Ano VII

Entrevista com Lav Diaz

sábado nov 2, 2013

Entrevista com Lav Diaz: O incontornável peso da história

por Heitor Augusto

Você sente o peso da história, do passado, em cada fotograma de um filme de Lav Diaz. Ele está inscrito nas rugas dos personagens, nas falas balbuciadas, nas testas franzidas; nos momentos de silêncio. É nesses detalhes que você encontra a chave do cinema de Diaz e a fonte de onde vem sua força e importância

Nada mais chavão do que começar um texto de apresentação da obra do cineasta filipino Lav Diaz com a famosa citação do crítico de cinema Alexis Tioseco, escrita em 2006 no seu site Criticine. A precisão com que Tioseco definiu a obra de seu compatriota torna, porém, inevitável uma lembrança, uma referência ao tal “peso da história”.

Pois é exatamente isso que se desprende dos filmes de Diaz: após a longa jornada de cumplicidade em que nos envolvemos com seus personagens, saímos com a sensação de que, mesmo as Filipinas sendo um país longínquo, cuja cultura tem praticamente lastro zero no cotidiano do brasileiro, entendemos que não é nada fácil ser filipino.

Após trazer ao longo dos anos alguns dos trabalhos de Diaz, a Mostra de 2013 realizou uma ampla retrospectiva. É por ocasião dessa que a Revista Interlúdio entrevista Diaz, guiada pela percepção da importância de (re)apresentar seus filmes ao público brasileiro. Promover essa conversa e passar pelos principais aspectos de seu cinema é reforçar o incentivo para o cinéfilo conhecer seus filmes – ainda mais que, mesmo com a retrospectiva na Mostra, muita gente viveu o dilema de “perder” espaço na programação ao encaixar um filme de Diaz, que costuma durar entre quatro a nove horas.

A Mostra acabou, mas existem paliativos para combater a invisibilidade da obra de Diaz. Se por um lado nenhum de seus filmes foi lançado em DVD, por outro existem os fóruns de compartilhamento, especialmente o Asian Torrents (acesso livre), Making Off e Karagarga (ambos necessitam de convites).

Abaixo a entrevista, resultado de uma troca de e-mails do redator Heitor Augusto com Lav Diaz antes da vinda do cineasta ao Brasil.

Seu conjunto de filmes aponta um interesse bastante forte pela história das Filipinas. Quando você vai contar uma história que se entrelaça com eventos das Filipinas, qual sua principal motivação? Propor uma nova reflexão, chamar a atenção do público para episódios desconhecidos, considerar o passado como forma de se pensar o futuro…?

Na verdade, todas as alternativas acima.

Seu estilo foi se apurando ao longo da última década desde Nu sob o Luar (1999). A duração de seus filmes é uma das características, mas não só – você passou a se utilizar da música de maneira diferente, por exemplo. O que mudou do jovem Lav para o de hoje, já estabelecido como autor? Seu desejo de cinema continua o mesmo? 

Minha crença no cinema ainda é a mesma, ainda acredito nele. O passar dos anos me traz mais sabedoria e a tal da maturidade, obviamente. Apesar de ter desenvolvido um trabalho que me deixa confortável com ele e com a maneira que eu lido com o fazer cinematográfico, ainda sou o mesmo apaixonado pelo cinema como era quando o descobri. Assisto a tudo de mente aberta, com mesmo nível de entusiasmo para descobrir novos mundos, perspectivas e culturas.

Estou sempre me esforçando pra entender o cinema e ainda brigando para entender a vida. É um desafio permanente essa práxis estética com a realidade do cotidiano que, não raro, impossibilita e ofusca o idealismo.

O crítico Alexis Tioseco, maior incentivador do seu trabalho nas Filipinas, que chegou até a produzir filme seu, deu aquela maravilhosa definição de que “você sente o peso da história em cada fotograma de um filme de Lav Diaz”. São muitos os planos que ilustram isso: o escritor isolado que acaba de voltar para as Filipinas no começo de Morte na Terra dos Encantos; a avó de Evolução de uma Família Filipina; o pai isolado de Nua Sob o Luar, o avô e sua neta mergulhados numa narrativa sem escapatória em Florentina Hubaldo, CTE. Como você constrói esses personagens que carregam uma alma machucada com com cicatrizes crônicas?

Sempre me pauto por criar personagens que se assemelhem com os da vida real ou que, de alguma forma, representem a condição humana, o quão imperfeita nossa existência é, o quão frágil. Essas são as verdades intrínsecas ao meu trabalho.

Os últimos planos de Evolução de uma Família Filipina colocam em evidência não os mais velhos, mas os jovens, quase adultos, que cresceram durante a Ditadura Marcos (1972-86). São eles que terão de levar o país após à morte da avó e do pai. Gostaria que você explicasse para nós que não somos tão familiarizados com a história das Filipinas o que representa os chamados Anos Marcos e a importância de entender esse período para compreender a situação do seu país hoje.

A Ditadura Marcos, também conhecida como a Era da Corte Marcial, foi o período mais obscuro da nossa história. E os filipinos não devem, sob hipótese alguma, se esquecer disso, assim como outras nações ao redor do mundo devem apagar tais atrocidades de suas história: Augusto Pinochet no Chile, [Hadji Mohamed] Suharto na Indonésia, Pol Plot no Camboja, Hitler, Assad na Síria.

