Ano VII

A morte e o falso culpado no cinema do jovem Hitchcock *

sábado nov 26, 2011

No livro sobre Alfred Hitchcock escrito por Noel Sïmsolo, lançado pela editora Record no início da década de 1970, temos uma bela amostra de como o diretor de Psicose era visto por críticos e cineastas nos anos 1950 e 1960. Robert Aldrich e Samuel Fuller, por exemplo, insistem na tecla de que o diretor fazia filmes apenas para divertir o público. Otto Preminger reconhece em Hitch um truqueiro genial. Diz que adorou Psicose, mas que este filme não pode ser analisado, pois foi baseado apenas em truques. O crítico Jacques Doniol-Valcroze aponta como um sério problema a submissão aos desejos do público, e lamenta que um certo humor presente em sua fase inglesa tenha sido esquecido em favor da “ideia geral” que o considera um mestre do suspense. É interessante essa observação de Doniol-Valcroze. Primeiro porque há humor também na fase americana (em grandes doses, podemos dizer), mas também porque ele aponta, já em 1955, um esquecimento da fase inglesa. Nos últimos anos pudemos observar que esse esquecimento continuou a nortear os trabalhos feitos sobre sua obra, enquanto o endeusamento justificado de sua fase americana ganhou cada vez mais corpo.

É evidente que as condições de filmagem com grandes orçamentos, e a maior visibilidade que Hollywood proporcionava foram importantes para que a fase americana ficasse muito mais conhecida e reverenciada. Mas seria imprudente ignorar que as principais marcas de seu estilo já estavam sendo desenvolvidas desde o início. Alexandre Astruc, por exemplo, escreveu, também nos anos 1950, mas já consciente da genialidade do cineasta, que só há um tema na obra inteira de Hitchcock: uma alma envolvida com o mal. Nesse grande tema, estão contidos, como muitos já escreveram (1), alguns outros temas interessantes, como por exemplo o simbolismo psicanalítico e religioso, presentes em uma enormidade de filmes; o tema do falso culpado, que está, portanto, envolvido indiretamente com o mal (iniciado em O Inquilino e aperfeiçoado sobretudo em Jovem e Inocente, Sabotador, A Tortura do Silêncio, O Homem Errado e Intriga Internacional); e a espetacularização da morte. Este último subtema está diretamente ligado à célebre frase, de autoria do próprio Hitchcock, de que forma é conteúdo (a morte ganha peso se for filmada como um espetáculo, fazendo jus ao evento extraordinário que provoca e que vai mexer com todos ao redor), e também à ideia de que o próprio diretor teria sua alma envolvida, de alguma forma, com o mal, já que existe o lado sádico (também do espectador) na hora de filmar (ver) essas mortes.

Outros temas estão presentes em seus filmes, entre os quais o uso das metáforas sexuais, as relações homossexuais veladas entre alguns pergonagens, a psicanálise (especialmente na fase americana) e a incidência de temas religiosos são os mais constantes. Neste artigo, por questões de espaço, explorarei apenas dois: o da morte como espetáculo (um cadáver é sempre marcante em seus filmes, e a morte é filmada com riqueza de detalhes) e o do falso culpado (personagem que é acusado injustamente de um crime que não cometeu); com destaque para o tratamento visual que tais temas recebem na fase muda de sua obra (se a obra inglesa falada já é esquecida, imaginem a muda), e na passagem para o sonoro, quando a ideia de suspense iniciada em seu terceiro longa, O Inquilino, finalmente é aperfeiçoada.

O cadáver e a morte como espetáculo

As ideias visuais no cinema de Hitchcock são sempre marcantes. Poderíamos dizer que em todos os seus grandes filmes temos longos momentos de cinema mudo, nos quais não há diálogos nem narrações, e toda a informação de que o espectador necessita está dentro dos planos, percorrendo as engrenagens cinematográficas que Hitchcock conhecia como poucos.

