Ano VII

O Protetor

quarta-feira set 24, 2014

O Protetor (The Equalizer, 2014), de Antoine Fuqua

Denzel Washington é sempre muito bom em interpretar personagens que olham para si mesmos. Personagens introspectivos, que, invariavelmente, terão, seja qual for o filme, uma breve cena de reflexão, em que o ator encarará algum ponto invisível, enquanto encosta, muito discretamente por trás da boca fechada, os dentes superiores nos lábios inferiores. Este olhar para dentro é, quase sempre, dirigido às cavernas do passado.

Em O Protetor, não é diferente. Bob (Washington) é um homem misterioso e metódico. O primeiro plano do filme, em que a câmera traça um caminho por entre os cômodos limpos e organizados do pequeno apartamento, nos apresenta um desenho bastante preciso da personalidade do personagem.  Acompanhamos sua rotina, que envolve trabalhar em uma loja de produtos para casa e constantes visitas durante a madrugada  em um dinner 24 horas, onde lê livros e conversa com Alina, uma prostituta russa com idade para ser vendida como virgem pelos empregadores mafiosos.  Há, claro, no meio destes afazeres, cenas de olhar interior.

Superficialmente, não é difícil lembrar de Travis Bickle ao vermos Bob.  A introspecção quase patológica, o trabalho braçal e, o passado conturbado e, principalmente, a relação com a comunidade, são características essenciais em ambos os personagens.  Assim como na obra de Scorsese, Antoine Fuqua gasta certo tempo para estabelecer o que é a comunidade em que vive o personagem. Os lugares que frequenta as pessoas com quem tem contato: para que Bob, mais tarde, se torne o amigão da vizinhança, é preciso que entendamos perfeitamente as virtudes e fraquezas daquela região. Para que notemos, também, a força do personagem, é necessário lhe conferir fragilidade e é fundamental que isto esteja ligado, de algum modo, ao espaço.  A fragilidade (ou, aparente fragilidade) de Bob é exposta, literalmente, através do vidro do dinner. A câmera, de tempos em tempos, enquadra Washington do lado de fora do estabelecimento. Desprotegido e solitário, o personagem é facilmente acessível a qualquer tipo de perigo que lhe possa ocorrer (o que, de fato, acontece, em determinado momento chave de O Protetor).

Bickle é acessível, igualmente, através da janela do carro, no longa de 1976. No entanto, a atividade principal do taxista é vagar pela comunidade e observar a metástase a corroer as células da cidade. Seu olhar, ainda que se fixe em pontos determinados (o cafetão, as putas, a bela moça loira que ele vê através do vidro trabalhando para o político), é macro, pois vaga pela cidade, a diagnosticar a doença nas ruas. Já o olhar de Bob é micro, é voltado para dentro ou, no máximo, para as letras nas páginas dos livros que lê com grande dedicação. Tal diferença é pautada pelos ideais políticos de cada época: nos anos 70 ainda era possível pensar em mudar o mundo, ou, no mínimo, a América (mesmo que por meio da violência delirante, sequela deixada pelas doenças degenerativas que foram a Guerra do Vietnam e os governos de Richard Nixon). Atualmente, a visão totalizante foi trocada pelo self. Ao invés da foto em grupo, temos a selfie. Por isso então que Bob, um ex-agente que trabalhava para o governo (e, provavelmente, tomava conta do mundo), passa a querer salvar apenas aqueles que se relacionam com ele. Seu instinto de justiça está muito mais próximo da autodefesa do que do altruísmo ou do senso de indignação provocado pelas mazelas do mundo.

É no modus operandi do protetor que todas as questões relacionadas ao olhar vão convergir.  Quando em ação, o personagem de Washington decupa o espaço em uma série de planos detalhe – a arma do bandido, o objeto cortante ao alcance etc -, enquanto coloca o tempo em suspensão, até explodir em violência. Mas, assim como o constante olhar para si mesmo do mundo atual, ou, o olhar em detalhe traduzido nas selfies e nas fotos de comida ou objetos pessoais postadas no Instagram, a câmera de Foqua/olho de Washington nada capta além de imagens banais. Não há revelação, não há vestígios verdade, ou índices da mentira, não há epifania, não há ordenação do caos, não há, por fim, beleza. São imagens puramente funcionais, simples escadas de concreto cinzento que levam à violência – filmada de maneira igualmente desinteressante, pois o gesto é borrado pela montagem acelerada, a expressão do rosto é escondida pela fotografia que privilegia as sombras e a coreografia das lutas se mostra como uma dança macabra e espasmódica, ao invés de fluida e celestial, como se poderia esperar de um personagem que é quase um anjo, ou se não tanto, tem hábitos de monge, como nota um dos capangas do vilão.

A violência, um dos mais sublimes degraus da arte, não passa de uma mera caverna escura quando o olhar tem hipermetropia.

Wellington Sari

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