Ano VII

Passion

terça-feira abr 29, 2014

Passion (2014), de Brian De Palma

A dualidade é um dos grandes temas do cinema de Brian De Palma. Sisters (1973), seu primeiro thriller, é sobre irmãs siamesas. Passion (2012), o mais recente, mostra duas mulheres competindo em uma agência de publicidade. Número mágico, o dois é a senha para entrar no universo favorito do diretor: o da mentira. A filmografia do cineasta é um grande documento visual sobre a ontologia da mentira da imagem cinematográfica (e, desde os anos 90, da imagem em geral). A tag line do universo depalmiano poderia muito bem ser a frase de divulgação de Dublê de Corpo (1984): “nunca acredite em tudo o que você vê”. Descontando o caráter promocional da frase, o caráter de frase de efeito, ainda sim é um resumo bastante preciso daquilo que guia o trabalho do diretor.

A gênese deste tema, claro, está em Hitchcock. Um Corpo que Cai (1958) é um filme sobre um homem que tenta recriar a imagem da amada morta – supostamente morta; não acredite em tudo o que vê.  Fantasia febril do necrófilo que quer a todo custo possuir o defunto, ou retrato do homem-voyeur, ainda insipiente nos anos 50, homem cujo gesto maior é o é do espiar, espiar a TV, o anuncio publicitário, a vizinha, a vedete cantando parabéns pra você ao presidente? “Eu gosto de espiar”, diz o protagonista de Dublê de Corpo – o duplo de Um Corpo que Cai -, enquanto atua em um filme pornô. E quem não gosta?

É também Hitchcock a primeira relação de duplicidade estabelecida por De Palma. Toda obra do diretor americano, em maior ou menor escala, estabelece uma relação, ora de violação, ora de sátira, ora de aprimoramento, ora de empréstimo, com o mestre inglês. Vestida Para Matar (1980), longa-metragem sobre psicótico que se veste de mulher, é o irmão siamês malvado, cinco, depravado e engraçado de Psicose (1960). É impossível assistir o primeiro sem que o segundo se faça presente. Hitchcock é a tela, De Palma é a tinta (vermelha). Em alguns espaços, há pinceladas mais finas, em que é possível vislumbrar a tela, em outros, não.

Em Passion, filme de duplos e também filme de espelhos, há outra relação, outro reflexo além de Hitch, que é com o filme original, Crime d´Amour (2010), de Alan Corneau. Este, um thriller psicológico sobre duas mulheres competindo em uma empresa multinacional ligada à agricultura. De Palma refaz, re-makia (remake with make-up) o mote de Corneu, transformando-o em um thriller delirante, exagerado, barroco. Sai a empresa agrícola, entra, evidentemente, a empresa de publicidade.  Jean Douchet, em uma mesa-redonda sobre De Palma, publicada pela Cahiers du Cinema, é sagaz: “criar imagens, atualmente, sem o reconhecimento da existência da publicidade, seria totalmente falso”. Não filmar levando-se em conta a publicidade seria um erro, nos anos 80. Hoje, quando a relação entre o homem e a publicidade, entre o homem e a imagem e seus meios, como a tela de celular, a web cam, o Skype, enfim, atingiu caráter androide (estamos todos fisicamente ligados à máquina; nosso funcionamento depende dela; nossos sentidos do tato experimentam o touch na tela, diariamente; a imagem síntese da ligação entre homem e máquina está na cena final de Passion, quando a ruiva indefesa estica todo o pé e, com o dedão, consegue tocar no botão do celular e enviar as imagens da verdade; ou, melhor, “verdade”) seria um erro brutal, para quem se interessa pela imagem no mundo contemporâneo.

Há imagem mais precisa sobre os dias de hoje do que a que abre Passion? Um close do logotipo da Apple.  Entremos no jardim do Éden e mordamos a maçã do amor. Debruçadas diante da tela, as duas metades da maça, Isabelle e Christine. A loira e a morena que, tal qual em Um Corpo que Cai, são a mesma pessoa. Dividem as mesmas ambições e o mesmo homem. Não é por acaso que, no início do longa, repetem as mesmas falas e são enquadradas simetricamente ocupando o plano.

Nesse filme split, é justamente em uma sequência de tela dividida que De Palma, este grande reconstrutor de formas, dá a declaração definitiva sobre a violência em sua obra: de um lado, o ballet Afternoon of a Faun, de outro, a vítima indefesa. Gestos graciosos em ambos os lados. A morte filmada não é a morte, mas uma dança coreografada, um ballet entre assassino e futuro cadáver.

À dupla Isabelle/Christine, acrescenta-se um terceiro elemento, um elemento maligno, uma imagem distorcida, refletida em uma tela de computador: Dani, a ruiva. Junto com Dirk, o homem dividido pela loira e pela morena, forma-se um jogo febril de sonho dentro de sonho, imagens dentro de imagens, telas dentro de telas. Qual é a verdade, em Passion? Multiplicam-se os olhos/telas e multiplica-se, também, a capacidade da imagem em nos fazer mergulhar na infinita espiral de mentira, a mesmíssima espiral de Um Corpo Que Cai, refletida nas escadarias em que pisam o inocente Inspetor Bach.

Wellington Sari

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