Ano VII

Sobre elogios e reclamações

sexta-feira jan 31, 2014

Sobre elogios e reclamações

Desde que comecei a cobrir festivais tenho feito uma série de elogios à Mostra de Tiradentes. Até hoje é um dos festivais que mais gosto de frequentar, pelo que se respira de cinema, quase sempre com pretensão autoral; pelos encontros com outros apaixonados por cinema; pelas surpresas que sempre aparecem, mesmo em más safras como a deste ano; pela curadoria atenta do amigo Cléber Eduardo, pela força e simpatia das irmãs Raquel e Fernanda Hallak e por uma série de outras coisas que deixam saudades.

Acontece que as pessoas de cinema normalmente não toleram reclamações. Criticar, reclamar ou bronquear é coisa de rabugento, de cricri, de estraga prazeres. Em festivais, o crítico que faz sua função tende a ser mal visto por muita gente. Claro que há exceções. Há diretores que pedem uma crítica mais incisiva, mais dura. Há leitores que entendem a política do tapinha nas costas como a coisa que mais atrapalha o cinema brasileiro depois da burocracia. Ainda bem. São as reclamações, não os elogios, que podem alterar alguma coisa no panorama. São as reclamações, não os elogios, que fazem pensar, que movem a roda da reflexão num ritmo mais certeiro (desde que, claro, as reclamações procedam, o que nem sempre acontece, pois nós também estamos sujeitos ao erro).

Lembro sempre da brilhante frase de Walter Benjamin: “A posteridade esquece ou celebra. Só o crítico julga no rosto do autor”. Eu, que não me igualaria às unhas de Benjamin, escrevi certa vez que o trabalho da crítica envolve a consciência de sua inexatidão. Como uma atividade de criação, é perpassada por zonas obscuras, e é muito comum que o crítico trafegue num mar de incertezas. Dito isso tudo, acredito plenamente do potencial transformador de uma reclamação. Desde que seja bem explanada (o que tento fazer nesta cobertura, nem sempre com sucesso), e desde que seja lida com o devido cuidado.

Sobre alguns longas (a continuar…)

A Mostra Aurora traz sempre os filmes inéditos no Brasil. Por isso é a mais esperada em Tiradentes. Neste ano, como já disse, não revi a versão terminada de A Vizinhança do Tigre, elogiadíssima por aqui. Vendo Affonso Uchôa, o diretor, falar, é possível esperar algo forte, uma vez que a versão não acabada, com quarenta minutos a mais, já apresentava algo bem promissor. Também não vi O Bagre Africano de Ataléia, de Aline X e Gustavo Jardim. O pessoal por aqui disse que é fraco, e não encontrei ninguém que defendesse o filme. Tentarei ver ambos mais adiante, se conseguir cópias com os realizadores.

Vi A Mulher que Amou o Vento, de Ana Moravi, definido por ela como uma declaração de amor ao companheiro Dellani Lima (diretor que interpreta o vento no filme). A apresentação comoveu, o casal é deveras simpático e apaixonado por cinema, mas o filme ficou devendo. A atriz é bela, com um rosto que chama a câmera. Mas o filme tem excessos. Muita saturação nas cores e nos contrastes, muita poesia a priori, muita intrusão do som (nesse sentido, La Captive du Desert, de Raymond Depardon poderia ser uma referência interessante para a diretora).

Aquilo Que Fazemos com as Nossas Desgraças, de Arthur Tuoto, tem seu interesse. Se é derivativo demais de Godard, ao menos dialoga com os tempos atuais de forma mais precisa que os curtas exibidos aqui. Seu discurso anti-idealização do autor, exposto no catálogo, também é interessante, principalmente neste ambiente em que cineasta no segundo longa já se considera autor. Nisso lembra Conceição, longa de 2007 que foi uma espécie de precursor do espírito da Aurora, ainda que sua pegada seja outra, nada jocosa e mais sisuda e reflexiva.

Batguano, de Tavinho Teixeira, é o Doce Amianto de 2014. Só que mais irregular. Certa vez, Marcello Mastroianni mencionou seu desejo de dirigir e interpretar uma história com um Tarzan envelhecido, esquecido na selva. É mais ou menos o que é feito em Batguano, com outros personagens ficcionais: Batman e Robin. Filme doidinho, com sexo oral, fetichismo e futurismo com doença de morcego, estradas e paredes projetadas por trás dos autores e uma bela homenagem ao Num Ano Com Treze Luas, obra-prima de Fassbinder.

Mais sobre esses e outros filmes da Aurora e das outras mostras no balanço final. Antes disso, mais reclamações.

Sérgio Alpendre

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