Em filmes como Psicose, Disque M para Matar, Cortina Rasgada, Os Pássaros, Um Corpo que Cai, Janela Indiscreta e Pacto Sinistro, a morte de uma pessoa, geralmente assassinada, ou por um acidente induzido, é levada com estilo aos limites da espetacularização. Queda mirabolante da escada ou de uma torre alta, ataque de pássaros ferozes, assassinato visto pelo reflexo em um par de óculos, cabeça dentro de um forno, os exemplos são diversos e se multiplicam por toda obra de Hitchcock. Para espetacularizar essas mortes, o diretor inventava ângulos bizarros, filmava por reflexos ou através de vidros ou qualquer outro obstáculo entre a lente e a cena, criava inúmeros cortes dentro de uma cena aparentemente simples, ou qualquer outra exploração das possibilidades do cinema. Quando nos mostra apenas o corpo inerte da vítima, não é raro que este apareça acompanhado de um choque, algo que o espectador não esquece, como o homem de olhos esburacados em Os Pássaros. Não eram poucos os que o consideravam, por isso, um manipulador barato das emoções humanas, principalmente no início da carreira dele nos EUA. A bobagem começou a ser desfeita com os jovens turcos da Cahiers du Cinéma, que conferiam ao diretor inglês o status de gênio da raça. Ainda assim, Hitchcock demorou para se tornar uma quase unanimidade. Isto só aconteceu nos anos 1960, após uma série de obras de impacto certeiro na cinefilia: O Homem ErradoUm Corpo que Cai, Intriga Internacional, Psicose, Os Pássaros. Sua fase inglesa anterior ao cinema falado, contudo, permanece pouco conhecida e respeitada. Nela encontramos as raízes para sua habilidade visual, os experimentos com as possibilidades da imagem que o levaram aos grandes filmes do sonoro como um exímio inventor visual. Na falta do som, era preciso capturar a atenção do público de qualquer maneira, usando apenas os truques da imagem.

Hitchcock iniciou sua carreira em 1925, quando, no sul da Alemanha, rodou uma coprodução anglo-germânica chamada O Jardim dos Prazeres e iniciou uma das carreiras mais coesas e coerentes da história do cinema. Não é difícil encontrar paralelos entre essa obra inaugural e uma de suas mais famosas criações, Psicose. O lugar remoto, a mente perturbada e os mortos que assombram os vivos são elementos presentes nos dois filmes. Obviamente é muito melhor o tratamento desses elementos em Psicose, mas é interessante ver como algo que causaria furor neste filme pode ser encontrado desde sua estreia: a morte mirabolante de uma mulher. A espetacularização da morte está presente no assassinato da nativa, um afogamento induzido filmado com poucos planos, sem que víssemos o corpo inerte. Anos depois, Hitchcock filmaria tal assassinato de modo ainda mais indireto, mas atingindo o espectador com mais força. Não veríamos o corpo se afogando, mas provavelmente veríamos as ondas formadas por sua luta, o rosto maléfico de seu assassino, seu pescoço se retraindo pela força, as bolhas surgindo na água após a conclusão do afogamento, com o cadáver preenchendo o quadro. A ideia da morte como espetáculo ainda era um simples esboço em sua criação.

O próprio diretor considera O Inquilino o primeiro verdadeiro “Hitchcock picture”, e tem razão. O Hitchcock mais conhecido, aquele que astuciosamente manipula os elementos de suas tramas para que o espectador sinta um misto de medo e aflição, nasce sobretudo com este filme. Vemos logo no início uma moça loira gritando. Em seguida vemos letreiros que anunciam: “Nesta noite, cachos dourados”. Depois, o cadáver da mesma moça, numa aparição marcante, como são todas as aparições de corpos mortos em seus filmes. As manchetes propagam este e outros assassinatos cometidos por um misterioso que se intitula “The Avenger”. Somente após sentirmos que o clima está tenso na cidade nos é apresentada a heroína, e pouco depois o inquilino de modos suspeitos que vai morar no andar de cima da casa onde ela mora.

