Ano VII

literatura e cinema em fassbinder

terça-feira dez 17, 2013

Literatura e cinema em Fassbinder: uma primeira aproximação

Por Cesar Zamberlan

A relação de Fassbinder e seu cinema com a literatura foi notadamente dialética e criativa. Fassbinder, ao contrário de muitos cineastas, nunca se acomodou numa suposta facilidade de transposição do texto literário para o cinema, a partir de uma estrutura narrativa pronta, porque sabia que cinema, tv, teatro e literatura são meios artísticos totalmente diferentes, com regras e gramáticas próprias.

A este respeito escreveu, num texto de 1982, intitulado “Notas sobre Querelle”, três parágrafos conclusivos:

 

A filmagem de obras literárias não é, como se pensa frequentemente, a tradução de um tipo de linguagem (Literária) para uma outra (cinematográfica). Os filmes baseados em obras literárias não tem que reproduzir as imagens que o leitor formou ao ler. O que também seria totalmente absurdo, pois cada leitor projeta suas próprias fantasias, e há tantas interpretações do livro quanto leitores. 

 

A obra literária também não tem uma realidade objetiva e nenhum filme sobre um tema literário deve pretender ser a visão de quem o escreveu e funcionar como modelo para a imaginação dos leitores. A tentativa de fazer com que o filme seja um substituto da obra literária resultaria em algo medíocre e vazio.

 

Um filme que se ocupe da literatura e da linguagem deve tornar claro e transparente esse confronto, não permitindo que a fantasia se transforme em algo vulgar. Fazendo com que se perceba que ele é mais uma possibilidade de trabalhar sobre uma forma artística já elaborada. Ele deve ter uma atitude questionadora da literatura e da linguagem, em geral, como do conteúdo e do comportamento do autor, em vez de simplesmente legitimá-lo através da linguagem.

 

Enfrentamento é a palavra chave no projeto dialógico ao qual Fassbinder se propõe. E, nesse sentido, sua busca não é por enredos ou textos que lhe toquem ou que tratem de situações que se encaixem no universo que pretende explorar; Fassbinder vai ao encontro do autor e sua época, e não, apenas, do seu texto, desafiando-o e à sua obra a algo parecido com um duelo artístico, emulando aspectos principais que o levaram a escolher a obra e aclimatando-os ao seu universo fílmico: ao universo fassbinderiano.

Tal projeto criador parece – arrisco uma hipótese ou uma provocação – muito próprio a diretores cuja origem está ligada ao teatro, atividade na qual o processo de criação artística e sua relação de exploração do texto garantem um corpo a corpo com a obra muito mais intenso do que parece ser, via de regra, o do cinema, e por ser o cinema uma atividade mais cara, mais industrializada e mais acelerada, sobretudo, no momento da filmagem.

Fassbinder não só vem do teatro, dividindo desde sempre o palco com a câmera, como teve como mestre, um gênio chamado Straub, cujo trabalho com o texto e com atores que realizam tal texto foi e é dialético ao extremo, construindo filmes que são em sua essência um enfrentamento entre imagem e texto.

Nesse sentido, valeria muito a pena uma análise mais detida em dois filmes que, ainda que guardem dez anos entre si, apresentam uma relação entre texto literário e texto adaptado para o cinema bastante próxima e peculiar: o Effi Briest de Fassbinder, de 1974, adaptando Fontane, no livro homônimo, e o filme Relações de Classe de Jean Marie Straub e Danielle Huilet, adaptando Kakfa e seu Amérika ou O Desparecido, filme de 1984.

Em ambos, as situações dramáticas se impõem limpas de qualquer narração que as suavize e naturalize. Pensando na distinção entre cena e sumário narrativo de Norman Friedman em O Ponto de vista da Ficção, ou seja, sumário como “um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo certo período de tempo e uma variedade de locais” e a cena, construída “com os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo”; temos nos dois filmes um conjunção de cenas duras com uma atuação não-emocional do atores criando um distanciamento em relação ao texto e colocando no espectador num lugar que, ainda que menos confortável ou cômodo, é mais privilegiado em relação a especificidade do texto e da cena, fazendo com que o discurso se construa com a mesma força do literário, não sendo engolido pela performance do ator e nem traduzido ou diminuído como simples decalque do livro.

