Ano VII

invenção da história

terça-feira dez 17, 2013

Invenção da história: a Alemanha fraturada de Fassbinder

Por Marcelo Miranda

Rainer Werner Fassbinder nasceu no fim de maio de 1945, exatamente um mês depois de Adolf Hitler morrer num bunker em Berlim. Mais que um “filho da guerra”, Fassbinder é um filho dos estertores da guerra. Não é por menos que muitos pesquisadores e críticos relacionam o choro do bebê no prólogo de O Casamento de Maria Braun ao choro de um alegórico Fassbinder nascendo no meio dos escombros de um conflito que destruiu a Alemanha – física e moralmente. O cineasta, portanto, cresceu durante a reconstrução do país e no meio do trauma, da humilhação e da melancolia que se abateu sobre a população em geral. Não era apenas uma nação ferida pelas potências contra as quais lutara; era a nação de onde brotara o nazismo, de onde Hitler mandara executar milhares de pessoas, de onde bombardeiros saíram com o intuito de destruir e matar o máximo que pudessem. Houve, nas décadas seguintes a 1945, uma névoa enegrecida cobrindo cada cabeça conscienciosa da Alemanha.

Fassbinder respondeu pessoal e artisticamente a esse contexto. Por mais que tenha realizado dezenas de filmes sobre conflitos pessoais, dramas amorosos, crises existenciais e metáforas sobre uma natureza humana podre e desiludida, ele jamais deixou de falar essencialmente de seu país – ou melhor, da história de seu país. O personagem alemão dos filmes de Fassbinder é aquele alemão que vive num país fraturado e arrasado e precisa lidar com uma herança que parece pressionar o crânio até fazê-lo rachar em vários pedaços. Várias foram as maneiras de o realizador colocar em cena este tipo alemão – quase nenhuma delas em chave realista ou “documental”. Fassbinder era um cineasta de artifícios, de estratégias de narração e interpretação de atores cujo propósito estava muito mais na chave da ironia e do pastiche, por vezes da crueldade (Precauções Diante de uma Prostituta Santa ou O Assado de Satã), ou no entendimento pleno do significado do “ser alemão” ou “ser estrangeiro” através de flertes com o gênero cinematográfico (O Direito do Mais Forte é a Liberdade ou O Medo Devora a Alma).

Apesar de transitar vez ou outra por aspectos históricos ao longo da carreira (Whity, O Soldado Americano, Effi Briest), foi somente nos quatro últimos anos de sua prolífica produção que Fassbinder efetivamente se debruçou sobre a história da Alemanha num sentido panorâmico. O termo “panorama” aqui é utilizado apenas por motivos cronológicos (a Segunda Guerra Mundial será o tema central de quatro filmes), pois Fassbinder fará sempre o movimento de recortar o fragmento individual do momento da vida de um personagem e inseri-lo no movimento maior da história do país – e, a partir desse experimento, submeter tal personagem a todo tipo de penúria possibilitada (antes, durante ou depois) pelo conflito. A estratégia, tão narrativa quanto estética (na escolha das luzes, cores, enquadramentos e encadeamento das imagens pela montagem), visava a fazer com que Fassbinder transmitisse através de seus “filmes históricos” menos a noção de autênticas reconstituições do passado do que simplesmente a recriação desse mesmo passado. Não é que ele quisesse esgotar a história; Fassbinder tentava, de fato, inventar uma história, apropriando-se dos sentimentos ambíguos do pós-guerra para personalizar um olhar ao passado e fazer com que seu presente (final dos anos 1970) assumisse – e, por definição, contivesse – o que havia ocorrido quatro décadas antes. “Simplesmente nós alemães aprendemos tão pouco a história da Alemanha que precisamos compensar uma falta de informação de base, pelo menos eu, e comigo uma grande parte de minha geração, espectadores ou realizadores de filmes. Trata-se de tornar a realidade mais inteligível”, disse o cineasta numa entrevista em 1980.

Fassbinder fará, então, em O Casamento de Maria Braun (1979), Lili Marlene (1981), Lola (1981) e O Desespero de Veronika Voss (1982), sua radiografia autoral dos anos de guerra na Alemanha. Trespassando esse quarteto, veio a monumental série televisiva Berlim Alexanderplatz (1980), na qual o cineasta adapta o romance de Alfred Döblin lançado em 1929 e que tratava das consequências da Primeira Guerra Mundial na sociedade urbana alemã. Quando Döblin escrevera o livro, o autor ainda não tinha se deparado com a ascensão nazista, mas sua história retratava personagens absolutamente propícios a serem seduzidos pelo regime levado a cabo por Hitler. Ao se apropriar do romance em fins dos anos 70, Fassbinder carrego consigo outros tipos de questionamentos se comparado a Döblin. Por mais que o cineasta frisasse ter se mantido fiel ao espírito do livro, a atmosfera de cada episódio de Berlim Alexanderplatz carrega o prelúdio do pesadelo que se abateria poucos anos depois da ação principal do enredo e no qual toda aquela fauna de personagens miseráveis – capitaneada pelo fracassado e patético Franz Biberkopf – parece estar caminhando rumo a um abismo incontornável. A história vai mais lenta em Berlim Alexanderplatz, mas não menos presente nem sufocante.