Neste suspense atípico, os personagens sempre sabem mais do que nós, e por isso a ideia que o diretor tinha de suspense (sabemos de algo que os personagens não sabem: uma bomba debaixo da mesa, por exemplo) ainda não havia se cristalizado. Mas vemos o resultado espetacular de uma morte, o cadáver de uma bela loira de cachos dourados recurvado à beira do rio, e um quase linchamento filmado como um espetáculo, com vários ângulos de câmeras e a presença de símbolos religiosos. Voltaremos a O Inquilino mais adiante, para falar do outro tema explorado neste artigo. Por ora é preciso reter a ideia de morte como espetáculo, presente com maior intensidade em um filme que marca a passagem do mudo para o sonoro.

Chantagem e Confissão retoma, em 1929, o trabalho de suspense iniciado com O Inquilino. Entre os dois, filmes admiráveis como O Aviso (que lembra Vertov e Dovjenko, no início) e Pobre Pete (um autêntico melodrama), e filmes mais frouxos com momentos espetaculares como Downhill, Vida Fácil, A Mulher do Fazendeiro e Champagne (1928), obras nas quais a criatividade dos posicionamentos e movimentos de câmera estava presente, evidenciando o aprimoramento de uma rara aptidão visual comprovada anos depois.

Voltando a pensar nas possibilidades de suspense iniciadas no longa de 1926, em 1929 Hitchcock entra no cinema sonoro com seu filme mais forte até então. Suas habilidades não estão apenas nas invenções visuais, mas agora também no uso do som. Na verdade, Chantagem e Confissão não é só seu primeiro sonoro, mas também o último mudo, já que durante as filmagens houve a mudança de planos. Percebemos, justamente no início, toda a estrutura do cinema mudo, no qual diálogos não são ouvidos. Também não há intertítulos, porque Hitchcock os evitava, deixando-os apenas para as situações em que fossem estritamente necessários. Para nos apresentar um dos protagonistas de Chantagem e Confissão, um detetive, o diretor faz com que acompanhemos uma missão comandada por ele. Na chegada ao criminoso, este lê um jornal em sua cama de pensão quando observa a entrada do herói e do ajudante por um pequeno espelho. O truque de Hitchcock é fabuloso. A câmera, agora visão subjetiva do criminoso, aproxima-se do espelho como se em seus olhos estivesse embutida uma lente teleobjetiva, formando uma imagem refletida que divide o quadro entre os dois policiais e o reflexo escurecido da porta. Estaria o cineasta, portanto, já plenamente apto a espetacularizar a morte de um personagem, algo apenas esboçado em O Jardim dos Prazeres, e retomado com mais impacto em O Inquilino.

Essa morte acontece depois da apresentação da segunda protagonista, a namorada do policial a que já tínhamos sido apresentados. Ela é seduzida por um pintor, mas arrepende-se. Este não gosta dessa mudança de atitude e decide usar a força, no que é surpreendido por um facão, que encerra sua vida e transforma uma moça outrora inocente numa assassina. Não vemos o assassinato. Tudo acontece por detrás de uma cortina. Mas o que impressiona é que o senso de espetáculo está inteiro na cena: nas sombras na parede assim que ele a agarra, nos movimentos percebidos pelo balançar da cortina, nos gritos da heroína, na mão desfalecida no final. É como o assassinato de Janet Leigh em Psicose. Não vemos seu corpo sendo retalhado, mas percebemos o que acontece pelos retalhos que nos são impostos pela montagem pensada por Hitchcock. Da mesma forma, não vemos os golpes de faca desferidos contra o pintor, mas temos a certeza de que foram muitos. Tal morte obviamente deixa sequelas na heroína, o que será visualmente desenvolvido nas cenas seguintes, fazendo com que o espectador sinta com ela o trauma. É nesse sentido que observamos o efeito que tal espetacularização provoca. A morte representada, afinal, é um evento tocante para todos nós, testemunhas imparciais ou simpatizantes com um dos envolvidos. Ela deve nos tocar em cheio, na mesma medida que toca os personagens. Essa é uma das lições que Hitchcock ensinaria durante toda sua carreira.