Indagado por Christian Braad Thomsen até que ponto suas adaptações literárias seriam parecidas com as de Straub, Fassbinder responde que há, sim, uma relação, mas que Straub parece trabalhar contra o seu público. Mas se Fassbinder, em tese, facilita mais a vida do seu espectador, procura-o mais, nas suas principais adaptações de literatura essa busca não chega a tornar tais adaptações obras de fácil assimilação.

No já citado Effi Briest, ele revela que se fosse um filme para a TV teria que modificar algumas situações. Sendo um filme para cinema, acreditava ele que encontraria um espectador especial, mais consciente, mais aberto à experiência que propunha sem ter necessariamente que se identificar com as personagens, algo que ocorre enquanto estratégia em boa parte de seus filmes que igualmente tematizam a opressão às mulheres na sociedade.

 

Berlin Alexanderplatz

Berlin Alexanderplatz é a outra grande adaptação de Fassbinder para o cinema e, como Effie Briest, é fruto de um longo processo de maturação do texto o que acabou tornando o projeto muito sólido quando levado para as telinhas, no caso, para uma minissérie de 14 capítulos para a TV. Uma outra versão, menor, seria feita para o cinema, inclusive com outros atores, mas nunca saiu do papel. A relação de Fassbinder com o texto é enorme.

O livro de Alfred Döblin é um dos livros da sua vida, marcou sua juventude e está presente, indiretamente, em boa parte de seus filmes que acabam fazendo alusão à obra ou mesmo tendo herói Franz Biberkopf como personagem. De certa forma, Fassbinder se identifica com Franz Biberkopf e construiu boa parte de seus personagens tendo o personagem de Döblin como modelo, bem como orientou sua vida, inconscientemente, tendo o livro como um dos pilares da sua trajetória. Escreve Fassbinder em março de 1990 sobre a sua segunda leitura do livro:

A cada página ficava mais claro que uma grande parte da minha vida, meu comportamento, minhas reações, muito do que eu tinha como coisa própria estava descrito por Döblin. Eu tinha, simplesmente, transportado a fantasia de Döblin para minha vida, inconscientemente. Então foi novamente o romance que me ajudou a superar uma crise e trabalhar em alguma coisa que pudesse vir a ser uma identidade.

 

Em relação ao processo de adaptação, como não podia deixar de ser, existe um conjunto de procedimentos adotados por Fassbinder que transformam o material literário em fílmico fazendo, mais que adaptação, uma verdadeira transmutação de códigos, e mais que isso de gêneros que em sua gênese lembram os próprios procedimentos de Döblin ao criar a sua obra; mas se no primeiro temos uma reunião de diversas vozes e gêneros numa colagem moderna, noutro, em Fassbinder, há uma centralidade maior das ações e discursos.

O livro de Döblin, publicado como folhetim entre 8 de setembro e 11 de outubro pelo Frankfurter Zeitung e em livro no mesmo ano pela editora S. Fischer na Alemanhã, se estrutura – e tento resumir de uma forma rasteira dada a elaboração complexa e preciosa do livro – a partir de um modelo tradicional na literatura alemã que é a Moritat, um tipo de canção ou balada sobre acontecimentos do cotidiano como catástrofes e crimes. Porém, como é típico da literatura moderna, o escritor mistura essa forma a outros gêneros, sobretudo o romance épico, o biográfico, o bíblico e até o romance picaresco, e incluindo outras e diversas formas discursivas, como a colagem de anúncios e de reportagens de jornal, além de comentários que lembram intertítulos de filmes mudo, além de alternar vozes narrativas polifônicas, as apontadas por Friedman no ensaio já citado, e tudo isso, usando, retalhando e retrabalhando influências literárias que vão de Homero e Cervantes até Dostoievski e, supostamente, Joyce, cujo Ulisses foi lançado anos antes.

