Ano VII

Os curtas e médias

quarta-feira mai 21, 2014

Os curtas e médias de Tsai Ming Liang

Por Guilherme Martins

Os filmes de Tsai Ming-liang são únicos, de pura expressão da solidão e melancolia do sujeito num mundo moderno. Seus trabalhos em formatos mais curtos não fogem ao estilo, embora apresentem em alguns casos experimentos particulares. Muitos foram trabalhos encomendados por filmes em formato de antologia, com diversos cineastas renomados, o que nem sempre gera frutos muito interessantes. Considero dispensáveis à sua obra filmes como Aquarium, no longa Bem-vindo a São Paulo, e o It’s a Dream, do Cada um com Seu Cinema, que apenas repetem os cacoetes de forma pouco efetiva. Mais produtivo é se concentrar nos grandes curtas, como A Passarela se Foi e Walker, e Le Voyage en Occident, um dos filmes mais expressivos de sua obra (um média para TV francesa), além de A Conversation with God/Fish, Underground, seu primeiro trabalho com o formato, que possui características experimentais algo interessantes.

O caso de A Conversation with God é mais da curiosidade. São quase trinta minutos de um mergulho numa pesquisa religiosa. É o filme de Tsai menos exato, porém onde se vê um tipo diferente de abordagem, um pouco mais arriscada no que tange ao domínio de encenação. Não que o risco não faça parte da obra de Tsai, mas o vemos fora de um campo que lhe é cômodo; trata-se do primeiro filme de Tsai com o digital, e percebe-se seu experimentalismo com o formato. A presença do digital iria no futuro permitir a Tsai certos momentos de grande fascínio, como os longos planos de Cães Errantes.

A Passarela Se Foi é uma continuação de Que Horas São Aí?. Exibido à época do lançamento ao lado de Adeus, Dragon Inn, retoma o personagem de Lee Kang-sheng, agora que a passarela que permitia a travessia de uma avenida e onde ele vendia os seus relógios foi destruída. É uma série de planos triunfantes de Tsai, geralmente da avenida, imensa, povoada de corpos que se movem sem vida. No meio deles, perdida, uma moça tenta se situar, assiste a um telão, tenta atravessar a rua no meio dos carros. É de uma graça à Jacques Tati, humor físico, de corpos incompatíveis num mesmo espaço.

Talvez seja o filme de Tsai onde a expressão de sua melancolia encontre ecos mais leves, sem perder a força. Em dado momento um policial para a moça e outra mulher exigindo documentos, pois elas não poderiam atravessar a rua assim, e segue-se uma série de pequenas discussões hilárias. Uma elipse nos coloca ao lado de Lee Kang-sheng, que sem a passarela, tenta a carreira como ator pornô. Com sua habitual expressão vazia, o ator preenche mais um bom momento – e os personagens secundários relembram como Tsai é um brilhante diretor de atores. Os andarilhos do mundo moderno se esbarrando sem olhar uns para os outros nunca tiveram tanta graça quanto no curta. Uma comédia.

O caso de Walker é mais particular. É a primeira aparição do monge de Lee Kang-sheng, um andarilho do mundo espiritual. Trata-se de uma série de planos, 21 em 24 minutos, segundo o teórico David Bordwell (um obcecado pelas interpretações cênicas), pelos ambientes por onde passa o monge, num ritmo lento, do outro mundo. Uma presença zen, que se desencaixa do universo em que ele habita. Enquanto todos seguem se movendo como zumbis, a graciosidade da lentidão espiritual do monge o destaca pelas multidões de Taiwan. Pelos lados, algumas pessoas se espantam, interagem com ele, outras o ignoram. A performance do ator mais uma vez é central no funcionamento e fascínio das imagens. Não parece haver nenhum tipo de efeito visual na presença dele, sempre cabisbaixo, se movendo adiante. Neste filme já vemos um Tsai mais maduro, experimentando com o seu universo. Os planos longos buscam novos significados, colocam-se em xeque. Mas Walker é apenas uma preparação para o que viria em seguida com Cães Errantes e Le Voyage en Occident.

O caso de Cães Errantes já foi amplamente discutido. É um filme formalmente desafiador, mas de altos e baixos, com sua sujeira, miséria. Le Voyage en Occident – ou Journey to the West, como é conhecido em muitos lugares – choca justamente por uma certa compreensão entre a diferença da educação ocidental e oriental. E introduz outro brilhante caso de performance, com Denis Lavant e seu brilho e peso tradicionais. O filme começa com um longo plano de seu rosto, com apenas um traço de luz. Ele parece uma pedra, imóvel, mesmo quando descem, após alguns minutos, lágrimas dos seus olhos. A face de Lavant lembra o peso da memória de uma civilização, a história traçada por suas marcas, como em um filme de Clint Eastwood. Retornamos à presença espiritual do monge, que caminha por um espaço diferente, parece um templo, em seu movimento lento. Agora em território ocidental, a reação não parece a mesma das pessoas na rua ao verem a performance – quase como se o cinismo do ocidente se manifesta-se em oposição a uma pureza que traça os sentidos orientais. Portanto, se lá ele era estranho ao mundo contemporâneo e fugaz, no ocidente sua presença é ainda mais destacada.

A cor de sua roupa parece diferir sua existência naquele universo, tanto quanto sua lentidão. É o filme de Tsai que têm a imagem mais bonita, as cores exatas, expressivas, as sombras que batem no rosto de Lavant, compondo o crepúsculo que o personagem parece carregar. Ele se torna quase uma rocha, em meio à vastidão das montanhas, Tsai posiciona o seu rosto tal qual a geografia. Se o monge implica a espiritualidade, o homem de pedra é a História de uma civilização, e suas mal traçadas linhas. O peso se manifesta na cena em que o homem de pedra se torna espelho do monge, pouco atrás de sua posição no espaço cênico, ele dá os mesmos passos, movimenta-se em reflexo a ele. Como se as marcas no seu rosto lhe conferissem o mesmo poder divino que o monge possui. O plano decisivo do monge não é a longa escadaria, que dura mais de dez minutos e quando enfim vemos reações do povo europeu, e sim o plano aberto da multidão na praça. Quando procuramos por ele, incessantemente, entre o homem das bolhas de sabão, as pessoas que andam pelos lados, e enfim, sua presença brilhante surge, como num jogo de expectativas e atenção com quem assiste ao filme – é preciso ter paciência, disciplina, para encontra-lo. E ele confere brilho e cores ao espaço. É um grande filme, com a mesma relevância de seus grandes longas.

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