha, ao mesmo tempo em que o lutador está sendo veementemente derrotado nas olimpíadas.

Vivenciar, encarnar, enfim, encenar tragicamente os efeitos dessa falta de lastro no sentido, desses falsos signos de poder evocados é um ponto crucial em Foxcatcher. Nunca se trata de uma relação irônica, uma pseudo-semiótica distanciada e cool acerca da falência da mitologia americana evocada por Du Pont e abraçada por Mark, quando do convite no início do filme. É necessário percorrer cada centímetro da linha trágica dessa história, cada segundo em que um signo é aniquilado e outro como farsa surge novamente (lembremos do momento em que Mark, irredutível, resolve abandonar Foxcatcher e seu irmão David replica quase a mesma fala de Mark no início, tentando explanar seus motivos para aceitar a proposta de Du Pont). A tragédia se consuma, por fim, na espantosa sequencia em que não há mais espaço nem sustentáculo para os simulacros dos falsos signos: Du Pont saca um revólver, pergunta se David possui algo contra ele e à queima roupa o assassina.

A metamorfose encarnada por Steve Carell é a materialização suprema do descompasso violento apontado pelo filme. Longe de ser um mero tour de force de interpretação, envolvendo intenso trabalho de maquiagem e reconstituição de personagem verídico (tão ao gosto das mais variadas “premiações”), vê-se sobretudo um trabalho que deixa em evidência as diversas camadas físicas que constituem e se aglomeram no corpo de Carell – o nariz marcadamente falso e as diversas cenas em que ele aparece em trajes esportivos (principalmente naquela em que Du Pont está disputando um campeonato amador de luta greco-romana) não nos deixam mentir. As dubiedades e falsidades dos simulacros que Du Pont tenta encarnar já estão impressas em seu próprio corpo.

Em Capote (2005), observava-se a gênese de uma forma de narrar os fatos que se mostrava possível – no final, necessária – mesmo diante da mais pura irracionalidade brutal e inexplicável do real. Através do torturado personagem encarnado por Philip Seymour Hofman, entrevia-se o conturbado surgimento desse olhar que finalmente se mostra capaz de habitar e dar conta de algo que outrora soava simplesmente disforme, angustiante, desesperador, fora do alcance do relato. A arquitetura de Foxcatcher não mais nos permite entrever um gradual e conturbado surgimento de qualquer coisa que seja: temos um incessante processo de enunciação-evidência de um falso e violento signo de poder que deseja habitar a imagem, e a sua conseguinte destruição. Essa é a sua angustiante tragédia, que não poderia nos deixar senão em terrenos tão inóspitos, como a gélida paisagem na qual a polícia prende e arrasta Du Pont ou o octógono envolto em espetáculo e por uma multidão ensandecida, onde Mark tenta novamente encarnar um signo de potência – já desgastado, já melancólico, já impotente.

Guilherme Savioli

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