O falso culpado

A transferência de culpa ocupa grande parte do cinema de Hitchcock. Seria temeroso dedicar-me aqui à maneira como ele convida o espectador para um jogo, capturando-o com habilidade, ora tornando-o cúmplice de um assassinato, ora tornando-o conivente com os linchadores e os que julgam sem provas. Seria material merecedor de um livro, e nesse sentido Noël Simsolo chegou bem perto dessa realização na bela obra que escreveu. Neste texto, arrisco-me apenas a uma introdução, antes de entrar no tema propriamente dito. Teremos de voltar a O Inquilino, o primeiro filme em que esse jogo com o espectador é explorado. Os fundamentos do “toque de Hitchcock” estão todos ali. A particularização de um temor que se inicia em maior escala, a capacidade de introduzir todos os elementos da trama em poucas cenas logo no início do filme, a incidência de símbolos que enriquecem as imagens e as abrem para diversas interpretações, e, finalmente, o desenvolvimento, ainda incipiente, do suspense, quando o público suspeita de um homem, teme pela heroína que se aproxima desse homem e acaba participando como cúmplice de uma tentativa de linchamento. Numa revisão, já sabendo de sua inocência, esse mesmo público se identifica com este homem injustamente acusado. Ou seja, o espectador é convidado ao posicionamento, e sua recusa implicaria na recusa do filme. Esse é o risco corrido por Hitchcock desde o início de sua carreira, e do qual ele saberia se esquivar quase sempre com toques de gênio. É fácil considerá-lo submisso aos desejos do público, como apontou Doniol-Valcroze. Mas limitar-se a isso seria ignorar o risco aqui apontado, evidente demais para não ser levado em conta.

Durante muito tempo, em O Inquilino, temos uma série de pistas que indicam ser ele o principal suspeito dos assassinatos. É uma variação ainda por ser aperfeiçoada do que veríamos em filmes futuros do diretor, o tema do falso culpado. Em uma cena célebre, Hitchcock mandou fazer pisos de vidro, para que os passos vindos do andar de cima, do quarto do suspeito, tivessem sua representação visual, já que no cinema mudo o barulho dos passos não seria ouvido, o que diminuiria consideravelmente o aspecto aterrorizante da situação e o psicológico do público contra o personagem. Essa e outras cenas demonstram como o diretor, mesmo partindo de uma trama barata (o comportamento dos personagens principais obedecem à lógica de um folhetim rasteiro), extrai uma poderosa encenação, brincando com diversos elementos presentes em suas imagens e dispondo-os de maneira a conduzir o espectador em direção ao temor e ao suspense. Direto na evolução narrativa, mas com uma mise-en-scène de veterano, de alguém que conhecia o segredo do cinema.

As imagens são repletas de símbolos, como os motivos religiosos, que já seriam pistas mais ou menos dissimuladas da inocência do falso suspeito. Logo que o inquilino se muda para a casa da heroína, por exemplo, ele olha aterrorizado para a rua, e a sombra que a luz do luar faz em seu rosto, graças às molduras da janela, forma uma cruz que acompanha a linha do nariz até o queixo, e na horizontal, seus olhos assustados, indicando que ele poderá ser crucificado. Mais tarde, algemado e prestes a ser linchado como o falso culpado, prende-se acidentalmente às grades que tentara pular, numa posição semelhante à de São Sebastião, tal como registrado em algumas pinturas, e que remete também a Cristo. Essas duas imagens emblemáticas bastam para indicar a ambição imagética do diretor, então com 27 anos.

O falso culpado é também o tema do filme seguinte, Downhill, com o mesmo herói de O Inquilino, Ivor Novello, como um estudante acusado injustamente de roubo. É mais um filme de trama simplória. Só que desta vez Hitchcock cai em alguns efeitos visuais reiterativos e desnecessários: a escada rolante que desce após a expulsão do colégio e a saída da casa dos pais, o elevador que desce após um rompimento de relação em Paris, as escadas que levam o herói sempre para baixo, terminando no porão de um navio de carga. Até as subidas na volta a Londres e a retomada de sua vida pregressa, após a descoberta de que ele não era, afinal, culpado. Apesar da notória capacidade de contar uma história visualmente e de algumas sequências muito inspiradas (como a descoberta, durante um baile em um cabaré, do ambiente degradante em que estava metido, por meio de uma magistral panorâmica que mostra o que a luz do sol lhe revelava), Downhill não deixa de ser um retrocesso em relação ao longa anterior.

