Ano VII

Robocop

quarta-feira mar 5, 2014

 

 

Robocop (2014), de José Padilha

 

Assim que desembarcou em Hollywood na década de 1980, o holandês Paul Verhoeven fez o possível para se adaptar. Antes mesmo de estrear com o épico medieval Conquista Sangrenta (1985), chegou a integrar uma lista de possíveis candidatos a comandar O Retorno de Jedi (Christian Marquand, 1983). O produtor George Lucas, assustado depois de ver o conteúdo sexual de Sem Controle (1980), penúltimo filme que Verhoeven fez em seu país natal, resolveu não arriscar. Três anos depois, a Orion Pictures assumiu o risco e produziu a aventura de época estrelada por Rutger Hauer e Jennifer Jason Leigh. As altas doses de violência, sexo e ironia de Conquista Sangrenta não ajudaram nas bilheterias, mas serviram como cartão de visitas de Verhoeven nos EUA.

 

O cineasta logo perceberia que a sensibilidade dos estúdios e do público dos EUA não iria permitir que usasse o mesmo tom de erotismo e violência de filmes como O Amante de Kathy Tippel (1975) e O Quarto Homem (1983). Então Verhoeven mudou a forma de apresentar esses temas controversos para o espectador da Era Reagan, elevando-os quase à beira da paródia. O exagero de Conquista Sangrenta seria ainda maior em Robocop – O Policial do Futuro (1987), uma das mais corrosivas e violentas sátiras que o cinema apresentara até então. Na sua carreira em Hollywood, Verhoeven continuaria nessa linha até ser vencido pelo cansaço no fraco O Homem sem Sombra (2000). Enquanto pode resistir, fez o jogo dos estúdios, mas sempre apostando alto.

 

Recém-chegado, o brasileiro José Padilha mirou no que parecia óbvio. Depois de mostrar a desumanização de um indivíduo em Tropa de Elite (2007), parecia ser uma opção viável para filmar novamente a transformação do policial Alex Murphy em um ciborgue construído para ser a nova força mantenedora da lei e da ordem. Interessou a Padilha a possibilidade de atualizar a história, agora para um mundo no qual a tecnologia avança rapidamente, e drones de combate usados em missões contra inimigos no exterior são uma realidade assustadora. Além disso, existia a vontade de Padilha de ir mais a fundo no drama de Alex Murphy/Robocop, uma figura cinematográfica tão conhecida popularmente quanto o Monstro de Frankenstein, o seu irmão espiritual.

 

Apesar do potencial da empreitada, os problemas da versão de José Padilha são bem evidentes. Desprovido do senso de humor de Paul Verhoeven e dono de uma visão mais estratégica do que humana na hora de mapear problemas sociais, Padilha falha na alocação desse meio-homem, meio-máquina, em seu filme. O futuro que ele nos apresenta está mais próximo de nós do que o que foi mostrado por Verhoeven há mais de vinte anos. Não existe mais, para o espectador, a maravilha e o terror da descoberta, tanto por conhecer bem a história do filme, como por descobrir que esse mundo horrível que está vendo na tela não difere muito daquele no qual ele mesmo vive. Para tentar contornar esse problema, Padilha se concentra no drama pessoal do herói. E erra feio.

 

Na sequência do Robocop original, dirigida por Irvin Kershner em 1990, tínhamos a resolução de algo sugerido no longa anterior, que era a possibilidade do personagem título recuperar a sua antiga vida ao lado da família. No filme de Kershner, o cibernético Alex Murphy, em pleno conhecimento de sua situação, percebe que jamais poderá ter qualquer relacionamento com a esposa e o filho. Não se trata apenas do que se refere à reabilitação física de um homem, mas sim da perda de parte de sua humanidade, que agora responde a comandos lógicos que nem sempre correspondem ao que ele mesmo pensa. Mesmo que Irvin Kershner não se aprofunde muito na questão, sua resolução bastaria para encerrar o assunto. Padilha acha que não, e quer insistir na reconciliação do robô com sua amada. 

 

O Robocop do cineasta brasileiro, em seu anseio de demonstrar humanidade, sofre várias transformações durante o filme. Ou está assustado com o que se tornou, ou deseja reencontrar os familiares, ou então se mostra como uma máquina sem sentimentos no momento em que precisa desferir o tiro fatal no inimigo. Bem mais do que no filme de Verhoeven, o herói é confrontado com o fato de não passar de um produto, algo que pertence legalmente a um grande conglomerado industrial. Vestindo o traje de cineasta-antropólogo-politizado, Padilha mira a sua lente em várias questões pertinentes. As pretensões aqui são maiores, mas o roteiro frouxo não consegue fugir do trivial, tratando pontos importantes com desleixo ou falta de profundidade gritante. No filme temos a presença de forças táticas robóticos dos EUA presentes em diversos países, algo muito mais interessante que a choradeira que Padilha oferece. 

 

As cenas de ação genéricas representam outro grande revés em relação ao que se esperaria de um novo filme do personagem. Mas, se lembrarmos que Padilha precisou de técnicos estadunidenses para as cenas de tiroteio de Tropa de Elite, isso acaba não sendo uma surpresa. Usando do estilo câmera que parece estar em meio a um terremoto, as cenas não eram o melhor do filme policial linha-dura de Padilha, mas mostravam sua predileção por bons seriados como The Wire e The Shield. Funcionavam quase como um pedido de passaporte para os EUA – o que, vemos agora, foi certeiro a curto prazo. 

 

Uma pena que a alfândega tenha confiscado os principais instrumentos de trabalho de Padilha, justamente aqueles que fizeram dos filmes do Capitão Nascimento, duas das mais viscerais experiências que o nosso cocho cinema nacional viveu nas duas últimas décadas. Exemplo de cineasta sensacionalista que posa de estudioso das mazelas do ser humano, ele pegava com força o público pelo pescoço e o fazia torcer por um personagem que originalmente deveria ser o vilão. Padilha transformou Nascimento no herói da torcida, porque sabia que assim o retorno era mais garantido. E depois, para não ser tachado de fascista ou coisa pior pela galerinha de ciências humanas, decidiu humanizar o seu super-homem em Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro (2010).

 

Não é que essas típicas artimanhas de José Padilha não tenham efeito neste remake de Robocop. Elas simplesmente não estão presentes, pois estão reféns de uma censura rígida (PG-13) e dos olhares atentos dos investidores. O diretor brasileiro não mantém a visão satírica de por Verhoeven, nem a abordagem um tanto mais cruel de Kershner. O humor nos filmes de Padilha está presente nas tiradas que os personagens dos dois Tropa de Elite dizem diante do horror urbano que testemunham e produzem. No seu Robocop, é tudo muito sério, salvando-se apenas o furioso âncora de TV interpretado por Samuel L. Jackson. Em relação à crueldade de José Padilha, ela se mostra em seus documentários, na maneira de filmar a desgraça alheia. Como um bom realizador de produções apelativas, só que sem o mesmo talento em trabalhar as imagens da dupla italiana Jacopetti e Prosperi, responsáveis pelo seminal Mundo Cão (1962). Em sua estadia nos EUA, Padilha é apenas um enlatado. Mas sem carne dentro.

 

Leandro Cesar Caraça

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