Ano VII

A margem ao quadrado: breve balanço do 6º Curta Taquary

segunda-feira nov 11, 2013

A margem ao quadrado: breve balanço do 6º Curta Taquary

Por Heitor Augusto

 

1. Uma coisa é abrir uma planilha da Ancine e se deparar com o escandaloso número de que 93% dos municípios brasileiros não tem salas de cinema. Outra é tomar contato com a realidade de uma cidade assim. Passar quatro dias acompanhando o 6º Curta Taquary trouxe a dimensão do quanto ainda se precisa caminhar tanto no sentido de formar um olhar para ler os filmes como recuperar até mesmo o sentido de ir à sala de cinema.

Taquaritinga do Norte, 130km de Recife, cerca de 20 mil habitantes. Orbita em Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru, região forte no ramo das confecções. Conhecer suas belezas naturais é a principal atração. Cinema ainda é algo exógeno, um tanto extraterrestre, cenário que bem aos poucos vem mudando, muito pelo esforço de agitador de Alexandre Soares, idealizador do festival. Foi uma experiência deveras gratificante entrar numa realidade distinta das capitais, às quais estou mais acostumado.

2. Algo de inocência no ato de ir ao cinema pairou no festival. Claro que este pode ser um ponto de vista um tanto romântico de quem pouco conhece as nuances de Taquaritinga. Mas essa ideia de inocência me ocorreu duas vezes: ao acompanhar uma sessão de curtas com crianças e adolescentes de três escolas da região, que encararam a tela de cinema como uma espécie de Celso Portiolli em forma de imagens – batiam palmas com a trilha sonora, reagiam às cenas de beijo; ou as reações externadas em situações não-realistas, como um espanto num plano de Catástrofe.

3. Por outro lado, percebe-se a existência de jovens interessados no fazer audiovisual, comportamento no qual o Curta Taquary tem notável influência. Mas, novamente, a estrada é longa para percorrer. Da mostra Dália da Serra, que reunia produções da região, predominam o entendimento redutor de que cinema = roteiro, um pé no videoclipe e uma visão de que um filme só se justifica se tiver uma mensagem passada de maneira didática.

Por outro lado, fico feliz de ver um esforço em fazer um corte direto na realidade que o circunda. Destaco um curta que aponta a tentativa de um olhar mais apurado para a matéria fílmica: Toque, de Carlos Kamara. Ainda que a produção seja para lá de precária e que o curta seja rondado por uma desnecessária explicação contínua, existe um olhar proto-cinematográfico (o som do rádio fora de quadro, flashback, fade out, enquadramentos e ângulos inusitados dos pés e da diagonal da geladeira). Não podemos dizer ao certo se nasce um novo realizador, mas ao menos Toque aponta para um avanço no sentido da consciência cinematográfica.

4. No balanço da Mostra de Tiradentes deste ano, apontei o caminho aos holofotes que os curta-metragistas paraibanos vem percorrendo. Essa percepção só se intensifica após o Curta Taquary. Se historicamente houve realizadores cujo esforço era não deixar a produção congelar (Marcus Villar, Bertrand Lira, Carlos Downling, Torquato Joel, Taciano Valério), nos últimos anos percebe-se que algo especial acontece.

Existe o cinema de horror – O Hóspede, Cova Aberta –, mas não só. Catástrofe, de Gian Orsini, estabelece um forte incômodo com o lugar ao seu redor muito pela solução dos enquadramentos; A Queima, de Diego Benevides, explora visualmente o medo e o mito; Cancha – Antigamente era mais moderno, de Luciano Mariz, entende o potencial do personagem e embarca na sua performance; e a surpresa Sophia, de Kennel Rógis, com seu rigoroso desenho sonoro e sutis enquadramentos.

Começa a tornar-se necessário realizar uma reflexão acerca desse conjunto de filmes – reflexão crítica que vá além do chavão “da seca ao sangue”.

5. Se a Paraíba apresenta um conjunto mais sólido de filmes, os realizadores de Alagoas tentam caminhar nessa direção, fazendo cinema num estado com problemas crônicos de políticas públicas na área. O que lembro, tenho, de Raphael Barbosa, circulou bastante por festivais neste ano: é um curta com uma rara clareza de intenções, mas que alterna momentos fortes e fracos. Uma descoberta é Mwany, de Nivaldo Vasconcelos, documentário todo focado na performance marcante de sua personagem.

6. À exceção dos eventos focados na temática LGBTT, fazia tempo que não participava de um festival em que a heteronormatidade estivesse em segundo plano. Houve a mostra Panorama Diversidade, além de um debate sobre homoafetividade na programação paralela do Curta Taquary.

Mas a diversidade, felizmente, não ficou no nicho. Muitos dos filmes da competição (nacional e primeiros passos) ou tinham personagens centrais gays ou abordavam o tema da sexualidade. Caso do melhor curta, a meu ver, da competição: Jessy. Belíssimo filme sobre a construção de uma personagem, que borra fronteiras de gênero, constrói uma encantadora atmosfera de amizade, subverte o ponto de vista predominante (a mulher que deseja entrar no grupo das drags), encerrando com a maravilhosa elipse.

7. Ainda sobre os filmes em competição, a vinda a Taquaritinga possibilitou duas bem-vindas revisões. A Guerra dos Gibis, documentário sobre quadrinistas no Brasil na década de 1970 que sofreram com a censura, tornou-se mais que um filme divertido. Penso que o curta de Rafael Terpins e Thiago Brandimarte abre muitas possibilidades da realização documental, pois mescla animações (não apenas em planos de transição, mas fazendo parte do tecido do filme), entrevistas talking head, material de arquivo e performance de personagens.

A segunda revisão é a de Alguns Dias Antes e Outros Depois. Inicialmente o filme de Nicolas Thomé Zetune me soou como preso num casulo. Na revisão, surgiu uma intensidade justamente na concisão dos planos, muito pela interessante montagem de Lucas Camargo de Barros, deveras responsável por dar força ao drama – talvez não fosse a edição o plano final não seria o que é.

8. Os relatos dizem que o Curta Taquary vem crescendo nos últimos anos. A torcida é para que ele se solidifique, pois acompanhá-lo pessoalmente atesta sua relevância no povoado calendário de festivais – ainda que, após o fim do festival, resida uma sensação agridoce de vitória (uma semana intensa de cinema, mas ainda assim apenas uma semana entre as 52 de um ano).

 

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br