Será no cinema que Fassbinder dará seu “testemunho” – sua interpretação retroativa – da Alemanha pré e pós-guerra. O olhar do cineasta ficará marcado pelo despojamento tanto quanto pela controvérsia de captar o fascínio do nazismo sem melindres, especialmente em Lili Marlene, filme pelo qual ele será taxado por muitos como “irresponsável”. Considerando que Lili Marlene custou uma fortuna (mais de dez milhões de marcos da época), sendo boa parte do dinheiro para recriar grandes cerimoniais e festas luxuosas dos nazistas, acusações de que o filme era “propagandístico do antigo regime” não foram raras.

O que o diretor assume em Lili Marlene, porém, é a desespetacularização de certa ideia em torno do nazismo, utilizando, para isso, justamente a espetacularização característica do regime totalitário. Disse ele em outra entrevista: “Determinadas possibilidades de se mostrar o nacional-socialismo também podem ser fascinantes (…) sem a consciência de todo esse desenvolvimento problemático. Diante daquilo que nós não podíamos saber, simplesmente fechávamos os olhos. Então resta saber o que é esta estética fascistoide que, até certo grau, tem seu encanto”.

Fassbinder joga com a noção dupla de desconhecimento em Lili Marlene: o seu, enquanto alemão criado no pós-guerra e privado de informações sobre o passado do país devido à cortina de fumaça que se criara em torno disso; e o da protagonista do filme, a cantora Willie (Hanna Schygulla), cuja ascensão se dá juntamente com o advento do nazismo, que adota a canção-título como espécie de hino da salvação e da esperança a todos os cidadãos alemães dispostos a vencerem a frustração de anos de sofrimento (anos estes ilustrados, em parte, em Berlim Alexanderplatz). Willie se encanta pelo sucesso e não questiona a quem ela está servindo; simplesmente se deixa levar pelo movimento da massa que não cansa de ouvi-la e se dispõe a conhecer pessoalmente o líder (Hitler) que tanto a estimula a continuar. Fassbinder: “O Führer está a favor dela. Ele era algo incrível para as pessoas, algo grandioso”.

Se Lili Marlene tem seu centro no ápice da personagem, O Casamento de Maria Braun foi uma espécie de “negativo”, um olhar para o outro lado, o dos sobreviventes das ruínas, o das mulheres deixadas viúvas pelo conflito tendo que recomeçar a vida a partir de quase nada. Significativamente protagonizado pela mesma Hanna Schygulla, o filme – apesar de inúmeros percalços e tumultos durante as filmagens – tornou-se o maior sucesso comercial na trajetória de Fassbinder. É impressionante constatar que, em meio ao caos nos bastidores (a leitura rápida de qualquer relato biográfico sobre o cineasta dá conta de como as coisas se deram de maneira realmente atabalhoada), tenha surgido essa peça artística de tamanha perfeição e acerto, uma pepita bem-cuidada na qual cada detalhe de cenário e corpo soma para um resultado de fato perturbador. A personagem-título é uma sobrevivente a cada novo plano do filme: por apenas conseguir se sustentar e batalhar pela própria dignidade, Maria é vitoriosa, mas jamais alcançará, de fato, seus objetivos. Na verdade, quando ela achar que os alcançou, o passado (a guerra, o trauma, as dores vencidas) retorna ao lar para transtorná-la. Fassbinder faz com que o marido “ressuscitado” de Maria Braun seja ele próprio a memória de um passado que a Alemanha tenta apagar ou fazer com que ninguém mais se lembre. Mas esse passado paira no espaço, é carregado pelo vento e pela memória e, de repente, pode adentrar a sala no momento mais inapropriado (qualquer momento). E esse passado é concreto e precisa ser encarado. Maria Braun o encara e fracassa diante dele. Seu suicídio (ou acidente?) é a desistência, o fecho de uma trajetória que não encontra mais caminhos diante desse passado incômodo cuja existência aparentemente não deixa mais espaço para o olhar do futuro. A explosão final em O Casamento de Maria Braun (título, aliás, que contém a falsa noção de algo perpétuo e feliz) materializa a impossibilidade desse futuro e concretiza uma visão sombria para a sociedade alemã do pós-guerra.

