Ano VII

Getúlio

domingo mai 4, 2014

Getúlio, (2014), de João Jardim

Em Getúlio, predomina a câmera-cara: colada ao rosto dos personagens, a câmera parece querer entrar, literalmente, naquelas figuras históricas, expondo-lhes os traços de humanidade por meio de uma detalhada análise epidérmica/endocrinológica.

Na segunda cena em que aparece o ex-presidente, vemos lhe escorrer pelo rosto uma deliberada gotinha de suor.  Este efeito de realidade se faz presente também, é claro, em outros aspectos da fotografia.  Um dos mais significativos são os planos sub expostos, em que formigam grãos (no digital, chamam-se sharp). Suor, grãos, escuridão. Há enorme esforço em construir uma imagem crua dos últimos dias do ex-ditador. Enclausurado no Palácio das Laranjeiras, temos acesso à crueza da intimidade de Vargas.

De maneira isolada, o fato de João Jardim preferir o suor ao gesto heroico – Getúlio, ao longo do filme, é um comandante fraco, de atitudes banais – gera momentos bastante interessantes, como na cena em que o ex-presidente conversa com a filha no jantar e, gradativamente, perde o foco do olhar, passando a encarar o nada, em uma expressão de tristeza e preocupação. É uma imagem forte, ainda que sutil. A cena dá a Tony Ramos a possibilidade de atuar com os olhos, algo que pouquíssimos atores brasileiros, treinados na classe das 21h, são capazes de fazer.

No entanto, é em Getúlio visto como um todo em que se percebe a ambiguidade de algumas escolhas, sintetizada no sotaque usado por Ramos. Enquanto a câmera-cara e os outros “efeitos de realidade” almejam, evidentemente, o tipo de realismo associado ao documentário – ou seja, tudo o que está na tela não é invenção, “aconteceu de verdade” -, ator e diretor decidem abolir na maior parte do tempo qualquer vestígio de sotaque gaúcho na voz de Vargas. Ao abrir e fechar o longa-metragem com a narração em off de Ramos, fica perceptível a importância da escolha. Principalmente ao final, quando a voz de Vargas/Ramos é ouvida mesmo depois do suicídio, ilustrada por imagens da época, mostrando a multidão em prantos no velório do ex-ditador. Homens mortos não falam, mas mitos, sim.

Se a tentativa é da mistificação do Pai dos Pobres, por meio do registro realista, por que ignorar o sotaque? Uma das possíveis respostas pode estar ligada ao endossamento, muito parecido com o que é empregado pela publicidade: é o familiar Tony Ramos quem está falando, é a voz que ouço na TV e se ele diz que é, então é.

Mesmo que seja compreensível a escolha do olhar realista em um filme pró-Vargas patrocinado pela Petrobrás, e que essa escolha esconda intenções ideológicas – outra vez, se parece um documentário, então aconteceu de verdade, Getúlio foi realmente um herói – é difícil não achar pobre algumas destas opções.

O cinema, arte de gestos e imagens, é suplantado pela voz, no filme de Jardim. A câmera-cara mostra o detalhe, o suor, mas não mostra a grandeza do todo, a grandeza do homem. Os gestos de Vargas não lhe atribuem caráter de monumento. É pelo discurso oral que precisamos ser convencidos de que Vargas saiu do cinema para entrar à História.

Wellington Sari

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