Ano VII

Balanço parcial

terça-feira nov 12, 2013

Balanço breve, parcial e pessoal da 37ª Mostra

Num ano de relativamente poucos filmes vistos durante o período em que a Mostra aconteceu, posso juntar o que vi para e no Festival de Brasília (evento realizado em setembro) e os filmes vistos em cabines antes do evento (para a Folha de São Paulo), totalizando, ao todo, 37 longas (não computados os antigos não revistos dentro da Mostra: Kubrick, Ozu, Person, Zurlini).

Claro que é um número inexpressivo para um balanço que se quer mais próximo do que foi uma edição qualquer de um evento com mais de 200 filmes. Mas não confiaria nos meus próprios julgamentos se tivesse visto muito mais do que isso. E chego a desconfiar de minhas impressões sobre uns dois ou três filmes que vi em dias mais cheios, com quatro filmes vistos.

Tirando esses senões, o que sobra é um balanço extremamente pessoal e parcial (e rápido, por causa das circunstâncias) do que vi na última edição de um dos eventos que me formaram como crítico e cinéfilo (provavelmente "o" evento que me formou): a Mostra Internacional de São Paulo, que acompanho com prazer desde 1989.

Vale lembrar que a maior parte dos filmes mencionados aqui está representada na seção de críticas, com os links colocados em ordem alfabética na página dedicada à 37ª Mostra. Sobre Ilo Ilo e A Ternura escrevi na Folha de S.Paulo (aqui e aqui).

Brasil Anos 2010

Começando pelos brasileiros, reino em que Júlio Bressane (Educação Sentimental, ou Filme de Amor x Tabu) é soberano e Hilton Lacerda (Tatuagem) surge logo depois como uma boa surpresa na direção de ficção. São dois filmes muito fortes sobre sentimentos. Ambos, curiosamente, olham para trás, cada um à sua maneira, buscando lições (ou bases) para o que virá. Ambos são cheios de graça – cinema de invenção, ainda (no caso de Bressane, um desses gênios que provam que ainda é possível ser verdadeiramente imprevisível), e dramaturgia clássica para dar conta de um tema moderno (no caso de Tatuagem) – e são encerrados de maneira um tanto trôpega (no caso de Bressane, lamento o making off final, que dilui a força vista anteriormente; no de Tatuagem, senti, em retrospecto, que o final com o filme em Super 8 prejudica o conjunto). Ambos serão revistos com calma, fora de festivais, pois carecem de maior atenção e reflexão.

Um outro filme cairia bem dentro deste pódio imaginário e instantâneo entre brasileiros. Trata-se de Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes, o casal baiano que já havia feito um dos curtas mais interessantes dos últimos anos, Nêgo Fugido. Ao registrar o sentimento que pairava no ar em 1984, época das Diretas Já, em um grupo de adolescentes, os diretores conseguiram o feito inegável de nos transportar para aquela época, com seus traumas e anseios particulares. Mais do que isso: o filme é carregado de sensibilidade e olhar únicos para os dilemas da idade em confronto com os dilemas políticos de uma geração.

Os outros quatro filmes brasileiros de que gostei entraram na seleção de Brasília, da qual tive a honra de fazer parte: Riocorrente, de Paulo Sacramento; Avanti Popolo, de Michael Wahrmann; Exilados do Vulcão, de Paula Gaitan; e Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro. Há ainda o bom documentário Morro dos Prazeres, de Maria Augusta Ramos, longa que fez parte da seleção de documentários. São todos filmes minimamente interessantes, que fizeram uma seleção brasiliense das mais fortes dos últimos anos.

Vale falar ainda de um filme que não me agradou em quase nada, A Bruta Flor do Querer, de Dida Andrade e Andradina Azevedo, exceto por um único momento incrivelmente verdadeiro: aquele em que o protagonista é chutado para fora de um sebo pelo irmão bruto da menina pela qual ele se apaixonou. Esse pequeno trecho faz a virada do personagem (na verdade, pelo que entendi, um dos diretores), de pessoa irritante e afetada para um coitado digno de compaixão. Ele chora no metrô, numa cena que seria ridícula caso a cena da expulsão no sebo não funcionasse. Essa coragem de se expor ao salva o filme de uma prisão autoindulgente que incomoda bastante.

Abrindo o jogo: filmes muito comentados que não pude ver

A começar por Miss Violence, que pelos relatos deve ser mais uma porcaria vinda da Grécia. Uma pena que um país com tanta história esteja nesse mar de mediocridade cinematográfica. O único filme que vi da delegação grega foi o abaixo da crítica O Garoto Que Come Alpiste. Sobre ele já escrevi, não vou rever nem sob tortura.

Entre os não vistos está também o grande premiado do evento, A Jaula de Ouro, do diretor mexicano estreante Diego Quemada-Diez. A credencial de operador de câmera de Iñarritu e Fernando Meirelles é bastante duvidosa, mas como o filme tem defensores entusiasmados, convém dar uma chance. Outros filmes não vistos e curtidos por alguns amigos e colegas da crítica: Grand Central, Suzanne, Manakamana, Cortinas Fechadas e, acima de todos, E Agora, Lembra-me, o testamento filmado do português Joaquim Pinto. Lamento não ter visto todos esses filmes, mas não muito. Um dia poderei vê-los.

