Ano VII

Que Horas São Aí?

quarta-feira mai 21, 2014

Que Horas São Aí? (Ni Na Nian Ji Dian, 2001), de Tsai Ming-liang

Difícil falarmos do cinema de Tsai Ming-liang e, em algum momento, não retornarmos às questões de seu estilo e de suas obsessões. Hoje, revendo cronologicamente sua obra (que talvez tenha sido concluída, em longa-metragem, com Cães Errantes), surpreende não ser, a partir de Vive L’Amour, que suas tão características marcas fazem-se consolidadas. Em sua estreia, Rebeldes do Deus Neon, é o som da chuva a primeira coisa que escutamos e logo encontramos uma série de fatos que se tornariam evidências de seu autor nos anos seguintes: um ato de crueldade – uma barata sendo perfurada por um compasso –, uma casa alagada, muitos planos no interior de banheiros, carência de diálogos e, aos 11 minutos, uma cena de masturbação. E há, sobretudo, uma opressão surda e inutilizante; uma certa impotência cujo resultado é fazer com que as coisas não se deem: a materialização do amor, o conserto do vazamento, a solidificação de qualquer relacionamento intersubjetivo entre os personagens.

Àqueles que, em certa medida, encontram nos últimos trabalhos do cineasta um esgotamento de suas intenções (e devo dizer que me encontro entre eles), Que Horas São Aí? surge como o canto do cisne precoce de um artista ainda aberto ao mundo; às dúvidas e aflições que dele surgem. Se Adeus, Dragon Inn tem um tom manifestamente mais elegíaco (por demais próximo àquele de Cães Errantes, exceto por uma menor preocupação com o teor político/social), é aqui onde encontramos, de modo inaugural, as características que fazem, daquele, um filme apenas superficialmente fundamental à compreensão de Tsai. Vide um olhar melancólico (ainda que jamais derrotado) a um cinema anterior e mais pleno, no caso, com as presenças de Os Incompreendidos, de Truffaut e a do próprio Antoine Doinel/Jean-Pierre Léaud, no cemitério; ou a exploração de um universo assombrado, no qual fantasmas e seres humanos se confundem. Não menos importante, é neste conto de luto budista que o diretor irá começar a preocupar-se menos com o espaço físico (dispositivo em Vive L’Amour e O Buraco, essencial em Rebeldes do Deus Neon e O Rio) e se debruçará sobre a questão do tempo, seja ele perdido, concreto, alterado ou desejado.

O enredo precário – porém belo, a ponto de merecer ser descrito – torna-se, a cada sequência, mais abstrato: um vendedor ambulante de relógios perde o pai e, enquanto sua mãe tenta desesperadamente negar o fato e encontrar seu marido reencarnado em qualquer ser vivo, o rapaz é abordado por uma garota que deseja comprar seu relógio de pulso, que comporta dois fusos-horários. Ela parte, solitária, a Paris e, instintivamente, o vendedor passa a alterar todos os relógios possíveis de Taipei ao horário da capital francesa. Temos, assim, uma tríade de personagens contendo ausências variadas, tentando de alguma maneira (cósmica? mística? obsessiva?) se conectar com o que quer que seja. A eles, Tsai não irá decretar nenhuma impossibilidade ou destino. Pelo contrário, na atmosfera nublada e misteriosa de um parque francês, o estado destas almas se insinuará serenamente suspenso, em harmonia, à maneira da roda-gigante que antecede os créditos finais, oferecendo ao outro apenas sua função essencial: se mover, girar suavemente, proporcionando múltiplos panoramas a uma paisagem em lenta, mas constante, transição.

Bruno Cursini

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