Ano VII

azul é a cor mais quente

quarta-feira dez 11, 2013

Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d'Adèle, 2013), de Abdellatif Kechiche 

Azul é a Cor Mais Quente, do tunisiano radicado na França Abdellatif Kechiche, premiado com a Palma de Ouro em Cannes, teve enorme repercussão mundial devido, sobretudo, à polêmica envolvendo as cenas de sexo entre as protagonistas. E, mais uma vez, o suposto escândalo, ótimo do ponto de vista do marketing, acaba encobrindo as poucas qualidades e os muitos problemas da obra, que, ainda que seja a mais bonita e refinada esteticamente do diretor, está longe de ser o melhor filme que o controverso Kechiche dirigiu.  

Conhecido por filmes nos quais a questão social é preponderante – a questão dos imigrantes em O Segredo do Grão e A Esquiva e a questão racial em Vênus Negra –, Kechiche, ao adaptar essa história em quadrinhos sobre a trajetória e formação de identidade de uma adolescente francesa, parece disposto, agora, a confrontar dois mundos: o mundo simples de Adèle e o mundo mais “refinado” de Emma, por quem Adèle se apaixona.

O cruzamento entre estes dois mundos ocorre quando Adèle, ao atravessar uma rua vê Emma e seu cabelo azul, o choque é tamanho que Adèle quase é atropelada – no final do filme, isso ocorrerá, e não se trata de um spoiler. Logo depois, Adèle passa a sonhar com a moça de cabelo azul e se vê às voltas com a sempre complicada afirmação sexual adolescente, afirmação que a levara a outras travessias: da identificação e aceitação sexual, e depois do contato com um mundo diferente do que estava acostumada, seja do ponto de vista social, econômico e cultural, e não apenas sexual.

E no contraponto entre dois mundos, claramente demarcado pelo diretor, reside o problema do filme, uma simplificação que parece marcar notadamente uma visão e um juízo moral. Explico. Kechiche aponta, não sem toda razão, para uma artificialidade no discurso de Emma e dos artistas e “intelectuais” à sua volta: a artificialidade do cabelo azul. Adèle não consegue se enquadrar neste meio. Até aí tudo bem, mas quando o filme relaciona tal posição, afetada e artificial, e um tanto caricata, à opção homossexual da personagem e dos amigos “modernos”, Kechiche reforça, no discurso fílmico, um sutil, embora não velado, preconceito com relação à homossexualidade, explicando-o por uma suposta afetação, por uma artificialidade, por uma escolha “anti-natural”. Tal discurso aparece de modo claro no final do filme com todos os desdobramentos da trajetória de Adèle, que como diz a sinopse do filme, “cresce, procura-se, perde-se, encontra-se…”.

Visualmente, tal contraponto entre classes se dá metaforicamente a partir da relação com a comida em quatro jantares. Em duas cenas temos a família simples de Adèle comendo uma macarronada; a primeira sem Emma, logo no início do filme, e filmada de modo mais glutão, com a câmera fechada na boca dos personagens – aliás, a boca é uma imagem sempre muito reiterada no filme – e a segunda, de modo mais contido, quando Adèle leva a “amiga” para conhecer seus pais “caretas”. O terceiro jantar e fundamental pelo contraponto que o diretor enseja se dá a partir da degustação das ostras, quando Adèle é apresentada à sofisticada e mente aberta família de Emma. Uma quarta sequência amarra essas três. Nela, numa recepção para Emma e amigos na qual o prato principal é a macarronada feita por Adèle, macarronada agora com outra roupagem, um ator, árabe, amigo de Emma – que depois, na lógica de Kechiche, percebendo o artificialismo deste mundo das artes e das modernidades se tornará corretor de imóveis -, pede a Adèle que deixe de servir os outros, indagando-a sobre o modo como preparou o molho e dizendo que, com certeza, ela usou tomates da feira para fazê-lo. Tal diálogo, o único momento em que Adèle não se sente deslocada diante dos finos e inteligentes amigos de Emma, cria uma espécie de bolha para Adèle em meio a tantas falas e gestos esnobes, e se contrapõe às cenas em montagem paralela da festa na qual Emma se derrete para Lise, com quem ficará no final, numa alusão concreta naquele momento à quebra de contrato da relação e infidelidade, o que cairá depois nas costas de Adèle, – estratagema, aliás, bastante perverso do filme e nem sempre observado pelo espectador. Fora isso, tal diálogo acabará ecoando no final do filme quando fica em aberto, após o vernissage na galeria, um possível (re)encontro entre ambos, visto que são, na visão de Kechiche, complementares, e isso por pertencerem a um mesmo mundo, ainda que tenham namorado um outro mundo que não é o deles, e visto que são e serão sempre, na visão do diretor, serviçais e explorados da outra classe, tal como foi historicamente a Vênus Negra.

Pela metáfora da comida, pelo sabor marcante e simples do molho de tomate em oposição ao prazer supostamente ou convencionalmente mais sútil e refinado das ostras, Kechiche retoma de certa forma a mesma questão de O Segredo do Grão, quando a filha, para poder ajudar a mãe, dança sensualmente, diante dos olhares gulosos e sexuados da comunidade branca e culturalmente mais sofisticada, entretendo os presentes que esperam a comida: o grão. Kechiche retoma a questão de classes em Azul é a Cor Mais Quente, mas por outro prisma e embora ela não esteja acentuadamente relacionada aos imigrantes, há, de novo, uma crítica forte à cultura branca, iluminista, mas agora e também aos artistas homossexuais.

A impressão que fica é que Adèle, mais que à deriva, como muitos querem, na formação de sua identidade ou à deriva na busca de um sentido para um mundo esvaziado, foi punida, atropelada, por suas escolhas; e nesse ponto Kechiche é bastante conservador e moralista. A opção sexual de Adèle, longe de ser uma opção performativa, de discurso, de afirmação corpórea, para entrar no território teórico de Judith Butler, aqui dado de forma rápida, é uma opção, num primeiro momento, fetichista, “uma adoração pelo azul”, e depois um impulso provocado pela ausência e pelo vazio. A discussão da identidade sexual, da homossexualidade no filme é sempre ou caricata ou rasteira, visando uma pregação que parece didática – a vocação de Adèle, aliás, é ser professora – e paradoxalmente segregacionista.

São belos e vazios os planos com a contraluz nos cabelos dourados e angelicais da personagem; lindos todos os planos fechados no rosto e na boca das personagens; densas, ainda que em duração excessiva, as cenas de sexo; mas tudo isso serve a um discurso bastante tendencioso, sem nuance e o que é pior, camuflado com uma verdade bastante rasa e discutível pelo moralismo que carrega. Não sei como é o texto do HQ que Kechiche adapta, mas independente dele, o texto do filme e a sua articulação fílmica não me convencem e, muito menos, estimulam – vale lembrar que no seu terço final, o filme se arrasta sofregamente e por isso também está longe de ser o melhor filme do diretor.

Como muitos outros filmes e escândalos cinematográficos, premiados em grande festivais ou não, auxiliados ou não pelo marketing dos festivais, Azul é a Cor Mais Quente é só, e nada mais que, um filme pintado de azul. 

Cesar Zamberlan

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