Ano VII

Tsai Ming Liang, cineasta pluvial

quarta-feira mai 21, 2014

Tsai Ming Liang, cineasta pluvial

por Wellington Sari

Em uma filmografia composta por ligações, em que o gato que sai pela direita do plano em Rebeldes do Deus Neon (1992) entra pela esquerda no de Adeus, Dragon Inn (2003), não há imagem mais significativa do que aquela que abre O Sabor da Melancia (2005). Trata-se de uma bifurcação, em um corredor. A câmera, posicionada de frente a uma quina, compõe simetricamente um quadro com entrada e saída. Assim é o cinema de Tsai Ming Liang: um grande corredor, cuja entrada está no primeiro filme e a saída, no último. Transitam por esse corredor os mesmos corpos, o mesmo corpus de obsessões, ano após ano.  

Além do gato, há, também, a barata. A mesma a rastejar no chão do filme de 1992 e a reaparecer em O Buraco (1998), para transmitir a doença causadora da metamorfose sofrida por dois dos personagens, que passam eles a agir como baratas, esfregando-se pelo piso e procurando refúgio em lugares escuros e úmidos (todos os espectadores de Tsai são um pouco baratas, imersas na sala escura, procurando esconderijo na umidades escura dos filmes do diretor). A barata é o signo da transformação em um cinema que tem superfície estanque e subterrâneo borbulhante.

A imagem metafórica do corredor traz em si, também, outra possibilidade de analogia. A do buraco. Separando o lado de lá do lado de cá, o buraco ora é tapado, com a ajuda do rolo compressor de O Sabor da Melancia, ora é escancarado, como no final de, é claro, O Buraco. É possível, às vezes, ir para o lado de lá, ou, trazer alguém para o lado de cá, como faz Hsiao-Kang com a mulher do apartamento de baixo, no longa de 1998. E o que há do outro lado? Há, de fato, o outro, o que não necessariamente pode significar o estabelecimento de uma relação humana, como é o caso no encontro entre o rapaz e o fantasma, nos subterrâneos do cinema em Adeus, Dragon Inn. O buraco é uma não-resolução, um furo na meia que constrange e incomoda infinitamente. É um mal estar social que não cessa e não fecha (o rolo compressor é uma medida inútil; logo surge a mão do homem a violar o asfalto e fazer iniciar o vazamento; eis a chave do cinema de Tsai), um sentimento de não plenitude. A arte não serve, de maneira alguma, para fechar o buraco, mas para aumenta-lo. O jovem espectador em Adeus, Dragon Inn não se contenta com as imagens exibidas na tela grande. A arte cinematográfica não lhe basta, não lhe aplaca a inquietação. O entorno lhe incomoda (o ruído da pipoca, o som do amendoim) e o espectador à moda antiga, não à toa representado por um velho, aquele pertencente a um tempo em que o cinema preenchia a alma, lhe fascina, por lhe ser estranho e incomunicável (a tentativa de aproximação ao Ser-de-outra-Era mostra-se patética). O espectador à moda antiga é também um fantasma. Da mesma maneira como o eterno plano geral de Tsai, que estimula o vagar dos olhos pelo quadro, o personagem sente o impulso de errar cinema adentro e investigar aquele espaço, aqueles corredores, aquelas estruturas decadentes. Metamorfoseado em barata, mete-se na escuridão do subsolo, em busca sabe-se lá do quê.

O buraco não é só um estado de espírito, mas uma posição de câmera. É perturbador notar a maneira como, de filme a filme, o plano em si foi se transformando em uma espécie de túnel sem fim, de corredor infinito, a devorar sem pena os personagens e, acima de tudo, o tempo (quando as luzes da sala de cinema do longa de 2003 se acendem e vemos, pela primeira vez, a imensidão anacrônica daquele espaço opressivamente vazio, a funcionária do lugar cruza o quadro, até desaparecer pela esquerda; o plano se mantém fixo por vários minutos e a espera parece sugar o tempo diegético e trazer à tona outro tempo, poético, profundamente triste, como quando se olha longamente a foto de um ente querido que já não existe mais). Linhas diagonais abundam e não é raro que a câmera esteja ligeiramente acima da altura dos olhos, acentuando ainda mais os traços que levam a um longínquo ponto de fuga – de novo, fugir pra onde? Não existe unicamente uma distância física enorme entre os corpos e a câmera, há uma distância moral: quando se pretende filmar a falta de esperança do homem contemporâneo, com sua sede que não cessa, sua dor no pescoço que não passa, só se pode mesmo compor imagens em forma de túnel. Sem luz ao fundo, é claro. Mais uma vez: o buraco do olho da câmera de cinema não oferece salvação ou conforto, apenas exposição.

A batalha pela travessia para o lado oposto do buraco muitas vezes acontece depois de alguma erupção do ímpeto, quando irrompe o jorro da vontade, explode o gêiser adormecido debaixo da crosta de apatia que envolvia os personagens até então.  O arrebatamento é algo recorrente, neste cinema que é como um encanamento entupido que, cedo ou tarde, irá transbordar. Por baixo do piso do apartamento em Rebeldes do Deus Neon há um vazamento de água que insiste em escapar pelo buraco, assim como o líquido escapa por debaixo do asfalto, em O Sabor da Melancia. O mesmo com as lágrimas transbordando incessantemente através dos corredores lacrimais de May Lin, no longo plano final de Vive L´Amour (1994). Cineasta pluvial, no universo de Tsai Ming Liang a água da chuva incessante – que, para além de fenômeno meteorológico, é estado de espírito – é canalizada pelos personagens e nas suas entranhas é convertida em lágrimas. O líquido fica armazenado, até que uma situação-limite faça transbordar as emoções. E não há pano roto que contenha o vazamento.

Uma terceira analogia, esta bastante óbvia, é a do rio. O plano tsaimingliano é duro, compacto e rochoso, mas, subterraneamente, corre água, corre vida (mais uma vez: é o tempo que escorre). Se ele é um cineasta das imagens desérticas, das relações esvaziadas, é só na superfície. Por vezes, vazam as gags visuais – compostas à maneira de Tati/Lewis, no jogo de inadequações entre corpos e espaço – e os inevitáveis números musicais. Escapists reliefs, os números, ultra coloridos e kitsch, jorro de alegria-de-programa-de-variedades, irrompem de supetão na montagem, por entre blocos de planos rígidos como tijolos, para trazer um pouco de alegria aos personagens em dificuldade de estabelecer relação com o outro. Se na superfície é quase impossível se entender com o outro, resta o subterrâneo do delírio como refúgio, como possibilidade última de contato. Voltemos à imagem da barata/espectador que se abriga no escuro do cinema e no buraco da tela.

Há sempre algo novo lá do outro lado – sabe-se lá o quê -, não importa o quanto Tsai Ming Liang retrabalhe a mesmíssima matéria, ano após ano. A filmografia do malaio é a ilustração do predicado de Heráclito: nunca se entra duas vezes no mesmo rio.

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