A cristalização do suspense hitchcockiano

Voltemos, pois, a Chantagem e Confissão. O casal termina mais unido do que no início, mas viverá os dias futuros com a maldição da culpa. Seria realmente culpa, tirando o sentido religioso do termo? Em outros tempos e lugares, seria legítima defesa (ela esfaqueou aquele que a tentava violentar). O corpo ultrajado é tão contundente quanto o corpo morto. Uma vez acontecido o incidente, os traumas surgem seja qual for o desfecho. E o final de Chantagem e Confissão é cruel com os protagonistas. Mas Hitchcock nunca foi um cineasta de recuar diante da crueldade do ser humano, não o seria diante das fatalidades. Neste final temos o maior exemplo do “toque de Hitchcock” até então. O quadro que estava no apartamento da vítima, um pintor, volta para assombrar o casal, que sai da delegacia após o confronto com o olhar ameaçador e sarcástico do palhaço pintado. Como em Pobre Pete, temos um casal amaldiçoado pelos acontecimentos. O futuro que eles terão juntos não será mostrado pelo filme. Só que aqui houve o assassinato, em Pobre Pete, um bebê. O próprio Hitchcock chamaria atenção para essa paridade entre os dois finais, na longa entrevista que concedeu a Truffaut. Estaria, já naquela época, juntando as peças para uma obra gigante sobre, voltando a Astruc, o envolvimento de almas com o mal.

Se o suspense hitchcockiano começa a tomar forma definitiva com Chantagem e Confissão, é com Assassinato, lançado em 1930, que se cristaliza. Sua ideia já estaria estruturada, e iriam-na chamar futuramente de suspense. O filme abre com um grito, a invasão do sonoro sobre a película. Gatos e morcegos se assustam. Vizinhos ficam curiosos. A polícia é chamada e descobre uma mulher, paralisada pelo trauma, ao lado do cadáver (uma loira, como tantas que seriam assassinadas em seus filmes). Temos a um só tempo os dois assuntos tratados neste texto: a espetacularização da morte, entre outras coisas pela força de um cadáver em cena, e uma mulher que será acusada de um crime que não cometeu (2). O cadáver é mostrado rapidamente. A mulher está de costas. Mas o caminho que a câmera percorre até ele confere a essa imagem uma força que poucos diretores conseguem obter. Esse é um dos segredos de Hitchcock, saber exatamente quando fazer um movimento de descrição de uma cena, que vemos como quase estática, mas na qual há uma ação evidente (o policial que examina o cadáver), e quando trabalhar com a decupagem para extrair o efeito mais impressionante. Mas além desse segredo há um outro evento que despontará com força em Assassinato. O truque, como dizia Preminger.