Berlin Alexanderplatz não deixa de ser uma epopeia moderna, mas como aponta Gabriela Bitencourt na sua dissertação de mestrado sobre o livro de Döblin, “Fraturas na metrópole: objetividade e crise no romance em Berlin Alexanderplatz” – dissertação que infelizmente ainda não virou livro -, o elemento épico é reapropriado a partir de uma nova forma de organizar a narrativa. Forma que, segundo ela, abandona o modelo narrativo épico, “que pressupõe um narrador soberano, que domina à distância o mundo narrado”, fazendo com que os acontecimentos surgissem no texto como existentes e não narrados, naquilo que ela chama de Kinostil, estilo cinematográfico, “que realizaria narrativamente o foco sobre o objeto”, de forma que a narração não seja nunca digressiva e mais lenta em decorrência das divagações do narrador. Da mesma forma, aponta Gabriela no seu brilhante estudo, “a forma neutra cristalizaria no texto o reflexo da realidade, na medida em que mimetizaria a observação do cientista, criando um steinerme Stil (estilo petrificado)”.  

 

Coisificando, embrutecendo (no sentido da “matéria bruta”) a matéria do texto e dissimulando a existência de um narrador, o texto criaria a ilusão de um imediatismo da relação entre o leitor e o conteúdo representado no romance, e recuperaria assim seu conteúdo épico.

 

O incipit do livro com Franz Biberkopf deixando a prisão de Tegel em Berlin no ano de 1928 já da conta, em certa medida, desta estratégia e do caráter épico e cinematográfico do livro:

Estava diante do portão da prisão Tegel, livre. Ontem ainda passava o ancinho na horta de batatas lá de trás com os outros, com uniforme de presidiário; agora andava com um casaco amarelo de verão, lá atrás eles catavam batatas, ele estava livre. Deixou bondes e mais bondes passarem, pressionava as costas contra o muro vermelho e não saía do lugar. O guarda do portão passou algumas vezes por ele, apontava-lhe seu bonde, ele não ia embora. O momento horrível chegara [horrível, Franze, por que horrível?], os quatro anos acabaram. Os batentes de ferro preto do portão que observava há um ano com crescente repulsa [repulsa, por que repulsa?] estavam fechados atrás dele. De novo o rejeitaram. Lá dentro, os outros cumpriam pena, carpintejavam, envernizavam, selecionavam, colavam, ainda tinham dois anos, cinco anos. Ele estava parado no ponto do bonde.

 

Como acontece com todos os escritores modernos que tiveram uma relação com o cinema, direta ou indiretamente – caso mais notório o de Kafka contado no livro Kafka vai ao cinema de Hanns Zischler -, é bem presente a influência do cinema não só na concepção do texto, mais fragmentado e imagético, como na articulação dos períodos, parágrafos e capítulos naquilo que se aproxima da montagem cinematográfico dos planos. Ao analisar o livro V de Berlin Alexanderplatz, Gabriela aponta relações entre os parágrafos e uma planificação cinematográfica que dá conta de trechos em close up, outros em panorâmicas, e mudança de eixo narrativo que remetem ao cinema. Ela lembra ainda de possíveis associações entre o texto de Döblin e filmes contemporâneos ao diretor como é o caso de Berlin, Sinfonia de uma metrópole de Walter Ruttmann, de 1926, ainda que não se saiba se Döblin chegou a ver de fato o filme. Fechando estas relações trazidas à luz pela dissertação de Gabriela Bitencourt, Döblin teria tentado vender um roteiro ao cinema, mas tal oferta foi recusada; o escritor, no entanto, sempre foi crítico em relação à sétima arte, dizendo que o cinema era um entretenimento de massa e não uma arte e que este destruiria a imaginação por centra-se num único nível, o óptico.

Voltando a Fassbinder, ele transforma os nove capítulos do livro em 13 episódios, sendo o último um epílogo. Recria com bastante liberdade os eventos de Döblin nos episódios, sendo que as alterações mais relevantes são a criação de uma personagem, Frau Bast, a senhoria que tem para com Biberkopf uma relação mais maternal – no livro, esta é uma voz subconsciente do próprio personagem – e a junção dos apartamentos que Franz mora num único, o alugado pela tal senhoria.

