Ano VII

Festivais e suas ondas

segunda-feira nov 11, 2013

Festivais e suas ondas

Por Guilherme Martins

Não há como desdenhar da existência de eventos como a Mostra, já que promovem a possibilidade do exercício básico de um cinéfilo. Nos trazem filmes de toda parte e, mesmo que pouco curados e que os acordos comerciais progressivamente piorem o processo de seleção, ainda são um palco para o cinema. Por outro lado, a experiência de um crítico no festival de cinema é algo complexo, em alguma escala. Não é só de cinefilia que se faz crítica. E os festivais de cinema constroem e destroem mitos, vendem movimentos, tendências, numa velocidade puramente publicitária.

A quem interessa cair nas novas ondas? O cinema permanece o mesmo, mas num período de cinco edições vemos bons cineastas serem descartados pela maioria, ter suas sessões esvaziadas, ou ao contrário, terem sua notoriedade mudada por completo. Não bastasse o óbvio, o fato de que qualquer festival de cinema não exibe necessariamente o que há de melhor sendo feito – muito pelo contrário, é preciso garimpar muito mais que isso – os festivais nos apresentam supostas ondas a todo momento. A raridade de um movimento palpável de cinema é sumariamente ignorado nestes meio cinéfilos. Qualquer grupo de filmes vindos de uma mesma região, já confere ao grupo o interesse de um novo movimento. A cada edição, confirma-se a badalação por filmes romenos, aos quais, francamente, aos poucos fui perdendo mesmo o interesse de assistir.  Um movimento injusto, até. Porque não difere tanto de quem adere a dita onda, quando se a repudia pelo mesmo motivo.

Houve o tal acordo Brasil-Coréia, com uma leva de filmes do país chegando a São Paulo. Num impulso, já se ouvia nos bastidores e corredores do evento: a confirmação de um novo movimento. Na prática, vimos filmes de uma cinematografia diversificada. Poucos tinham qualquer traço em comum,  ou referenciavam uma ideia de unicidade. Vimos filmes de ação à Hong Kong, como Olhos Frios; suspenses cheio de reviravolta em Confissão de Assassinato; subprodutos de Hong Sang-soo, em Sunshine Boys; e mesmo um independente dito sensível, Dezembro. Alguns títulos tinham interesse, mas ficou evidente o fato de que, nem como indústria, nem como novo cinema, havia ali um movimento concreto. É fato que a Coréia tem uma produção considerável, que há muito não chegava em quantidade aqui. É bom vê-los presentes num evento como este. Daí a comprarmos mais esta invenção do mundo festivaleiro, não é aceitável.

Voltemos então a atenção aos cineastas. Um velho aclamado deste festival apresentou seu novo filme, Tsai Ming-liang. Cães Errantes é bom, e tem Tsai orquestrando alguns de seus planos mais duros, melancólicos, quase cruéis. Ovacionado em certo momento, Tsai foi tratado pelos cinéfilos em geral como se estivesse “de volta”. Não considero Cães Errantes brilhante, como O Rio e Adeus Dragon Inn, por exemplo. Compreendo que a mão pesada deste filme funcione mais para uns que outros, e sempre foi assim com Tsai. O fato é que o malaio faz um cinema inimitável, ainda que cheio de códigos identificáveis. Já vimos inúmeros cineastas em festivais tentando copiar, mesmo no Brasil, a dor dos planos longos e fantasmagóricos que ele encena. No entanto, os resultados costumam ser entre medíocre e o risível. Há algo de poderoso no tempo, no espaço, na decadência do sentimento. Compreender seus filmes, captar os signos, não torna simples igualar os sentimentos, a sua verdade em cena. Como quem vira moda e hiper discutido, seu cinema foi questionado e abandonado em dado momento por alguns. Não é tanto o caso de quem frequenta o evento, e nem deveria ser o caso dos críticos.

Enquanto o público elege novos mitos, se encanta com novas ondas, como a de filmes gregos – cuja safra desafia a tolerância de qualquer cinéfilo – mitos se erguem e caem. Um cara como Bille August (ou Hal Hartley), exibe filmes novos para pouco interesse do público do evento. Nesta edição, tivemos um filme de August a quem, aposto, ninguém dedicou atenção. Mudou August, antigamente um cineasta ovacionado e discutido, ou mudaram as pessoas? Seus filmes não parecem nem menos nem mais medíocres. Não é o caso de defendê-lo, mas de questionar o discernimento de quem ovaciona filmes como quem elege as ondas. Enquanto os corpos voadores e a beleza leve de Tsui Hark seguem passando na surdina, em um circuito pequeno, os mexicanos, gregos, romenos, vão lá lotando suas sessões. A quem interessa Espadas Voadoras senão aos poucos que ainda perseguem o cinema não para saber o que é que vem sendo comentado? A quem foi curioso e cinéfilo o bastante, Tsui reservou uma bela experiência. Abriram as portas para o Escudos de Palha de Miike, outro cineasta que aparece eventualmente no Brasil, muito menos do que poderia. Não é um grande filme, nem dos melhores do japonês, mas ainda é um trabalho que acredita no que apresenta em cena. Cineastas como Miike merecem os cinemas.

Outro retorno foi o de Jia Zhang-ke, um retorno à ficção, de fato. Seus últimos filmes eram desinteressantes. Fora tratado uns dez anos atrás como um dos grandes cineastas contemporâneos, como sempre com pressa e desajeitadamente. Plataforma tem seu encanto, mas não via muito cinema em filmes como 24 City ou Memórias de Shangai – e também não comprava inteiramente O Mundo, que tem sua ambição, mas era dado a certas infantilidades. Um Toque de Pecado, polêmico, dividiu as opiniões por todos os lados, seja entre críticos como entre publico. O melhor que posso dizer é que Jia parece mais cineasta aqui do que jamais pareceu antes. Mais ousado, mais disposto a se posicionar em cena, mais ficcionista. Enquanto isso, assistimos a sombra de Wong Kar-wai em The Grandmaster, filme que passou quase que ignorado pela maioria. Será surpresa se um próximo filme do Wong não esgotar qualquer sessão? Enquanto os cinéfilos elegem suas ondas e cineastas, a história tenta se desvencilhar dos equívocos, daqueles que foram apressadamente eleitos. Aos críticos, cabe o dever do critério e da rigidez. Muitos confundem-se e apreciam ser confundidos com o público, afinal são cinéfilos também. Os festivais e sua história ensinam que o dever de casa do crítico não vem sendo bem feito. Não cabe ao crítico ditar novas ondas, mas sim lidar com os filmes projetados; a cinefilia caminha junto, e a busca pelos filmes não pode terminar em um uso deles como escudo pelo crítico. Os mitos festivaleiros são parte de seu charme, é preciso saber dribla-los quando se faz preciso.
 

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