Ano VII

Dia 1: Da nobreza do tema (Sem Pena)

sexta-feira set 19, 2014

Dia I – Da nobreza do tema (Sem Pena)

por Heitor Augusto

Um desafio lidar de maneira mais detida e menos apressada com um filme como Sem Pena. Primeiro, pelo condicionamento próprio de uma exibição em festival de cinema: qualquer tipo de reflexão será sempre incompleta. Lidamos com muitos filmes num espaço curto de tempo: numa cobertura desse tipo, faz-se uma leitura condicionada pelas circunstâncias.

Segundo porque existe uma urgência no tema (as causas endêmicas de um aumento vertiginoso e vergonhoso da população carcerária no Brasil). Como crítico, privilegiar um olhar com mais calma para um filme que quer acender o sinal de alerta no espectador parece até andar na contramão – ouço vozes imaginárias que dizem “mas não vês a nobreza do tema?”. Mas me parece necessário, para uma tentativa de reflexão séria, dar ao menos um passo para trás e pensar o filme como tal, respeitar e recuperar o que aconteceu na experiência de assisti-lo.

Sem Pena cerca-se de exemplos, vozes e personagens que escancaram não só como o sistema prisional não deu certo, mas os porquês que conduzem à morosidade, burocracia e preconceito, indo desde o contato do policial na rua até ao final da equação viciada, o cárcere. Relatos kafkianos de tão absurdos e um destrinchamento detalhado, por meio de entrevistas, de todos os entraves que colocam o sistema carcerário em xeque. Presos (com ou sem culpa, com ou sem exagero da pena), ex-presidiários, desembargadores, defensores públicos, filósofos compõem o painel de discussão.

Isso intercalado por um olhar que tenta estabelecer uma atmosfera de desconforto agudo. Recorre-se aos traços sonoros de John Cage, um cara que tem uma visão bastante particular de música, som, silêncio, ruído, ritmo. “É preciso que você acorde”, parece querer dizer o filme no uso ostensivo dos sons de Cage e em um outro enquadramento mais criativo (a panorâmica dos encarcerados andando em círculo).

Tudo isso posiciona Sem Pena como um filme com o qual se tem respeito pela existência justamente porque estabelece um debate difícil de se colocar – o senso comum está aí à espreita para berrar que “bandido é tudo vagabundo” ou “se não tivesse feito coisa errada não estaria na cadeia”. Todavia, não se pode deixar de registrar que assisti-lo é uma experiência aquém, incompleta. Como espectador, não há nada a que se completar, a caminhar em direção ao filme, apenas aguardar que ele faça suas elaborações. É uma relação quase de mão única: o filme diz e nós os ouvimos.

Não há lacunas a serem preenchidas. Nem possibilidades dialéticas na relação de ida e vinda ao filme. Como espectador, há pouco a se fazer, é pequeno o espaço de ação. Resta apenas sentar-se na poltrona e ouvir as afirmações do filme. Não existe muito o que se possa completar ao filme, pois ele já está inteiramente cercado de vozes, andando numa linha reta e dizendo para cá, para os que lhe assistem, “vou te despertar”.

Fico com a ressalva de que esse filme foi e será mais bem recebido pelo que diz, por ter uma visão progressista do tema, não pelo que é como filme ou pelo tipo de experiência que provoca. De que na trajetória de Sem Pena daqui para frente haverá um ruído em apontar ressalvas num filme que, por ter uma perspectiva de esquerda, muito possivelmente ganhará adesão (vide as calorosas palmas ao final da exibição no Cine Brasília).

Ainda assim, é imprescindível fazer a ressalva, ouvir o ruído na incompletude da experiência. Senão embarcamos num adesionismo nada frutífero ao se pensar o cinema brasileiro.

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