Ano VII

Visage

segunda-feira mai 19, 2014

Visage (2009), de Tsai Ming-liang

Feito com suporte e como parte de um projeto do Museu do Louvre, Visage, também conhecido como Faces, é irregular dentro da trajetória de Tsai, e não só por ser o seu filme, em tese, mais ocidental, mas por ter um caráter mais retrospectivo do que prospectivo, como se já ali, em 2009, Tsai pensasse em parar, olhando mais para trás do que para frente.

Visage é um filme sobre referências, sobre o peso das referências, sobre a morte, e sobre as marcas, e não só artísticas, que carregamos no corpo: na face.

Os “não iniciados” na obra do diretor malaio certamente terão enormes dificuldades de compreender – talvez o melhor termo fosse contemplar – Visage.  O filme se constrói como um inventário, bastante simbólico, das referências artísticas de Tsai, com especial atenção no imaginário cinematográfico, no imaginário francês da Nouvelle Vague, e, sobretudo, no imaginário truffautiano.  Referências que dialogam com elementos marcantes da trajetória artística de Tsai, num registro que alterna momentos alusivos e auto-alusivos, mas sem nenhuma preocupação de estabelecer uma narrativa fácil ou um fio condutor identificável.

Caçar aqui e ali citação a filmes que foram importantes para Tsai e citações dos próprios filmes do diretor ajuda a compor, portanto, não uma linha narrativa – esqueça isso -, mas uma parte do mosaico. Parte, pois Visage trabalha o tempo todo com a ideia de incompletude, com a ideia de fragmento, com a impossibilidade de definir que material é esse, informado, formado e deformado pela experiência de vida e pelo acúmulo de imagens, sensações, sentimentos e sedimentos que jorram em nossa trajetória numa torrente incontrolável, torrente como a da água que vaza do encanamento da casa de Lee Kang-Sheng – no filme, o diretor, Hsiao-Kang – e que depois migra pelo meio fio da rua até a calçada onde está Fanny Ardant à procura de Jean-Pierre Léaud.

Lee Kang-Sheng é a encarnação de Tsai, ele carrega no rosto todo o cinema de Tsai, vive e convive com todos os fantasmas que formam a obra do diretor. A mãe morta que boia sobre a agua que invade o quarto lembra os personagens de Não quero dormir sozinho. Sua reaparição depois de morta, bem como a presença sempre fantasmagórica de Léaud, remete a toda galeria de fantasmas de Tsai, sobretudo, os personagens de Adeus Dragon Inn. A dor do diretor no set frente a personagem que chora em off remete ao final de Vive L´Amour e ao choro interminável da personagem do filme. O diálogo de Léaud e Kang-Sheng citando cineastas mortos – Pasolini, Welles, Antonioni, Chaplin, Keaton e Mizoguchi – é um dos momentos mais belos do filme; bem como o registro da morte da mãe e a cena na qual a sombra da câmera acompanha a personagem num túnel cheio de água.

Com belos momentos, mas sem a unidade e a força poética das obras primas do diretor, Visage é um filme deliciosamente irregular, pode até ser menor, mas é um filme menor de um cineasta maior, e um cineasta com uma escrita muito particular, como prova este dossiê.

Cesar Zamberlan

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