Ano VII

Morrer de pé

quarta-feira mai 21, 2014

Morrer de pé

Por Guilherme Savioli

Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre pessoas e coisas que existem e tais como elas existem, novas relações.”

Robert Bresson em Notas sobre o cinematógrafo

 

Implosão

 

Algo aconteceu em Adeus Dragon Inn. Na última sessão de um antigo cinema – na qual se exibe o clássico wúxia Dragon Gate Inn, de King Hu – os planos de Tsai Ming-liang parecem extravasar e romper toda e qualquer construção empregada pelo diretor até então. As durações estão, mais do que costumeiramente, estendidas; seus modelos parecem mais fantasmáticos do que nunca, dotados de uma fisicalidade e de um automatismo que, se comparados com a intensidade em que estiveram presentes até então na obra do diretor, estes parecem meras insinuações, concretizadas somente no filme em questão.

Tais rompantes não soam gratuitos ou inesperados, muito pelo contrário, parecem devidamente enunciados se relembrarmos da última cena de Que Horas São Aí? (2001), filme que precede Adeus Dragon Inn (2003). O filme de 2001 se encerra com o pai de Hsiao-kang (Lee Kang-sheng), que havia falecido na primeira sequência do filme, ressurgindo no plano final de uma forma extremamente concreta, direta, beirando ao natural. Num primeiro momento a sensação de choque com tal operação é inevitável, porém, após uma breve caminhada desse até então fantasma, na qual a câmera permanece imóvel, apenas insistindo em sua permanência e existência no plano, nos soa natural e quase palpável esse contato do cinema com o mundo dos mortos, no qual os fantasmas são a presença natural por excelência. Tal naturalidade na existência e circulação desses seres percorrerá por toda a duração de Adeus Dragon Inn.

À temática explícita sobre a morte do cinema, soma-se uma construção formal que tende a naturalizar – mas ao mesmo tempo preservar uma inquietação de base – a presença desses fantasmas. Ao anúncio inescrutável do fim, Tsai contrapõe a evidência de algo que irá inevitavelmente permanecer: a concretude desses fantasmas atestam a história daquele lugar. Há algo que parece lutar, resistir e perdurar para além da morte.

Algo aconteceu em Adeus Dragon Inn. Com uma espécie de implosão da linguagem, Tsai Ming-liang, mais do que em qualquer outro filme seu, parece apontar, através de uma brecha, uma representação do impossível, do insondável. Reafirma-se a importância da continuidade da existência do registro dos seres, da apreensão da vida pela câmera, em suma, a importância da existência/persistência do cinema mesmo após o fim deste. Evento parecido parece se repetir em Cães Errantes.

Roma, cidade aberta

Em Rebeldes do Deus Neon (1992) a mãe e o pai de Hsiao-kang conversam na cozinha, enquanto o filho escuta tudo do quarto. A mãe acredita que o filho é a reencarnação de um Deus, o pai desfaz da crença da mãe. Hsiao-kang sai de seu quarto e tenta fazer uma espécie de performance que confirme sua força corporal, sua feição divina. Em vão, o pai também o hostiliza e ele se recolhe.

Hsiao-kang tenta impor e confirmar sua força, sua existência ao querer se vingar do rapaz que quebrou o retrovisor de seu pai – figura pela qual também nutre um certo grau de admiração. Hsiao-kang destrói a moto do outro e observa a desgraça alheia da janela do quarto, saltando de cueca em cima da cama. A alegria dura pouco e Hsiao-kang vai prestar ajuda a quem acabara de prejudicar. Ao fim do filme, um plano fixo da cidade sobe em direção ao céu, filmando o passar das nuvens, algo que será retomado em A Passarela se Foi.

No final de Vive l’Amour, a personagem de Yang Kuei-mei deixa o apartamento, no qual acabara de se relacionar furtivamente com o personagem de Chen Chao-jung, e caminha por uma praça em reforma. Ela se senta. O plano é longo e acompanhamos nesse interim seu derramar de lágrima, o cessar do mesmo e por fim novamente o pranto.

A persistência da câmera de Tsai Ming-liang parece acompanhar o desenrolar de uma existência sempre tortuosa em uma unidade de espaço-tempo muito precisa. Operação quase cirúrgica, que ganha seu exemplo maior na famosa cena de O Rio na qual pai e filho consumam um ato incestuoso, sem se darem conta, num primeiro momento.