O aspecto fatalista previsto no desfecho de O Casamento de Maria Braun ganha corpo em preto e branco em O Desespero de Veronika Voss, outra pepita fassbinderiana de alta lapidação e brilho. De novo a protagonista (desta vez na pele de Rosel Zech) incorpora os males da Alemanha sob o jugo das dores advindas da derrota na guerra. Em clima noir, essa mulher é investigada por um jornalista. Veronika é reflexo direto de Willie (a cantora de Lili Marlene), cujas glórias do passado durante o nazismo agora são apenas sombras diante dos destroços que se tornaram o país e toda a sociedade. Viciada em drogas, Veronika perde a autonomia, a moral, a dignidade, em prol de tentar recriar artificialmente o sucesso de um passado recente que ainda reverbera em sua própria presença em cena. Em paralelo, Fassbinder narra a história de Treibel, antiquário aposentado que, junto com a esposa, é também viciado em drogas e as consome da mesma fornecedora de Veronika. O detalhe de que os dois velhinhos são judeus sobreviventes dos campos de concentração de Treblinka é fundamental para a visão histórica inserida aqui por Fassbinder. Quando tanto eles quanto a ex-cantora sucumbem diante da falta de drogas e se suicidam – marcando, junto a isso, o fracasso do jornalista, figura proeminente e moderna de uma nova Alemanha surgida do pó da guerra –, o ciclo parece se fechar para todos, conforme apontado pelo jornalista e biógrafo Robert Katz no livro O Amor é Mais Frio do que a Morte: “Um Estado democrático substituiu (no pós-1945) o mais repugnante sistema totalitário de que se teve notícia, mas para certas pessoas que vivem fora dos limites aceitáveis pela justiça, esse Estado é inabitável. (…) Veronika floresceu quando Hitler estava no poder, ao passo que, nessa época, os Treibels sofriam no corpo e na alma os horrores de um campo de concentração. O destino que os espera na nova Alemanha é o mesmo para eles todos”.

Não são necessariamente apenas pessimismo e desilusão que são percebidos em O Desespero de Veronika Voss, mas uma leitura muito astuta e precisa de Fassbinder em torno do imaginário proibido em relação às causas, efeitos e consequências da guerra nos homens comuns. Veronika foi uma estrela na época de Hitler, mas é a mulher que sobrevive agora; o jornalista da área de esportes tenta mudar a carreira ao encontrar Veronika, mas não dá conta do peso histórico que a cerca e volta ao noticiário esportivo; o suicídio da personagem, aqui, é como a explosão em O Casamento de Maria Braun ou a impossibilidade do amor de Willie no final de Lili Marlene: o presente contém o passado e, por isso mesmo, distancia-se do futuro – ou, pelo menos, de um futuro ambicionado por aqueles que foram protagonistas do passado e agora são sombras no presente, sem espaço nem caminhos por onde percorrer.

As mesmas percepções podem ser sentidas em Lola, cujo enredo se ambienta uma década depois da guerra, quando a Alemanha recebe estrangeiros para ajudarem a pensar a reconstrução física e econômica. Marie-Louise (interpretada por Barbara Sukowa) é a mistura de Maria Braun com Willie, equilibrando o cotidiano de trabalhadora e mãe solteira com o de dançarina de cabaré nas noites alemãs. Ela se envolve com um intelectual que inicialmente não sabe de sua dupla função. Longe de qualquer ilusão de ser moldada como heroína (e seguindo a falta de melindre tão característica de suas personagens-“irmãs” Willie e Maria), a jovem assume os poderes do corpo, do olhar e da sedução para manipular o homem apaixonado. É a única forma de essa mulher, explorada por todos os lados – personificação exuberante da Alemanha daquele período, com seu filho a tiracolo (Fassbinder?) –, conseguir driblar todos aqueles que tentam abatê-la e torná-la mais frágil, menor e menos importante. “A mulher, depois da reconstrução alemã, tornou-se de novo, quando muito, objeto de prazer barato” (publicado no Le Monde nos anos 1980). A postura ativa e maledicente de Lola é a maneira particular como Fassbinder enxerga o que a Alemanha precisa ser se quiser manter-se íntegra num cenário maior. Não à toa, de toda a quadrilogia sobre a guerra, Lola é o filme mais colorido e o de desfecho menos desolador, ainda que igualmente melancólico.

Nesse breve ciclo de quatro filmes, Fassbinder fez de sua “projetada ‘história completa’ da Alemanha moderna”, conforme Robert Katz, “uma denúncia da própria cultura”. Fassbinder estava igualmente inventando uma cultura para si mesmo e para toda uma história do cinema e da arte.

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