Ano VII

Homem das Multidões

quinta-feira ago 7, 2014

O Homem das Multidões (2013), de Cao Guimarães e Marcelo Gomes

Um ato de espiar norteia O homem das multidões desde a sua primeira imagem. A janela de projeção quadrada – que prontamente identifica-se com uma foto 3×4 – espia um plano geral em desfoque, em contornos nítidos, entra no primeiro plano Juvenal (Paulo André), que, junto com Margô (Sílvia Lourenço), será a matéria-prima da qual o filme buscará extrair sua principal temática: a solidão nas metrópoles contemporâneas.

Os planos seguintes reafirmam o ato de espiar como força motriz do olhar para seus personagens: Juvenal caminha imerso em meio a uma multidão, depois caminha sozinho, à noite, por uma rua, e assim por diante: o imperativo de um olhar no qual a languidez se instaura progressivamente, no qual os raros e vagarosos movimentos de câmera em seus planos reafirmam a todo momento um olhar quase voyeurístico, distanciado e curioso para com esses dois seres que circulam pelo quadro. Reside aí a grande aproximação do filme com o conto homônimo de Edgard Allan Poe, no qual foi livremente inspirado: em Poe, esse olhar, que ganha contorno claramente obsessivo, é identificado com a voz do protagonista; no filme de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, se há algum resquício desse olhar, ele é atribuído à câmera que narra, à nossa visão, e não propriamente à de seus personagens.

O tom feérico do conto de Poe é sedimentado na languidez desse olhar, que aos poucos substitui uma matéria pulsante, ambígua, capaz de dar conta da evidência dessa solidão, por um olhar que apenas constata, media, através dessa janela que espia – realiza-se uma demonstração quase precisa dos arquétipos solitários. Operação evidenciada – metaforizada quase – no plano em que Margô sai do apartamento de Juvenal: a câmera a acompanha da sacada do apartamento e sutilmente vai realizando um movimento rumo a cidade. Por um breve instante, pela breve identificação com um plano subjetivo de Juvenal, há um deslocamento poderoso de Margô – o afeto truncado que tirará Juvenal de sua zona de conforto – para a cidade: a mise en scène que até então demonstrava, por fim parece evidenciar algo que brota intrinsecamente de sua matéria e da relação entre suas principais figuras. Mas a câmera termina enquadrando o rosto de Juvenal ainda a observar: resigna-se, tudo permanece no nível do mediado, do demonstrativo e explicitado.

Sua janela quadrada realiza uma amputação no quadro, uma sugestão de um movimento centrífugo no qual algo está a habitar, a espreitar pelo fora-de-campo. O movimento, contudo, que impera em O homem das multidões é centrípeto, já que toda a solidão representada está supostamente contida em seu campo, em sua observação lânguida, contínua e amenizada. O retorno ao rosto de Juvenal, no plano acima descrito, é o símbolo dessa contradição do olhar – e do ato de espiar que o norteia – que a tudo deseja conter e explicar, mas que no fundo se sabe insuficiente (a amputação do quadro, o apontamento para o fora-de-campo), sem contudo abrir mão dos estilemas visuais-narrativos fechados em si, impermeáveis, catalisadores de breves e insistentes momentos (uma situação repetida algumas vezes: personagens enquadrados através de vidros que contém algum reflexo, uma virtualidade com a qual não conseguem se relacionar efetivamente) que por chamarem a atenção para si não possuem a generosidade de conceber algo do qual são incapazes de dar conta.

Guilherme Savioli

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