Não se trata de um olhar decadentista, confortável em afirmar – e filmar – uma suposta miséria que reina soberana perante a passagem do homem pela terra. Seus personagens estão a todo tempo submersos em situações muito avessas à sobrevivência pacífica: jovens sem perspectivas de vida, adultos com subempregos e que habitam um apartamento que não lhes pertence, a persistência de uma dor física insuportável, um casal preso em um conjunto habitacional durante uma epidemia. O olhar de Ming-liang soa quase implacável, extremamente materialista, atento à ocupação física do espaço pelo homem. Nesse sistema quase fechado, na qual a resistência à degradação completa se faz quase de viés, as coisas parecem se manifestar em sua verdadeira essência. Como bem observa Nöel Herp, em sua crítica ao filme O rio[1], a contemplação, essência da decupagem de Tsai Ming-liang, o aproxima muito do cinema de um Roberto Rossellini, mais do que de qualquer estilo contemporâneo, “pós-moderno”, que tenta dar conta de um certo mal-estar atual evocando um tom “etéreo”, “atmosférico”. Tsai Ming-liang se atem ao concreto, à vida, aos seres e ao que os circunda – para ele, só assim, através dessa extrema atenção, é que é possível se compreender alguma coisa.

Cães Errantes e o porvir

Ao escrever sobre o teatro de Bertolt Brecht[2], o crítico Roberto Schwarz afirma que um dos trunfos do dramaturgo alemão foi ter permanecido um estágio antes da reificação completa do homem pela mercadoria, o que, através de seu pensamento dialético, ainda ofereceria uma esperança de resistência ao estrago completo. Em Cães Errantes Tsai Ming-liang alcança efeito semelhante.

Seu enigmático plano inicial, seguido das composições que inserem seus personagens vagando por paisagens marcadamente separadas da cidade – o pai saindo com o barco, as crianças vagando pela floresta e por fim os três em uma espécie de área limítrofe, não urbanizada, na qual se vislumbra Taipei se impondo ao fundo – culminando com a brotamento desses corpos dentro da cidade de uma forma desastrosa (o pai como homem placa, as crianças vagando e pegando amostras grátis de comida dentro de supermercados) possuem uma duração fora do comum, mesmo para o cinema Ming-liang.

Algo não está certo, algo não funciona mais. A implosão de Adeus Dragon Inn parece ressurgir numa afirmação de que é quase impossível representar tamanho estrago. A evidência inexorável da passagem do homem por ambientes tão hostis, parece não permitir mais um movimento de câmera como aquele do final de Rebeldes do Deus Neon, um caminhar pelo terraço como no último plano de O Rio, ou até mesmo, por mais angustiante que seja, um número musical como no momento derradeiro de O Buraco. Parece que não há nada mais a ser feito e o respiro de inventividade contido na desintegração registrada em Adeus Dragon Inn não surge, a priori, como um horizonte, nesse outro filme de implosão de Tsai Ming-liang.

Eis que o homem (Lee Kang-sheng como sempre) e a mulher (Chen Shiang-chyi) entram na sala em que a tela de cinema/pintura impera solene. Ele permacene atrás dela. Por mais de dez minutos de plano fixo contemplamos os dois, com o rosto da mulher em primeiro plano e o homem bebendo ao fundo. Ao escorrer uma lágrima, algum sentimento, emoção parece se esboçar no rosto dela. Não se trata aqui de algo que brota sem qualquer impedimento, como o choro do final de Vive l’Amour: não há mais como representação de tal sorte transcorrer sem qualquer abrupção, com a simples – e lá poderosa – evidência do transcorrer da vida mesmo em meio àquela praça, mesmo na impossibilidade de concretizar um afeto (lembremos que o choro em Vive l’Amour é interrompido e depois retomado, um breve momento de calmaria após nova erupção). Nenhum sentimento é encarnado por completo no rosto de Chen Shiang-chyi. O afeto esboçado por Lee Kang-sheng, já perto do final do plano, se constitui igualmente como um gesto vacilante. As coisas ficam no plano do sugestão, da possibilidade, do porvir.

A mulher deixa a sala após a tentativa de afago. Lee Kang-sheng permanece por um tempo imóvel, e posteriormente também deixa o recinto. Se há uma insinuação da morte do cinema – algo que não se efetuou ao final de Adeus Dragon Inn – a representação limítrofe dessas relações reificadas parece  contradize-la com um sonoro grito de resistência: morrer de pé.

[1] La rivière – En ma fin est mon commencement, Positif nº 439, setembro de 1997

 

[2] SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht in Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letra, 1999.

 

 

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