Também não revi sequer um filme do Kubrick, frustrando meu plano original de dar preferência aos filmes dele, a O Deserto dos Tártaros e a Providence. Só esse último eu vi, numa sessão meio descalibrada, puxando para o magenta e traindo um pouco as cores fantásticas do filme original. O Zurlini infelizmente fugiu de mim (já o tinha visto em cópia novíssima, 35mm, na retrospectiva Zurlini, em uma Mostra passada – guardo isso na memória). No caso de Kubrick, dei azar. As melhores sessões aconteceram em dias de aula, ou quando estava viajando. Acontece.

Superestimados

Nesta categoria, temos Ilo Ilo, de Anthony Chen, um dos que chegaram badalados por terem conquistado prêmios em festivais internacionais (no caso, o Camera d'Or do Festival de Cannes). Escrevi sobre ele aqui. Não sei se teria algo a acrescentar. Ao menos neste momento, não tenho.

Lições de Harmonia foi um filme extremamente elogiado por muitos que o viram nas primeiras sessões da Mostra. Vi num dos últimos dias e achei mediano. O tempo todo senti que ali havia apenas um filme muito calculado para festivais, ainda que esse cálculo estivesse atrasado em uns dez anos (isso certamente o favoreceu, já que o padrão de hoje está ainda pior). Incomoda sentir tanto cálculo em boa parte dos filmes selecionados nos festivais. Sei que muitos filmes bons têm também seus cálculos, ainda mais nestes tempos de cartas tão marcadas. Mas alguns disfarçam melhor que outros, e alguns outros compensam em intensidade o que têm de codificado.

O Grande Mestre é o filme mais fraco de Wong Kar Wai, ao lado de As Tears Go By e Anjos Caídos. Ao transportar o wuxia para o seu terreno, algo que ele já fizera com sucesso em Cinzas do Passado, o diretor desta vez se complicou numa série de imagens perfumadas que retomam o caso do amor impossível explorado na trilogia formada por Dias Selvagens, Amor à Flor da Pele e 2046. E Doillon, que chegou com dois filmes, conseguiu a proeza de encantar com um deles (Minhas Sessões de Luta) e irritar com o outro (Um Filho Seu). Sobre o primeiro falarei mais adiante. Felizmente, é o mais recente, o que indica uma bela recuperação. O segundo, anterior na cronologia, não merece muito espaço. Ao menos neste balanço apressado. Basta dizer que a personagem de Lou Doillon, que é insuportável, ainda assim merece coisa melhor que os dois idiotas que babam por ela durante mais de duas horas de projeção.

3X3D, na real, não poderia ser chamado de superestimado, pois ninguém esperava muito do episódio de Peter Greenaway, e o de Edgar Pêra era uma incógnita. O episódio de Godard é mais um capítulo de seu Histoire(s) du Cinema, algo que todos suspeitavam. Como tal, deve ser visto e revisto. 3X3D também pode ser uma soma: espetáculo circense de qualidade duvidosa + um trabalho infanto-juvenil sobre a história do cinema + um curta-metragem que passeia pela história do cinema. Peter Greenaway é meio parlapatão, mas ao menos teve a perspicácia de mandar a real: 3D é circo. O problema é que esse circo que ele propõe não difere muito de aberrações como O Bebê Santo de Macon ou A Última Tempestade. Greenaway é cheio de idiossincrasias. A maior delas, a meu ver, é inofensiva. Ele acredita mesmo que o cinema morreu, e tenta, desde o final dos anos 1980, promover o encontro do cadáver ainda fresco com outras artes. Melhor que seja um curta, pois assim, mesmo sendo meio besta, não chega a cansar, nem irritar. Melhor deixarmos como está. Ele lá, nós cá.

Que mais a 37ª Mostra nos deu de bom?

Além de alguns brasileiros bacanas, tivemos dois filmes francófonos eficientes em suas opções narrativas simples. GriGris, de Mahamat-Saleh Haroun, é um pouco melhor que O Homem Que Grita, filme anterior do diretor (Heitor Augusto pensa diferente, apesar de – como me pareceu – gostarmos de GriGris na mesma medida; ele escreveu sobre este durante a cobertura). A presença de cena do ator e dançarino Souleymane Démé pode ser considerada a responsável pela força do filme. A Ternura é um filme belga simpático da diretora francesa Marion Hansel (a mesma de Se o Vento Levanta a Areia, seu melhor trabalho). O melhor momento é aquele em que a graciosa atriz Marilyne Canto dá carona a Sergi Lopez, e este lhe deixa um bilhete que provoca um belo sorriso. É um desses momentos que de tão prosaicos pode passar despercebido, mas revela a força de um olhar.

