Ano VII

Amar, Beber e Cantar

terça-feira ago 5, 2014

Amar, Beber e Cantar (Aimer, Boire et Chanter, 2014), de Alan Resnais

Alain Resnais morreu em março, aos 91 anos. Seus últimos filmes, Vocês Ainda Não Viram Nada e este Amar, Beber e Cantar, mostram, como acontece também com os últimos filmes de outros veteranos, Manoel de Oliveira e Godard, por exemplo, uma valorização maior da palavra e uma depuração da encenação em detrimento a uma narrativa mais complexa.

Pode-se pensar – e não me parece de todo errado o caminho – que a idade, o amadurecimento, leva a atalhos, torna mais apurada a forma; por outro lado, há também a facilidade de produção, tendo em vista a questão da captação de recursos, ainda que sejam cineastas geniais, e também a capacidade física do cineasta de dar conta de toda a estrutura de um filme maior. Mas essa opção pelo filme menor, mais centrado no texto e na fábula, parece apontar também para uma crise da linguagem – e o título do novo Godard que ainda não chegou por aqui é também sintomático.

Num mundo sobrecarregado de imagens cuja carga simbólica pornograficamente tudo e nada diz; Resnais, Manoel de Oliveira e Godard, cada um a seu modo, tratam da essência, do verbo, da palavra e dos sentimentos e imagens mais primitivos, algo que Bressane faz, de certa forma, por aqui também.

Resnais radicaliza isso em Amar, Beber e Cantar; ele despe a imagem de tudo o que pode se sobrepor a ela, trazendo para frente da tela a matéria bruta. O cenário teatral e o fundo primário dos monólogos em plano americano só reforçam esse projeção, esse descolamento entre expressão e conteúdo para destacar a matéria. No caso de Resnais, a matéria do filme é a mãe de todas as interrogações humanas e a nossa maior certeza: a morte. Ainda que saibamos desde sempre que morreremos um dia, é esse o nosso maior temor.

No filme, a morte é projetada na e pela figura de George, personagem que jamais aparece, ainda que todo o filme gire em torno dele. George morrerá em breve devido a um câncer terminal e os amigos o colocam numa peça amadora de teatro para que o fim lhe seja mais suave.

A peça está no filme, mais precisamente no avesso do filme, assim como George, que não aparece, mas é todo o filme. O filme de Resnais é grande mais pelo que não nos mostra, pelos offs, do que pelo que está na tela. Vemos os personagens atores se preparando para os ensaios, mas estes ensaios só acontecem quando os atores adentram pela porta dos cenários cuja cenografia é muito simples, propositadamente primária. Toda a ação do filme se passa nos espaços exteriores das casas, na frente delas. Temos uma divisão clara de espaços, que só será quebrada no final do filme, entre exterior e interior. Ela obviamente remete a essência e a aparência, mas, mais que isso, implica em pensar na relação entre arte, cinema e teatro, e vida, como desdobramentos de um mesmo jogo ou de uma mesma peça. Algo que desde sempre conferiu muito status às manifestações artísticas, mas implica (plica em latim significa dobra, face ou prega) em ver a vida como uma representação das nossas vontades apenas – nada mais schopenhaueriano.

O filme / peça se desdobra nesse aspecto em várias possibilidades.

A leveza enorme do cenário e as passagens de um espaço físico a outro, quase musicais – minha namorada lembrou ao final do filme que as personagens pareciam que iam cantar a qualquer momento -, remetem a um filme que parece artificial e bobinho até, mas que, na verdade, se desdobra num filme extremamente duro ao expor a fraqueza dos personagens enredados diante da dolorosa consciência da morte, não só a de George, mais certa e próxima, mas a deles também.  

Outra possibilidade está relacionada àquilo que interpretamos, a peça que vivemos, e a vida real, aquilo que somos. No filme, a interpretação da peça aos pouco começa a revelar a verdade dos personagens. Verdade em relação aos casais, suas relações familiares, seu passado e suas dores em relação ao presente. Todas essas revelações se dão à medida que George, ou a morte que se aproxima, começa a dar as cartas, ainda que não dê a cara.

Curioso, é que é nesse momento maior de revelação, no qual os impasses e conflitos entre os personagens se acirram que Resnais nos leva aos espaços antes interditados do filme, ou seja, ao interior das casas cenário. Nesse momento, quase final, o filme se desdobra, definitivamente, para o interior destas almas que acabam se mostrando mais humanas e deixam de interpretar, ainda que isso represente um esforço ainda maior que o da interpretação.

Ao optar pela jovem Tilly como companheira da última viagem, George, ou Resnais, parece mostrar que todo desejo responde à falta na medida inversa de sua carga ou valor, ou seja, se a morte é a proximidade com o polo negativo, como uma bateria que descarrega, a opção pela juventude é mais compreensível que a escolha pela ex-mulher ou as duas companheiras de peça. Todas as três já tão pesadas com seus problemas e tão contaminadas pela morte que George carrega no corpo. Morte que as faz lembrar, todo o tempo, da finitude e dos erros pelo caminho.

Resnais ao fazer seu último filme escolheu também pela leveza, faz um filme jovial, mas é um filme, como já foi repetido aqui, que se desdobra e que se revela, nas entrelinhas, bastante e dolorosamente humano.

Cesar Zamberlan

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br