Se no livro, temos, claramente, dois personagens: o concreto e coletivo que é a cidade, a partir da Praça Berlin Alexanderplatz, e o individual e social, também representando um coletivo, que é o herói decaído Franz Biberkopf; no filme, a figura humana é a figura central. Fassbinder até pensou em interpretar o personagem, mas acabou desistindo da ideia, ainda que seja dele a voz que faz a narração dosl episódios narrados como consciência do personagem.

Susan Sontag num belo ensaio sobre o filme destaca duas coisas importantes sobre a adaptação. Primeiro aponta a equivalência temporal, se pensarmos na duração dos eventos, entre livro e filme. Fato que possibilita um embate melhor com o texto se pensarmos em quão difícil seria sintetizá-lo em um filme de duas horas. A segunda é a menção a Greed, Ouro e Maldição, de Stronheim. Para ela, Berlin Alexanderplatz é o Ouro e Maldição de Fassbinder. Ela lembra que Stronheim ao adaptar o livro de Frank Norris também projetara um filme de dez horas e, além disso, há enormes similaridades entre as obras. O ensaio faz parte do livro Questão de Ênfase.

Um estudo minucioso do texto literário e fílmico ajudaria a entender melhor como Fassbinder recria com um apuro raro neste tipo de projeto cada elemento dado por Döblin. Revelaria que o fez com uma consciência clara do que se apropriava e de como se apropriava tendo em vista a transposição para TV. Tal operação demandaria, porém, tempo, anos de estudo, o que impressiona – e pode ser dito nesta primeira e rápida aproximação – é como Fassbinder aclimata um livro que é, no seu aspecto mais moderno, uma colagem de gêneros, incluindo o cinema, ao seu universo fílmico, universo influenciado pelo melodrama sirkiano e que trata das questões socais que lhe eram importantes e que permeiam sua obra a ponto deste parecer um texto seu e em nenhum momento algo estranho.

Parece em certa medida fácil transpor um livro cinematográfico como o de Döblin, mas como revela Fassbinder na citação que abre este artigo, ele como autor compromissado não cede a essa falsa comodidade e percebe que os mesmos mecanismos que em tese são facilitadores podem soar vazios na construção do filme porque são dados por códigos diversos do literário.

E muito à vontade com todas as vozes do livro, com todos os discursos que se interpenetram na narrativa literária, Fassbinder, de forma oposta a de Döblin, recolhe e centra no filme vozes narrativas que no livro eram difusas e muito mais polifônicas, tendo em vista que tais situações agora são materializadas por atores que encarnam os personagens e por um ponto de vista central que é o da câmera.

Sobre a escolha dos atores, ele ressalta que precisava de atores que ajudassem a construir a identificação com o público – de TV é bom lembrar, o que implica num outro tipo de experiência com o filme -, pois o texto, o do roteiro criado por ele, já era bastante literário.

Outro ponto, entre outros tantos que mereceriam ser citados, é a maneira como Fassbinder traz a tensão da cidade para dentro das cenas que se passam no quarto ou nas tabernas. Há sempre um neon ou um ruído sonoro que nunca desconectam o elemento externo, a cidade, ao interno. Qualquer que seja o espaço fechado, a impressão que se tem é que as paredes, como os personagens, estão sempre por um fio em uma sociedade que está em todo momento prestes a desmoronar.

Experiência única, tanto literária como cinematográfica, não seria exagero algum colocar Berlin Alexanderplatz como uma das melhores adaptações já feitas de um livro para o cinema/tv, a frente de Effie Briest.

Fechando este texto, vale dizer que Além de Effie Briest de Fontane; de Berlin Alexanderplatz de Döbllin; Fassbinder também adaptou Nabokov em Despair; Ibsen em Nora Helmer; Genet em Querelle, só para ficarmos nos autores mais famosos.

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br