Nos documentários, A Fuller Life, de Samantha Fuller, e Double Play, de Gabe Klinger, conseguem resultados desiguais. O primeiro tem uma proposta interessante: amigos e admiradores leem trechos das memórias de Samuel Fuller, sob orientação da filha dele, Samantha, diretora do filme. Serviu sobretudo para revelar que Jennifer Beals ainda está muito bela, mas é um pouco cansativo. O segundo é mais coeso, apesar de focar em dois diretores que são amigos na vida real: Richard Linklater e James Benning. O melhor momento é quando o segundo, conhecido por certo radicalismo em suas propostas, observa ao amigo diretor de filmes bem mais palatáveis, já durante os créditos finais, que achou radical o final de Escola de Rock (veículo para Jack Black).

Para encerrar este tópico, temos o estranho Espadas Voadoras, de Tsui Hark. Estranho porque o filme é ainda mais emperiquitado do que o habitual do diretor. Mas por incrível que pareça revela alguma força, vinda sei lá de onde, que faz com que a sessão seja prazerosa. Traições, lutadores, tesouros, tempestades e muita coreografia num filme que está sempre no limite do patético, mas se sustenta milagrosamente. Come poeira se comparado aos clássicos de Tsui Hark, mas é superior ao wuxia autoral de Wong Kar Wai.

Os melhores

O melhor filme da 37ª edição da Mostra SP é Sweet Exorcism, de Pedro Costa. Acho que Bruno Cursini resume bem o impacto do filme neste trecho de seu texto sobre o longa Centro Histórico: "poucas vezes pudemos sentir o peso da História sintetizado em apenas uma personagem, e a febre de Ventura carrega consigo as trevas de todas as trincheiras do mundo." É o peso da história mesmo, que ecoa na forma pouco usual como Costa filma os delírios de Ventura, os chamados iniciais, o soldado congelado e o elevador fantasmagórico. Este média é a única obra-prima inédita apresentada neste ano na Mostra. Como no ano passado, quando O Gebo e a Sombra brilhou, um filme português faz novamente a diferença. Os outros episódios de Centro Histórico  (dirigidos por Aki Kaurismaki, Victor Erice e Manoel de Oliveira) também são bons, principalmente o média de Erice, intitulado Vidros Partidos.

Se Portugal fez a diferença, a China não ficou muito atrás. Dois de seus melhores cineastas estiveram presentes. O malaio Tsai Ming Liang (diretor que filmou predominantemente em Taiwan) veio com Cães Errantes (como já escrevi uma crítica sobre este filme, vou me silenciar neste momento). E Jia Zhang-ke veio com Um Toque de Pecado, filme que, por sua contundência e quase extrema violência, dividiu críticos e confundiu meio mundo (o que tinha a dizer sobre o filme está em minha crítica). São dois cineastas que filmam como poucos, sabem o que querem com seus planos e conhecem muito bem a força de um movimento de câmera (ou de sua ausência): o primeiro usa raramente; o segundo, sobretudo neste mais recente, usa sem parcimônia.

Completando a lista dos melhores da Mostra, aquele que ficaria com o quinto lugar (já que o quarto pertence ao Educação Sentimental de Bressane): Minhas Sessões de Luta, de Jacques Doillon. O cineasta parecia adormecido, mas aqui atinge um dos pontos altos de sua carreira. Sobre esse ótimo filme e sobre o outro de Doillon, o sofrível Um Filho Seu, escrevi um texto que está na seção de artigos.

Problemas estruturais

O calcanhar de Aquiles da Mostra continua sendo o digital. Testemunhas diversos contam que neste ano houve melhorias nesse sentido. Menos sessões canceladas e menos sessões atrasadas. Que bom. A maldita chave do DCP vai continuar infernizando os cinéfilos, mas parece que já estão aprendendo a minimizar o problema (em alguns casos, com cópias em 35mm, consideradas de back up). Triste fim para a película. Virou cópia de back up. Tá certo. É caro o processo e tudo mais. Melhor guardar a cópia para ocasiões raras. Mas é irônico que muitos cineastas brasileiros prefiram exibir em DCP, com seu brilho excessivo e muitas vezes artificial. O rio pegando fogo de Riocorrente, por exemplo, fica melhor e menos espalhafatoso em película. O efeito é melhor para o filme, a meu ver. Mas eu não gosto do atual padrão Led que as salas de cinema do mundo estão adotando.

Um outro problema é o ineditismo exigido por Leon Cakoff e mantido por Renata de Almeida. Pensemos um pouco. Não há bons filmes em número suficiente para preencher dois festivais da grandeza dos que temos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Melhor que se faça uma seleção do melhor visto no Festival do Rio (uma pesquisa de opinião com mostrófilos que viajam para lá seria algo eficiente e produtivo) do que privar o cinéfilo paulistano de uma série de coisas boas que ficaram restritas ao Rio. Enxugar a programação, tirando uns 50 filmes daqui para serem substituídos por uns 50 não inéditos, seria o ideal para que a Mostra não corresse o risco de enfrentar entressafras como a deste ano, o primeiro desde o começo do ineditismo em que a programação da Mostra não foi melhor que a do Festival do Rio (durante o evento tive a nítida impressão de que estava pior, mas os dois últimos filmes, vistos na repescagem, me fez pensar um pouco melhor). De todo modo, é um dilema que deve ser melhor estudado.

Sérgio Alpendre

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