Ano VII

Cães Errantes

segunda-feira mai 5, 2014

Cães Errantes (Jiao You, 2013), de Tsai Ming Liang

Algo aconteceu com Tsai Ming Liang após Adeus Dragon Inn. O cineasta sentiu que estava no topo de suas preocupações estéticas e resolveu experimentar: o erotismo e a vulgaridade (O Sabor da Melancia), a antecipação dos cortes (Não Quero Dormir Sozinho) e o choque de estilos e escolas (Visage). Os fãs continuaram amando, por vezes sem entender direito que tipo de operação estava em curso. Os detratores passaram a lhe torcer o nariz com mais raiva. De repente, a sensibilidade de parte do mundo cinéfilo se reconfigurou em outra órbita, e seu estilo, baseado em planos longos nos quais os personagens contemplam alguma coisa, ou ficam inertes com seus pensamentos, ou simplesmente esperam, já não agrada mais. Por outro lado, a exibição de domingo na 37ª Mostra SP mostra que esse mesmo estilo ainda pode provocar grande entusiasmo. Muitos gostam pelo fetiche, por seu cinema estar tão distante de Hollywood, ou mesmo pela possibilidade cada vez mais difícil de contemplação no cinema (mesmo motivo que cativa alguns espectadores de Apichatpong, por exemplo). Mas é impressionante o domínio de Tsai Ming Liang na construção do plano, no domínio do tempo e do espaço.  Isso ninguém é louco de negar.

Nesse sentido, é curioso que Cães Errantes (que venceu o Grande Prêmio do Júri no último Festival de Veneza) seja seu filme mais radical. Aqueles que detestam os planos longos vão encontrar mais motivos para detestar (há planos com mais de dez minutos, por cortesia da câmera digital). Aqueles que amam vão ficar maravilhados com o capricho na composição dos quadros, e muitos deles podem continuar sem entender o que está em curso.

E o que está em curso, afinal? Uma família em contraponto à solidão. De um lado, a radicalização no uso do tempo dá conta de um ser solitário, alcoólatra, fracassado socialmente. De outro, a presença de filhos, laços familiares que aprofundam o desespero do protagonista em tempos de crise econômica. Temos a crise e a tentativa de acerto, a reorganização da ordem familiar e do mundo, a tentativa de harmonização dos desejos e frustrações. A sobrevivência, enfim.

Há ainda uma outra coisa. Mais que qualquer outro filme de Tsai, Cães Errantes é todo estruturado em planos independentes. São raras as conexões entre eles. Planos-sequência, no caso, de uma maneira bem literal, uma vez que não há sequências de fato no filme, apenas planos, e sendo assim, tais planos podem ser considerados planos-sequência, uma vez que cada um deles (salvo uma ou outra exceção) responde por um segmento particular na vida do solitário personagem de Lee Kang Sheng. Pode ser uma reação à presença materna no coração de sua pequena filha (o longo plano do repolho), a constatação de seu fracasso como pai e provedor (o choro enquanto segura a placa), o cuidado com a higiene dental dos filhos.

O plano chave do filme aparece quase no final. Mas antes é necessário falar de um plano anterior, quando a mulher que trabalha num supermercado e fornece comida vencida para essa família observa por um bom tempo a pintura gravada numa parede retangular dentro do prédio abandonado em que moram. Parede retangular? Sim, uma tela de cinema, widescreen. No dito plano chave, uma outra mulher (seria a esposa, num flashback?) se posta diante da parede, sem que saibamos tratar-se de fato da mesma parede até o contracampo que só acontece depois de 13 minutos. O pai das crianças (o ator de sempre, Lee Kang Sheng) se posta logo atrás dela, como se estivesse esperando um único movimento que indicasse uma possível reconciliação.

Muita coisa acontece enquanto eles se postam como estátuas diante da parede pintada, a tela de cinema. Sentem frustração,  esperança, raiva, desespero, tristeza, desilusão, solidão, cada um a seu tempo, numa ciranda de emoções que não se tornam paralelas. Ele a abraça, mas depois de um curto espaço de tempo ela o abandona (ao menos no quadro). Sai do cinema e vai viver a vida? Não seria à toa, então, que as paredes de onde eles moram sejam todas escuras, e descascadas. Fim do cinema?

Sérgio Alpendre

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