Percebo um certo esforço revisionista para reabilitar a imagem de Ferdinand Marcos e apagar os crimes que ele causou no psicológico de todo um país [o crítico Mauro Feria Tumbcoon Jr analisa esse revisionismo no cinema dentro do artigo Lav Diaz's Ebolusyon: A Rearrangement of a Troubled Landscape].

Devo lembrar que a memória histórica das pessoas é curta e que o interesse pela história nas novas gerações é praticamente inexistente. Não tenho dúvidas que a disfuncionalidade estabelecida na Era Marcos em nosso país é muito mais severa que nos períodos de colonização/ocupação sob o julgo da Espanha, Estados Unidos e Japão.

Na entrevista que você concedeu a André Picard da CinemaScope você comenta que os filipinos são o povo da tempestade e como, desde a história antiga, o país está sujeito às leis da natureza. Em seguida você faz uma associação com uma certa resiliência provada pela extensão de tempo que os filipinos aceitaram a ditadura de Marcos. Você poderia desenvolver melhor essa ideia? Para nós que somos brasileiros e tidos como um povo hospitaleiro, pacato e gentil, essa resiliência nos parece bastante familiar.

A Natureza é um personagem fundamental na vida dos filipinos malaios. O Arquipélago das Filipinas é o cinturão do tufão no mundo. Temos em média de 25 a 28 tempestades/furacões por ano. Essa surra natural tem efeitos tanto físicos quanto psicológicos, é uma espécie de tortura permanente, cruel e brutal. Porém, nos acostumamos com esses ciclos. Aí entra a resiliência que, como atributo e característica, pode ser boa, mas tem uma óbvia conexão com uma atitude bastante apática dos filipinos, um tipo de passividade que representa uma sombria contradição.

Ela se tornou uma enfermidade, uma desesperança, algum tipo de estado de Chronic Traumatic Encephalopathy (CTE). Aceitamos como um destino incontornável: sofremos vagarosamente e apanhamos para sair desse estado. Ironicamente, a luta por emancipação ou redenção só acontece quando o estrago já se tornou tão, mas tão pesado, que é praticamente impossível revertê-lo. Esse é o grande paradoxo do povo filipino [tal paradoxo é melhor representado em Florentina Hubaldo, CTE. No filme, a personagem é sistematicamente abusada e prostituída pelo próprio pai, mas só consegue se libertar após anos de sofrimento].

Um dos assuntos que sempre me chamou a atenção em seus filmes é a iminência do abuso sexual ou do assédio. Seja como assunto principal do filme como em Florentina Hubaldo, CTE, como ponto fundador de uma personagem – Nua Sob o Luar – ou inserida no cotidiano, caso de Evolução de uma Família Filipina, em que o tema do assédio aparece até nas radionovelas que as personagens escutam no filme. Isso é um interesse seu ou realmente representa um desafio diário para a mulher filipina?

É um desafio diário. Nossa sociedade é deveras machista e sexista, o que, na verdade, não deixa de ser um traço de quase todas as sociedades e cultura. O homem ainda é um bárbaro.

Como você reage a uma crítica bastante comum em toda sua carreira: a de que, apesar de seus filmes falarem do cotidiano do povo filipino, ele mesmo não se sente encorajado a assistir devido à duração dos filmes?

Eu não poderia estar menos interessado se meus trabalhos são “assistíveis” ou não pois tenho a convicção de que uma estética verdadeira sempre vence no final. Sou fiel, e também teimoso, com minha estética. É uma responsabilidade, podemos chamá-la de minha posição moral como artista e trabalhador cultural. O grande cinema deve desenvolver um público à altura.

Uma das sequências mais belas de seus filmes é a morte de Kadyo em Evolução, que começa com a facada na multidão durante os protestos e culmina com seu corpo empilhado junto a cadáveres não-identificados. Como você se relaciona com os atores? Que tipo de entrega é necessária da parte deles para a composição da dramaturgia que marca seus filmes?

Eles entendem o meu processo – ou talvez apenas acreditem nele. Falo do plano-sequência, do take de longa duração, da investigação do homem. Os vejo como personagens que criei e trabalhamos de forma a entender sua condição e seu entorno numa pegada mais orgânica e fluida. É um processo simples no qual o ponto-chave é sempre atingir a verdade do personagem, a verdade da cena, a verdade da narrativa.

Partindo do fato que seu primeiro longa, Serafin Geronimo: Ang kriminal ng Baryo Concepcion (1998), é vagamente baseado em Crime e Castigo, te pergunto: qual a influência de Dostoiévski na sua carreira?

A luta da culpada alma humana, além da forte investigação psicológica nos livros de Dostoiévski chamaram minha atenção. Ele apresenta o ser humano em sofrimento como algo intrínseco à própria existência. E há sempre a busca pela redenção, além da batalha entre o Bem e o Mal.

Como você tem conseguido financiar seus filmes sendo um artista que não pertence à chamada indústria comercial de cinema nas Filipinas?

Tenho o apoio algumas vezes do Hubert Bals Fund do Festival de Roterdã. Os amigos também ajudam. Sou um cineasta pobre e de maneira alguma estou romantizando isso, pois faço filmes porque quero, não por obrigação. Me adapto no processo ao que tenho em mãos. Não posso reclamar. Dias antes da nossa entrevista alguém me perguntou num debate após uma exibição: “Como você distribui esses filmes longos?”. Eu disse: “Não faço filmes para o mercado. Faço filmes para o cinema”.

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