Tal truque reside no drible aplicado ao problema do “whodunit”, o mistério para saber quem, afinal, matou a vítima. Hitchcock não gostava de filmes assim, pois dizia que não havia emoção, apenas a tentativa de se descobrir racionalmente a identidade do assassino antes ou junto do herói. Nesse caso, tendo uma falsa culpada a quem defender, o suspense está presente, sobrepujando o mistério. O suspense se desenvolve porque o público se identifica com o jurado/ator que acredita na inocência da ré. A sequência em que essa identificação acontece é a do julgamento, na primeira meia hora. Após a apresentação dos jurados e algumas palavras da acusação e da defesa, ocorre a reunião do juri. Esse momento no tribunal lembra, esteticamente, o que Sidney Lumet faria anos depois em Doze Homens e uma Sentença com os sinais invertidos, pois aqui os que acreditam na culpa convencem os que têm dúvidas. Alternando cortes rápidos e panorâmicas, Hitchcock faz com que o espectador seja inserido na discussão e levado a se identificar com o último jurado, que no entanto desiste de sua argumentação e concede a necessária unanimidade. O som é usado de maneira brilhante. Temos, num primeiro momento, a repetição do coro dos acusadores, até o convencimento final. É um perfeito comentário sonoro sobre a união entre linchadores, ali representados num juri. Num segundo momento, um funcionário arruma a sala do juri enquanto ouvimos a sentença no tribunal. Hitchcock utiliza, portanto, uma das mais interessantes entre as muitas possibilidades abertas pelo advento do som no cinema: a dramatização do fora de quadro. A cena sonega ao público a reação da ré diante da sentença trágica, e o público sente falta da cena, e com isso a constroi mentalmente. O diretor já sabia como, e em que momentos, exigir algo mais do espectador, de forma que a acusação de submissão a seus desejos recebe outro contra-argumento de peso aqui. Logo depois da sequência do tribunal, o jurado/ator está se barbeando, e ouvimos seu pensamento enquanto vemos sua imagem refletida no espelho, no que foi considerado inovador na época. Curiosamente, o plano termina com a imagem refletida de sua saída do banheiro. Em uma única cena, Hitchcock explorou brilhantemente o surgimento da banda sonora e uma das melhores possibilidades da imagem: o seu reflexo.

O ritmo que impregna todo o filme e a interpretação dos atores é lento, como se tudo estivesse submetido à condição catatônica da falsa culpada que vimos na cena inicial. Isto dá a Assassinato uma estranheza fora do comum, quase experimental, com a câmera deslizando lentamente pelos ambientes, sobre as mesas, entre os atores. Não sabemos o que Hitchcock pretendia com essa estranheza, mas em alguns momentos e graças a ela, vemos o sublime. Podemos pensar, por exemplo, no encontro do ator com a ré, depois de termos visto que ela tinha uma foto dele no seu quarto – ou seja, era uma fã. O cenário é desolador: uma antesala onde os prisioneiros recebem os visitantes. Há uma mesa retangular, com os dois ocupando extremos opostos. A câmera se posiciona frontalmente, pouco acima de suas cabeças, utilizando o campo/contracampo, fazendo com que a mesa praticamente se projete sobre eles. É um momento chave, filmado com solenidade, revelador de que os laços do cineasta com o expressionismo ainda não estavam desfeitos, mas também uma sintonia com Carl Dreyer e Murnau. Sintomático que a cristalização do suspense em sua obra aconteça em um filme tão deliciosamente estranho.

Nos filmes seguintes que rodou na Inglaterra, o diretor continuaria depurando o seu estilo de suspense cristalizado em Chantagem e Confissão e Assassinato, ora com resultados ainda superiores (Os 39 Degraus, Jovem e Inocente), ora bem menos inspirados (O Mistério do Número 17, O Agente Secreto), sem contar aqueles em que Hitchcock se arrisca na busca pela melhor maneira de atingir o público (O Homem que Sabia Demais, refilmado duas décadas depois de forma mais redonda, e O Marido Era o Culpado, com a bomba que explode no colo de uma criança). Depois, já nos Estados Unidos, entra definitivamente no rol dos grandes inventores do cinema, explorando com maestria os truques que desenvolveu em seus primeiros cinco anos fazendo filmes. Mas essa é uma outra história.

Em 1926, com O Inquilino, nasce o cineasta Alfred Hitchcock. Em 1930, este mesmo cineasta já estava pleno de maturidade.

Sérgio Alpendre

 

(1) Ver Jean Douchet, Inácio Araújo, Raymond Durgnat, Chabrol e Rohmer, Truffaut, Bazin e o próprio Simsolo, entre outros.

(2)  Conforme podemos notar prenúncios de seus filmes futuros na fase inglesa de Hitchcock, há um outro tema presente em Assassinato que se repetiria em sua obra: o da acusada que não pode revelar a identidade do assassino, algo muito bem explorado em A Tortura do Silêncio.

 

* Este artigo foi publicado originalmente no catálogo Alfred Hitchcock, da mostra de mesmo nome realizada em junho de 2011 no Centro Cultural Banco do Brasil.

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