Ano VII

A Filha de Ninguém

quinta-feira dez 19, 2013

 

A Filha de Ninguém (Nugu-ui Ttal-do Anin Haewon, 2013) de Sang-soo Hong

Uma aparente contradição ronda o cinema do sul-coreano Sang-soo Hong: um exímio apreço por uma certa rigidez formal em convívio com uma vontade de registrar momentos supostamente prosaicos da vida. Assim, seus planos de conjunto, dotados de uma certa languidez, com uma constante e intensa reconfiguração das relações espaciais entre os corpos e com uma utilização rara de movimentos de câmera, são postos em prol do registro de situações na qual predominam  cenas rotineiras do cotidiano de seu país (o jantar/almoço, com as pessoas bebendo e conversando é, provavelmente,  a mais emblemática em sua filmografia).

Tal equação, contudo, não se mostra paradoxal ou incongruente. As formas de Sang-soo não se constituem como obstáculos para alcançar a matéria que ele deseja filmar, nem tampouco servem para engessar a fruição narrativa. Muito pelo contrário. Sang-soo filma a vida numa espécie de “estado de suspensão”: seus personagens geralmente estão passando por algum momento ligeiramente excepcional – as situações mais comuns são o início ou término de algum relacionamento e/ou o deslocamento por algum habitat que não é originalmente o seu. Dessa forma, o gosto por retratar a vida em seu estado mais simples, se dá num quadro bem específico, uma vez que os  personagens retratados não se encontram mais imersos num cotidiano automatizado, e sim, suspensos da rotina usual. Nesse contexto, as formas do cineasta surgem em perfeita consonância com essas crônicas de momentos de desarranjo: ao mesmo tempo em que, através desse formalismo evidente, se preserva e se evidencia a excepcionalidade do momento, se efetua também um registro potente e nada rebuscado de situações simples, porém decisivas e cruciais na vida.

Trata-se aqui de um retrato da “vida ao rés – do – chão” – na expressão de Antônio Cândido – no qual a potência cinematográfica de registro do real não é suscitada no sentido de contemplar um “deslumbramento”, ingênuo e ideológico, de uma captação neutra da realidade, mas sim no sentido de expor uma beleza tensa. Isso porque Hong nos coloca sempre diante da vida encenada – seu real é extremamente arquitetado. Ao mesmo tempo em que, se existe algum conhecimento a ser extraído do contato da câmera com o mundo filmado, ele reside essencialmente na evidência dessas imprecisões da vida, que surgem apesar de todo o controle. É aí que reside a tensão na beleza cotidiana retratada em seus filmes: existindo num nível fenomenológico, o conhecimento do mundo e da vida, em seus filmes, é extremamente dinâmico, pois mesmo com todo o controle, não se deixa de estar sujeito às intempéries do acaso. Ao se assistir um filme de Sang-soo Hong  somos solicitados a ocupar uma posição que combina fruição, prazer e tensão – atestado da sofisticação, inventividade, não-acomodação e generosidade de seu cinema.

Contudo, o que se observou nos últimos dois filmes do cineasta a estrearem em circuito no país – Hahaha e A Visitante Francesa – foi uma espécie de descompasso na equilibrada equação de outrora. Em ambos os casos pode-se observar um fascínio de Hong pelos seus jogos formais, que acabaram de certa forma se sobressaindo ao resto. Substituiu-se a beleza tensa do registro da “vida em suspensão” pelo ato de frisar uma engenhosidade da abordagem. Nesse cenário, alguns recursos clássicos do diretor – como a repetição de cenas e planos, com algumas pequenas alterações em objetos ou falas – que até então estavam à serviço de uma abordagem inquietante, pareceram se esvaziar, bastando-se por si mesmos. Daí a sensação de inocuidade em relação às diversas personagens vividas por Isabelle Huppert em A Visitante Francesa ou ao presente cristalizado e inerte, que relata um passado cheio de gracejos – e o qual já se prevê todas as artimanhas de construção de gags e desencontros, e por conseguinte de todo o desenrolar – em Hahaha.

Filha de ninguém, último filme de Sang-soo a entrar em cartaz no Brasil, não só reestabelece o equilíbrio perdido, mas investe e avança, de forma decisiva, em um ponto muito caro a filmes anteriores do diretor: a captação das passagens, mudanças e ambivalências oriundas de uma percepção patética da condição humana. O que era constantemente evocado em O Poder da Província de Kangwon, A Virgem Desnudada por seus Celibatários e Turning Gate, é capturado de forma visceral em Filha de ninguém,  configurando provavelmente a obra de maior impacto de Hong.

O melhor exemplo dessa captura visceral do filme, reside nos três momentos distintos em que ouviremos o segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven (numa gravação precária possuída por um dos personagens). No primeiro deles, a música vem no intuito de criar uma aura para um momento de convivência harmoniosa. No segundo, poucos minutos depois, o surgimento da mesma música, na mesma sequência, já demarca um sentimento de abandono e desespero, vivenciado por um dos personagens. Por fim, o terceiro momento captura exatamente a passagem e a coexistência entre os sentimentos esboçados nos dois momentos anteriores, com o trecho da sinfonia, aliado ao recurso formal da repetição do enquadramento, modulando essa transição. Aliados a essas três aparições da sinfonia, vários outros momentos surgem no intuito de capturar essa inconstância entre o solene e o trivial,  entre uma ambição de seriedade e uma concretização desajeitada/tortuosa, pólos que configuram a concepção patética da vida.

A síntese dessa concepção reside em toda a experiência de Haewon, a filha de ninguém do título. O “estado de suspensão” de sua vida decorre de uma série de fatores: sua mãe está de mudança para o Canadá; seu relacionamento – com um professor – está em vias de terminar e ainda por cima foi descoberto por seus colegas; ela quer sair de casa mas não consegue se sustentar e por aí vai. Haewon é um corpo que deambula por espaços, nos quais se encontra evidentemente deslocada. O desajuste desse corpo, o desarranjo e não conformação das situações mostradas, soam ainda mais estranhos diante da constatação de que estamos, supostamente, acompanhando uma narração pessoal e subjetiva da protagonista. Esse estranhamento salta aos olhos na cena em que Haewon, os colegas e o professor estão jantando, ela sai para ir ao banheiro e a câmera permanece à mesa, capturando uma conversa na qual os colegas explicitam o porquê de não gostarem da protagonista.

 O fato é que Hong não se rende a uma tentadora adesão fácil à experiência de sua personagem (muito diferente de Frances Ha, que possui uma protagonista vivendo um momento da vida parecido com o de Haewon). Ele mantém uma distância que, ao longo do filme, vai promovendo pequenas cisões, tal como nesse estranhamento mencionado, brechas por onde o fluxo entre os polos do patético irá se estabelecer.

É na captura dessa inconstância, dessa alternância entre os polos, em conjunto com uma constatação sensível do patético, que o cinema de Sang-soo Hong reencontra e amplifica sua visceral beleza tensa.

Guilherme Savioli

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