Ano VII

Tom na Fazenda

sábado out 26, 2013

 

Tom na Fazenda (Tom à la Ferme, 2013), de Xavier Dolan

Depois de uma estreia tão histérica quanto inócua, com Eu Matei a Minha Mãe, seguida por seu prolongamento autorista óbvio em Amores Imaginários e, por fim, com a prova inconteste do academicismo fetichista de Laurence Anyways, estaria o cinema de Xavier Dolan condenado a um sufocamento precoce por sua própria grife? Ou, pior, estariam certos aqueles que só viam no jovem quebequense um falso prodígio, invenção necessária ao eternamente crescente circuito de festivais? Tom na Fazenda vem mostrar, surpreendentemente, o contrário, limando muito dos descontroles estilísticos (de forma e conteúdo) que poluíam um talento tão e somente preocupado em estabelecer um “estilo”, palavra síntese de seus primeiros trabalhos (já que, a partir de agora, espera-se poder estabelecer uma ruptura em sua filmografia). 

Como o seu próprio título já sugere (ao menos se soubermos que o protagonista é o próprio Dolan), estamos no universo da incompatibilidade e da ironia. Todo o desequilíbrio buscado nas aberrações gratuitas dos filmes acima mencionados, são reorganizados narrativamente em forma de uma comédia sardônica: as personagens caricaturais agora são pontuadas por uma melancolia verdadeira e as situações – não raro, absurdas – conseguem, de alguma maneira, conectá-las umas às outras, fazendo do enredo um reflexo torpe bem-vindo de nosso convívio social. O cinismo e os excessos latentes de Dolan, finalmente, parecem justificados, criando algum distanciamento crítico em seus espectadores (antes, eles só pareciam superficiais e exibicionistas, dizendo respeito apenas às suas próprias vaidades).

Baseado em uma peça de Michel Marc Bouchard, Tom na Fazenda é o único roteiro adaptado por Dolan. Talvez, por isso, ele seja bastante coerente, conseguindo extrair humor daquela que é, na realidade, uma história de convalescença e renascimento travestida de suspense psicológico: Tom vai ao velório de seu namorado, Guillaume, na zona rural do Canadá. Ele nada sabe sobre a família do recém-falecido e, logo, se vê obrigado, pelo bruto e psicótico Francis, irmão de Guillaume, a inventar um passado no qual a palavra “homossexual” está absolutamente proibida. Na realidade, ele é coagido a fazer parte de um enredo para a sua antiga sogra, uma típica mãe hitchcockiana – algo que a trilha-sonora reminiscente de Bernard Herrmann não faz o menor esforço para esconder.

Estamos, portanto, no desenvolvimento de estereótipos: o descolado e sensível rapaz da cidade grande, antagonizado pelo másculo preconceituoso e opressor do interior, filho de uma mãe castradora. Pensamos, primeiramente, em Psicose, satirizado no instante da apresentação do rosto de Francis, quando este, subitamente, interrompe o banho de Tom no chuveiro, proclamando ameaças. Também o céu é emprestado da obra-prima de Hitchcock, sempre cinza e úmido, assombrando a casa onde a ação ocorre. Mas o jogo referencial proposto por Dolan, perpassa por muitos outros momentos do gênio inglês (A Sombra de Uma Dúvida, Interlúdio, Um Corpo que cai, entre outros), apoiando-se em um de seus pilares: o destrutivo e corrompido embate entre aquilo que é e aquilo que parece ser. Se Tom na Fazenda é um filme interessante (e o é, sem dúvida), é por fazer com que nenhuma das suas personagens principais (o herói e o suposto vilão, mas também a atordoada figura materna) esteja certa daquilo que é e daquilo que deseja ser: fisicamente, não seria tão difícil para Tom partir dali, mas o fantasma de seu amante ainda vive em Francis, e sua semelhança com o falecido torna-o, neste momento de luto, doentiamente sedutor. Francis, por sua vez, revela-se frágil, tentando fazer de Tom, o irmão que ele recusou. À mãe, evidentemente, resta a ilusão de ver, neste intruso, seu filho, há muito ausente.

Ridiculamente saudado, desde Eu Matei a Minha Mãe, como o geniozinho adolescente do cinema de festivais, as qualidades de Tom na Fazenda encontram-se justamente nos locais onde sentimos a ausência dos mecanismos consagrados de estilo da marca “Xavier Dolan”. Com 24 anos e já em seu quarto longa-metragem, podemos ver aqui, enfim, a estreia de um cineasta. Que seus próximos movimentos consigam ser suficientemente sólidos para fazer jus ao status que o alçaram tão precipitadamente. O primeiro passo acabou de ser dado.        

Bruno Cursini 

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