Ano VII

O Homem Mais Procurado

quinta-feira out 9, 2014

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O Homem Mais Procurado (The Most Wanted Man, 2014), de Anton Corbjin

Em “Como Funciona o Romance”, o crítico James Wood, ao comentar sobre aspectos do realismo na literatura contemporânea, transcreve uma passagem de um livro de John Le Carré.  No trecho, leem-se frases como estas: “Na praça da estação, após repetidas tentativas de encontrar alojamento, acabou num hotel velho e estreito com um elevador onde só cabiam três pessoas”. E ainda: “(…) numa garagem subterrânea, cujos alto falantes tocavam Beethoven”. Segundo Wood, é inegável a habilidade do romancista em narrar com eficiência. O cuidadoso uso dos detalhes banais confere à ficção um caráter realista, uma vez que nos faz lembrar “como o mundo é”. Ou seja, trata-se de utilizar determinada técnica, que, pela repetição, transmuta-se em convenção.  Há o realismo (alcança-se pela técnica) e há a verdade (alcança-se pelo gênio).

O crítico, então, explica que existe, sim, a técnica realista em Le Carré, porém, falta qualquer vestígio de genialidade que consiga chamar atenção por trás da malha de convenções. Tal sistema de convenções, provou-se, historicamente, bastante lucrativo e é nele que a maioria dos escritores de best-sellers se sentam para bater à máquina ou teclar ao computador. Wood menciona rapidamente o cinema comercial como exemplo bem acabado de um grupo de convenções. Ele não cita, mas sabemos que está falando da decupagem clássica hollywoodiana, conjunto de regras que domina a indústria há décadas.

É possível fazer uma leitura do novo filme de Anton Corbjin a partir das questões colocadas por Wood (não utilizo a expressão “leitura” como sinônimo de “análise”, uma vez que, como escreveu Tag Gallagher, lemos livros e partituras. Filmes, vemos;  a escolha da palavra certa é tão importante quanto o posicionamento da câmera). Baseado no livro homônimo de Le Carré, O Homem Mais Procurado é um thriller eficiente, tecnicamente impecável, repleto de atores de peso e temática atual. O personagem principal, Bachmann, todos conhecemos: “detetive” durão, de passado traumático, envolvendo uma missão falha, que fuma tanto quanto é sagaz, que bebe tanto quanto é cínico, insubordinado e entusiasta de métodos poucos ortodoxos. Em um hipotético manifesto que pretendesse acabar com as convenções dos romances de espionagem – e, assim, transformá-los em outra coisa – um dos primeiros tópicos, seriam: “Protagonista não pode ter vícios de qualquer tipo, deve ter passado harmonioso e, se possível, deve ser ligeiramente obtuso”. Tal manifesto, inspirado no ensaio de Cyril Connolly sobre convenções na literatura, ainda não existe.

Bachmann, essa coletânea de clichês, também não existiria como pedaço de vida, adornado com toques de banalidade realista, nos vários planos em que aparece puxando a carteira de cigarro do bolso da jaqueta marrom, ou quando enche um copo com scotch e tamborila os dedos na mesa. Ou, ainda, no momento em que, antes da missão derradeira, senta ao piano e as mãos, que antes só foram mostradas como extensões do cigarro e da bebida – do vício, portanto – passa a deslizar pelas teclas, extraindo virtude das pontas dos dedos.  Bachmann não existiria, não fosse o cinema superior à literatura quando se trata da convenção.

A estrutura convencional no romance, o clichê, o olhou de soslaio para as pernas da Srta. McCalister e notou que elas pareciam duas placas de aviso indicando perigo, é como uma parede intransponível. O clichê, a metáfora gasta, impede a passagem do leitor para um conhecimento que está além da denotação das palavras. Uma obra de arte literária (ou qualquer obra de arte) nos apresenta dois mundos: o real e o criado pela obra em questão. Uma metáfora brilhante nos faz ver aspectos do mundo que nos pareciam inéditos, mesmo que já o tenhamos vistos antes. Por trás do Bachmann de Le Carré, só há uma página em branco. Por trás do Bachmann de Corbjin, há uma prédio de arquitetura incrível, uma rua com belas flores, uma bela figurante, um sopro de vento que balança as folhas da árvore e chega aos cabelos de Philip Seymour Hoffman. Finalmente, o ator: mesmo dentro da convenção, das regras literárias e cinematográficas, há espaço para a inquietação e o mistério que as palavras em um pedaço de papel não possuem.

Se, no papel, é possível que Bachmann tenha tamborilado na mesa enquanto engolia seu scotch e pensava em tudo aquilo que havia dado errado em Beirute, frase essa que permanece a mesma nos diversos romances de autores diferentes em que já a encontramos, na tela há o olhar cansado de Hoffman, sua franja que ora revela, ora esconde as entradas na testa, a respiração errática, que parece estar em desarmonia com o tom introspectivo de determinadas cenas, há o suor. As palavras soam sempre iguais, não importa a quantidade de esforço empregado pelo escritor para fazê-las se encadear de maneira esperta. Palavras nunca suam. Nunca salgam sua impecável aparência. Não há buracos que permitam ver o outro lado, na parede bem acabada que é o romance comercial contemporâneo.

Em Hoffman, há, sim, buracos, lacunas, mistérios e, não por acaso, um deles acontece por trás: sentado em um bar, junto com uma espiã da CIA, o ator conversa tranquilamente sobre a missão. Ao fundo do plano, um casal começa a discutir e o homem acaba derrubando a companheira. Subitamente, Hoffman se levanta e dá um soco no homem, para, em seguida, tentar levantar a moça, que recusa a ajuda e logo se abraça ao companheiro. Bachmann parece não compreender o que aconteceu, e volta à mesa. Longe de se tratar de um alívio cômico, a cena retrata o jorro de violência que desde o início do filme estivera presente no protagonista, escondida por trás dos gestos cotidianos. Em meio à cortina de fumaça do cigarro, havia algo atormentador, mas, não era possível entender exatamente o quê. O rompante de violência revela muito mais sobre esse homem – e sobre os homens em geral – do que psicologismos literários, justamente por não haver qualquer explicação para o ato.

Outro tipo de explosão raivosa aparece na sequência final, quando a trama elaborada por  Bachmann é surpreendentemente frustrada. Depois de sair ligeiramente atordoado de um carro que acabou de receber o choque de outro veículo, o ator para no meio da rua. Sem qualquer aviso, o espião grita palavrões, com o corpo contorcido em raiva, os cabelos agitando-se descontroladamente, a artéria no pescoço pulsando protuberante. A fumaça do cigarrinho reflexivo de antes é agora o fogo do desespero. E então o personagem simplesmente vai embora. Dirige por algumas quadras, com a câmera sempre próxima ao rosto, estaciona e sai andando para fora do quadro. Sobra um quadro vazio, esta convenção que, aqui, parece o vestígio de uma fuga – a fuga daquele que não aguenta mais. A página, depois de inscrita pela palavra, transforma-se em uma parede de tijolos. Já o plano é uma espaçada cerca de madeira, que, neste caso, foi incapaz de conter o ator.

Wellington Sari

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